segunda-feira, fevereiro 22, 2010

A democracia é um julgamento na praça pública

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"Faz bem à justiça ser feita ao ar livre. O vento levanta-lhe as saias e a gente vê o que ela traz por baixo."
Fala do Juiz Azdak em "O círculo de giz caucasiano" de Bertolt Brecht

Tem vindo a aumentar, justamente, o clamor contra os julgamentos na praça pública. As vozes indignadas vão desde o mais insuspeito, o líder do MRPP Garcia Pereira, até ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Entretanto verifico uma enorme lacuna. Ninguém acusou ainda a democracia de ser, ela própria, um autêntico julgamento na praça pública.

De tempos a tempos somos chamados a julgar um numeroso grupo de arguidos, que se auto-intitulam candidatos. Esses julgamentos baseiam-se em informações avulsas, obtidas sabe-se lá aonde e por que meios. Toda a gente fala ao mesmo tempo e a sessão do tribunal (a que chamam pomposamente campanha eleitoral) não se limita às praças, pois percorre até as avenidas e as vielas públicas. Não há qualquer validação da informação divulgada e das promessas delirantes que os arguidos fazem, apesar de estarmos em presença de versões contraditórias ou mesmo antagónicas.

Ainda recentemente, em Setembro de 2009, tivemos oportunidade de experimentar os malefícios destes desmandos. Fomos forçados a absolver o Partido Socialista (com a pena suspensa) baseados em informações incompletas ou mesmo deturpadas. O Procurador Geral da República, certamente para não nos desmoralizar, escondeu-nos durante o julgamento umas escutas cujas transcrições andava a ler. As agências de rating atrasaram vários meses a revelação de que Portugal está em falência técnica e, por isso, durante o julgamento, ainda estávamos convencidos de que o país vogava velozmente ao encontro do futuro, de TGV ou a partir do Novo Aeroporto. Os resultados destas e de outras omissões, e da sentença que então decidimos, estão à vista de todos.

É imperioso acabar com estes caóticos julgamentos na praça pública. Dentro em breve seremos de novo chamados a intervir como juízes. Os arguidos, está-se mesmo a ver, vão acusar-se mutuamente de ser os culpados pelo estado desesperado a que o país chegou. A prescrição dos remédios amargos que nos esperam, em resultado da incompetência e da ganância, ninguém a quererá assumir. Como vamos saber em quem confiar sem os rigorosos métodos da justiça e a validação das provas por quem de direito ?

Proponho desde já que nos recusemos a participar em mais este julgamento na praça pública, nesta autentica farsa, que põe em causa o Estado de Direito. Só devemos votar depois da sentença de um Tribunal competente ter transitado em julgado e de termos percebido quais foram afinal os arguidos/candidatos que o tribunal mandou encarcerar por responsabilidade na bancarrota do país.

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1 comentário:

Manuel Vilarinho Pires disse...

Meu caro amigo,

Não é o facto de ser pública que faz da justiça na praça pública uma aberração, mas o facto de ser exercida sem as regras de rigor da justiça dos tribunais.

A justiça dos tribunais é, aliás, pública por natureza, só sendo por princípio secreto o que é necessário para não colocar em causa nem a eficácia da investigação nem o bom nome dos investigados, cuja inocência ela é obrigada a pressupor.
E está obrigada a um conjunto de regras muito rigorosas que procuram garantir os princípios sem os quais a justiça não passaria de mero terrorismo de estado.

Na justiça na praça pública, cada um pode acreditar naquilo que quer, pode escolher das provas disponíveis as que possam reforçar a sua convicção e ignorar as outras, não é obrigado a assumir a presunção de inocência do réu, nem o consequente ónus da prova do lado da acusação.
O que faz da jutiça na praça pública ineficaz, ao contrário do que o populismo gosta de defender, porque aumenta a probabilidade de condenar inocentes e, consequentemente, de deixar os criminosos à solta.

Como a justiça dos tribunais, a democracia tem um conjunto de regras bem definidas que procuram garantir o respeito pelos princípios que lhe estão subjacentes.
Uma eleição é um julgamento público, mas com regras tão bem definidas como as de um julgamento em tribunal, que também é público.
E com as mesmas limitações, até quanto à profundidade com que se conseguem conhecer os factos, para dizer a verdade.

O que seria equivalente a um julgamento na praça pública seria demitir um governo, não porque as circunstãncias previstas para a aplicação dos processos constitucionais estão reunidas, mas porque há mais manchetes ou blogues ou manifestações contra ele do que a favor.

PS: "Fomos forçados a absolver o Partido Socialista (com a pena suspensa) baseados em informações incompletas ou mesmo deturpadas."???
Fala por ti, eu nas eleições votei vencido no sentido da condenação.
Mas a maioria não!