quinta-feira, junho 30, 2005

Estado - a exploração de segundo nível





Aqueles que defendem o chamado “Estado Social” laboram num erro grosseiro: estão convencidos de que ele é pago pelos ricos a quem "foi imposto pela justa luta das classes trabalhadoras".

A verdade dos números é bem diferente: quem paga o “Estado Social” são os próprios trabalhadores já que, no conjunto, pagam muito mais em impostos e todo o tipo de contribuições do que recebem do “Estado Social”.

Nas últimas semanas, com a “zanga das comadres”, os jornais deram-nos abundante material para esboçar uma lista dos destinos que têm sido dados à diferença entre aquilo que os trabalhadores pagam ao Estado e aquilo que dele recebem:

- Obras públicas que custam três ou quatro vezes mais do que o valor orçamentado (a Casa da Música, no Porto, é apenas o último e significativo exemplo)

- Medicamentos e exames de diagnóstico comprados em excesso e por preços leoninos (em 2002 foram gastos pelo SNS nestes artigos 2.774 milhões de euros, ou seja 556 milhões de contos)

- Ordenados exorbitantes de gestores de empresas públicas que os próprios se auto-atribuem (sempre acompanhados de uma miríade de complementos como cartões de crédito, seguros de vida, prémios de gestão, despesas de representação 14 meses por ano e outros)

- Pensões de reforma cujos elevados montantes não têm qualquer correspondência com os descontos efectuados pelos beneficiários (o caso do Ministro das Finanças, reformado ao fim de seis anos de trabalho e com 48 de idade, é apenas um entre milhares).

- As propinas escolares, o custo dos cuidados médicos e de todos os outros serviços prestados pelo estado aos estratos sociais ou profissionais cuja fuga ao fisco é encapotadamente tolerada (como é o caso da maior parte das profissões liberais e certos estratos do empresariado).

- Os múltiplos ordenados dos “eleitos locais” obtidos nas empresas municipais por eles criadas

- As subvenções mensais vitalícias e subsídios de reintegração atribuídas aos políticos.

- As contribuições da República para os partidos políticos

- Os ordenados dos funcionários públicos excedentários que, em muitos casos, foram admitidos apenas por serem filhos ou afilhados do “senhor Director Geral” quando não sobrinhos da porteira.

- Os custos de serviços do Estado redundantes, ou mesmo prejudiciais, que não produzem nada de útil e até contribuem para empatar as iniciativas válidas.

A lista podia ser muito mais longa mas estes casos bastam para configurar aquilo que podemos designar como uma exploração de segundo nível.
Marx explicou a exploração como a apropriação pelos capitalistas da diferença entre o valor produzido e o montante dos salários mas não podia adivinhar que em pleno século XXI um segundo nível de exploração se viria sobrepor.

O salário que os trabalhadores deveriam levar para casa, já amputado da mais-valia, é ainda “assaltado” pelo IRS e pelas contribuições para a Segurança Social, quando metem gasolina ou compram tabaco, quando compram casa, quando vão ao supermercado, em suma, constantemente.
Em muitos casos este segundo nível de exploração é ainda mais intenso do que a exploração convencional.

Os beneficiários desta exploração são:

- os industriais, comerciantes e prestadores de serviços que vendem leoninamente ao Estado, com a conivência dos compradores ou beneficiando do desleixo e da desorganização

- Os altos funcionários da Administração Pública (são 6.960) e das Empresas Públicas (são 461)

- Os estratos sócio/profissionais tacitamente “dispensados” de pagar impostos

- Os políticos no activo, os que já foram, e todos os acólitos que frequentam os partidos à babugem dos favores.

Estes grupos interpenetram-se e os seus elementos vão passando continuamente de uma condição para outra não havendo memória de qualquer penalização por mau desempenho. Os favores trocados e os lobbies de interesses mantêm-se na penumbra e a coberto das instituições formais que baseiam a sua legitimidade no sistema democrático.

Configuram uma casta que se apoderou da nossa democracia e que, pelos seus erros e cupidez, acabará por a destruir.

segunda-feira, junho 27, 2005

Cá estou eu de novo a ver navios!




Fui a Estocolmo, e como todo o turista que se preza fui ver o Museu do navio Vasa.

A história do barco é curta e simples:
Mandado construir no sec. XVII pelo rei da Suécia e sendo o navio de guerra mais poderoso e rico do seu tempo, afundou-se na viagem inaugural à saída do porto de Estocolmo porque não tinha a estabilidade necessária para aguentar um golpe de vento!
E lá ficou, durante mais de 300 anos, 32 m debaixo de água até que em 1956 um pesquisador o localizou e a nação sueca decidiu resgatá-lo.
A história do projecto é bem mais longa e rica do que a do barco!
Quando atrás referi “a nação sueca”, não estava a fazer estilo. Trata-se de um verdadeiro projecto nacional em que Estado, empresas e particulares colaboraram de variadas formas: por exemplo, a empresa que efectuou os trabalhos de resgate não cobrou nada por isso; a Armada forneceu pessoal, meios, apoio logístico; os cidadãos contribuíram para várias subscrições.
Os trabalhos iniciaram-se em 1957 e o VASA emergiu em 1961. Logo várias equipas multidisciplinares começaram os trabalhos de limpeza e restauro, estudo dos achados materiais e humanos, preservação e enquadramento num primeiro museu provisório, enquanto os mergulhadores prosseguiam a procura de materiais.
Em 1990 foi inaugurado o novo local, uma construção de 5 andares de galerias em varanda à volta do enorme navio, mantido em condições ideais de luz, temperatura e humidade. Até 2001, tinha recebido 20 milhões de visitantes (o preço do bilhete ronda os 6€).
Este museu mostra-nos muitas coisas.
O barco e o seu enquadramento histórico e social, mas também e não menos importante, o projecto de recuperação e o modo como foi efectivado.
É admirável como os suecos conseguiram, a partir de um único barco dar-nos de forma agradável uma panorâmica tão completa da sua vida no período histórico em que tiveram relevância politica na Europa. Até sugerem uma importância maior do que aquela que de facto tiveram, porque localizada no espaço (norte e centro-leste da Europa) e no tempo (sec. XVII).
Eles mostram-nos como era a Suécia na época do VASA: as actividades económicas, os ofícios, a estrutura social, a habitação, o vestuário, a alimentação, a religião, as festas, a justiça, a guerra, etc.
Com a ajuda de uma dúzia de objectos do quotidiano encontrados a bordo, mas principalmente de muitas maquetes e shows multimédia. Uma das mostras mais interessantes é a do estudo antropológico de 25 restos humanos, em que se discorre visualmente sobre o tipo de alimentação, os cuidados de higiene e saúde e até os hábitos daquelas pessoas; tudo isto culminando na apresentação computorizada da reconstituição facial de 3 deles e a sua reprodução em manequim com as roupas e o aspecto que provavelmente terão tido, enquanto que a instalação sonora debita frases nos dialectos que provavelmente terão usado!!!

Isto traz-me de volta a uma questão que me “visita” desde que Lisboa albergou a XVII Exposição, passando pela EXPO 98 e todas as exposições temporárias que se relacionam com os descobrimentos: a necessidade de Portugal ter uma Mostra Permanente da Expansão Marítima Portuguesa.
Sem qualquer ranço de patrioteirismo nacionalista, temos de concordar que poucas nações foram tão mundialmente importantes como Portugal nos séculos XV e XVI. E principalmente que nenhuma outra daquela época deu, directa e indirectamente, contributos de tão grande alcance futuro para o desenvolvimento económico, social, científico e filosófico.
Assunto e material dos melhores não nos faltariam para uma exposição permanente: a reconstituição de viagens; os naufrágios; os contactos com outras civilizações; a chamada “evangelização”; o comércio e a rapina; a partilha dos novos mundos e o equilíbrio de forças politicas; a navegação à vela e a construção naval (desde o pinhal de Leiria); as transformações sociais com os Descobrimentos; Lisboa, cidade cosmopolita; a miscigenação de culturas (alimentação, vestuário, mobiliário, etc); novas terras e mares, novas plantas e animais, novas línguas e palavras, etc. etc. etc.
Temos especialistas e técnicos que já mostraram saber organizar mostras que além de conteúdo, têm um fundo didáctico e um aspecto lúdico.

Só não há iniciativa, ou vontade política... É verdade que se esperarmos pelo Estado, o melhor é sentarmo-nos (veja-se o triste exemplo da colecção Berardo...).
Mas será que os Belmiros de Azevedo deste país não achariam interessante criar, não um Museu mas um Parque Temático da Expansão Marítima Portuguesa?

Aceder ao site do Museu do Navio VASA

E o Japão ali tão longe



Regressei há poucos dias de uma viagem ao Japão. Globalmente não tive grandes surpresas, mas algumas realidades ultrapassaram o que esperava.

Claro que previa tecnologia por toda a parte, os complicados viadutos de Tóquio, as multidões despejadas para o Metro quando os escritórios se encerram, o combóio “Bala”, os museus de Hiroshima, os templos e os jardins. Mas não imaginava que ia encontrar uma sociedade tão organizada e tão cívica, ao pé da qual alemães e escandinavos parecem latinos desordeiros.
Apesar das permanentes multidões, não há papéis nem beatas no chão (e há muitos japoneses fumadores), as casas de banho dos locais públicos estão tão limpas como nos hotéis de cinco estrelas, não é pensável que um combóio se atrase um minuto e que cada carruagem não pare exactamente onde o seu número é indicado no cais (e onde os futuros passageiros esperam, ordeiramente e em fila).
Todas as ruas dos centros das cidades e os locais públicos têm uma espécie de calhas no meio das áreas destinadas a peões, onde os cegos se deslocam. Quando a calha termina ou há um cruzamento, o relevo é diferente para que o utilizador, ao detectá-lo, se possa orientar. São milhares de quilómetros de listas amarelas que nos ficam na memória.
Quanto a recolha e reciclagem de lixo, cheguei a contar doze tipos diferentes de contentores lado a lado.
Por decoro, não descrevo todas as funcionalidades de que dispõe uma simples sanita.

Noutro registo e com todas as limitações de uma visão de simples turista, impressiona, evidentemente, o elevado nível de vida e o que se vai ouvindo e lendo. É verdade que os japoneses dizem estar apenas a sair de um longo período de recessão, que acabaram os empregos para a vida inteira e chegaram o trabalho precário e os contratos a prazo.
Importam 60% do que comem porque é mais barato do que produzir. Criam poucas vacas, mas as que por lá crescem são massageadas e bebem cerveja para a carne ficar mais tenra – o que se sente, no prato e na carteira, quando se tem a sorte de encontrar um bife.
Com a idiossincrasia do medo da invasão dos produtos chineses, era inevitável procurar saber o que se passa num país com preços tão astronomicamente altos e geograficamente tão próximo da China. Sim, há lojas chinesas com produtos mais baratos, mas isso não parece ter importância. O que é essencial é que a China continue a crescer e consistentemente – é que o Japão exporta tanto para aquele país e investe tanto em empresas chinesas que seria um desastre se se desse qualquer tipo de “crash”.

Outra coisa que impressiona é que o Japão parece um país fechado sobre si próprio. Se estamos habituados, há muitos anos, aos turistas japoneses no ocidente, o que é verdade é que há 123 milhões a alimentarem sobretudo um turismo interno muito forte. E vêem-se tão poucos ocidentais que não é raro cumprimentarem-se quando se cruzam na rua. Na Expo Universal de Aichi, onde passei um dia, não vi um único não oriental fora dos respectivos pavilhões. (A propósito da Expo, não vale mesmo a pena a deslocação. Parece que alguns pavilhões temáticos são bons, mas as filas de espera são de várias horas. Quanto aos outros, formam um conjunto que nem sequer é bonito e já nem constituem grande novidade. Mas há uns melhores que outros e deve ser difícil encontrar algum pior que o de Portugal. O mínimo que se pode dizer é que é soturno - não encontro palavra adequada mais meiga para o caracterizar.)
É difícil o turista encontrar fora dos hotéis quem fale razoavelmente inglês, o que não é de estranhar porque há poucos estrangeiros. Levantar dinheiro em ATM’s que aceitem cartões internacionais também é uma odisseia porque são raros. Comprar bilhetes para o Metro em máquinas com instruções em japonês é uma experiência a não perder – o que vale é que há sempre um simpático nipónico por perto que, com gestos e vénias, lá vai explicando o que é preciso fazer.

Dito isto, gostei do Japão? Gostei muito de lá ter ido.
O campo é muito bonito, mas achei as cidades feiosas (Xangai dá cartas a Tóquio e de que maneira!), as pessoas feíssimas (porque será que tantas têm as pernas tão tortas, como se tivessem vivido sempre a cavalo?), a comida intragável.
Gostei dos japoneses? Não deu para os entender. São extremamente delicados mas adivinha-se que podem tornar-se facilmente violentos, pragmáticos mas altamente supersticiosos, aparentemente ocidentalizados mas com raízes profundamente diferentes.

Nos últimos anos, faz-me sempre impressão olhar para a Europa vista de fora.
Foi a partir de Tóquio que segui a cimeira do Conselho Europeu em Bruxelas.
Assim não vamos para parte nenhuma. E há outros que vão indo – aparentemente, para onde querem.

quinta-feira, junho 23, 2005

Corot em Madrid




Leitura interrompida, c. 1865-1870



Visitei a magnífica exposição das obras de Corot, vindas de todo o mundo, no Museu Thyssen de Madrid. O que eu prefiro são as paisagens urbanas dominadas por um certo abstraccionismo e também os poderosos retratos como aquele que antecede este texto.

Para ver mais sobre a exposição de Corot clique no quadro.

Sugestões para outras exposições na Europa : clique aqui

sábado, junho 18, 2005

A Felicidade






A Felicidade
Miguel Poiares Maduro
miguel.maduro@curia.eu.int


O que é que se passa no céu? Todos temos uma ideia clara do que nos acontecerá se formos parar ao inferno: mais coisa menos coisa, ardemos lentamente sujeitos às maiores torturas… Mas e no céu? Em que é que as almas ocupam o seu tempo? A jogar às cartas, ouvir música e ver cinema? A conversar com as pessoas que amaram? (e se forem várias, quem fica com quem?). E como se evita o aborrecimento se não há um fim à vista? Se calhar o céu é céu precisamente porque nos deixamos de preocupar com estas questões… mas não deixa de ser algo aterradora a perspectiva de nem no céu conseguirmos identificar a felicidade.
E, no entanto, há quem a pretenda realizar na terra. Um livro recente de Richard Layard, um conhecido economista britânico, procura recolocar o conceito de felicidade no centro das políticas públicas. Layard retoma a tese utilitarista de Bentham que entendia que o principal objectivo de uma sociedade deve ser a maximização da felicidade de todos de forma igual. Por outras palavras, uma política deve ser prosseguida quando ela promove a felicidade do maior número. A dificuldade está em medir a felicidade. Layard socorre-se dos mais recentes estudos sobre a felicidade em disciplinas como a neurologia, psicologia e sociologia para tentar elaborar um critério operativo de felicidade. Desses estudos, podemos retirar algumas conclusões interessantes.

O que é a felicidade?


A primeira conclusão é que a felicidade pode ser medida: ela tem correspondência numa determinada actividade neurológica no cérebro.
A segunda conclusão é que a felicidade é profundamente relativa e "invejosa". A nossa felicidade resulta de uma comparação com a situação dos outros (assim, por ex., se todos ficamos mais ricos a nossa felicidade individual não tende a aumentar!).
A terceira conclusão é que a felicidade "educa-se": aquilo que nos traz felicidade muda com o conhecimento, educação e exposição a mundos diferentes. As nossas preferências não são estáticas. É por isso que quanto maior o nosso conhecimento da arte maior a felicidade que ela nos pode transmitir.
A quarta conclusão é que a felicidade aprecia a estabilidade e a companhia: a permanência no mesmo emprego traz, aparentemente, mais felicidade do que as mudanças frequentes para empregos melhores. No mesmo sentido, os estudos realizados indicam que as pessoas casadas são, em média, mais felizes que as solteiras, divorciadas ou separadas (por esta ordem decrescente de felicidade…), incluindo, com alguma surpresa, na sua vida sexual (o que o estudo não diz é se essa felicidade resulta de terem sexo dentro ou fora do casamento…).
A quinta conclusão é que a felicidade vicia e habitua-se facilmente. Assim, algo que nos dá grande felicidade inicial vai diminuindo a felicidade que nos traz à medida que nos habituamos. Só que, paradoxalmente, se voltamos a perder essa coisa, a infelicidade que isso nos traz é muito superior à felicidade que nos trouxe quando não a tínhamos. Isto explica a razão pela qual o dinheiro não traz (sempre…) felicidade. A relação entre nível de vida e felicidade individual é verdadeiramente relevante apenas ao nível do limiar da sobrevivência. A partir daí a correlação entre aumento do rendimento e aumento de felicidade vai diminuindo de forma notável: vamo-nos habituando a gastar o dinheiro que temos! Só que, se perdermos parte desse rendimento, seremos mais infelizes do que antes de o termos… É a velha sabedoria popular de que só damos valor ao que temos quando deixamos de o ter ou, expressa em sentido económico, de que o valor de um bem é mais elevado quanto mais raro for.

O Estado e a felicidade


Estas conclusões são, nalguns aspectos, algo banais mas podem ter consequências importantes se levadas a sério. Elas colocam um desafio interessante na definição das prioridades das políticas públicas ao questionar a sua subordinação ao objectivo de maximização da riqueza associado ao crescimento económico e ao permitir introduzir outros elementos a que as escolhas públicas devem atender (como a estabilidade). Mas também servem para justificar algumas das políticas públicas actuais: as políticas redistributivas vêm a sua justificação reforçada pelo facto de o mesmo dinheiro trazer mais felicidade a quem menos tem; os impostos e outras medidas podem ser necessários, como refere Layard no seu livro, para evitar que as pessoas trabalhem demais (uma vez que após certo nível elas deixam de retirar mais felicidade da remuneração acrescida que recebem).
Há, no entanto, um problema delicado na utilização de um critério de felicidade para orientar as políticas públicas. É que a felicidade é, acima de tudo função das preferências individuais de cada um. A felicidade é menos um produto daquilo que nos acontece do que da forma como concebemos o que nos acontece. É mais autonomamente determinada (dependente da nossa concepção do sentido da vida) do que heteronomamente condicionada (dependente das circunstâncias que afectam o sentido da nossa vida).
É, neste ponto, que se coloca a questão filosófica da definição da felicidade. Desde logo, a felicidade é profundamente individual. Nesse caso, não devemos procurar fazer as pessoas felizes (seria a ditadura da bondade!) mas, como diz a Declaração de Independência Norte-Americana, garantir-lhes o direito à procura da felicidade.

A procura da felicidade


E há várias formas de procurar a felicidade. Há os que procuram uma espécie de "felicidade moral", o que corresponde à ideia aristotélica de uma vida vivida com um certo sentido (que pode ser, como defendia São Tomás de Aquino, o conhecimento de Deus). A felicidade intelectual mas não sensorial. A felicidade é assim distinguida do prazer o que, confesso, não me faz muito feliz! Curiosamente, um outro utilitarista (Stuart Mill) aceita a ideia de prazer associada à felicidade: apenas não é o prazer que algo nos traz que determina a felicidade mas, antes, o prazer que isso pode trazer aos outros… (uma forma de felicidade que procuro incutir nos outros!). Em sentido bem diferente, há também a felicidade epicurista ou hedonista em que o nosso prazer é a nossa felicidade. Só que, o prazer dissociado de um sentido da vida reduz-se a uma mera satisfação ou contentamento. É um analgésico da felicidade: alivia mas não cura.
Hoje em dia, a procura da felicidade parece dividida em dois mundos bem opostos. Os que defendem uma felicidade modesta, segundo a qual apenas devemos retirar felicidade das coisas que podemos ter! (não admira que Santo Agostinho, o seu autor original, também defendesse que o único verdadeiro amor é aquele que apenas depende da pessoa que nos ama). Ou os que defendem uma felicidade pós-moderna, feita de "boas experiências" e da procura incessante do prazer, liberto de outro sentido que não a sensação momentânea que nos causa.
Enquanto no primeiro caso, a felicidade amarra-nos ao que temos e somos, no segundo ela transforma liberdade em instabilidade e insegurança permanentes. No entanto, se há coisa que os estudos recentes nos mostram é que a felicidade necessita de estabilidade. O prazer é maior quanto maior for a sua relação a um sentido da vida (a atribuição de sentido à nossa vida, o que é diferente do sentido da vida em geral). É este último que conduz o prazer à nossa felicidade.
É em relação com o sentido da nossa vida que podemos encontrar a felicidade. A felicidade é, em larga medida, uma competência que podemos melhorar. Não estamos predispostos a ser infelizes mas também não existem receitas para atingir a felicidade. Acima de tudo e tal como dizia Thomas Paine, é necessário para a felicidade do homem que ele seja intelectualmente fiel a si próprio. E a si o que é que a/o faz verdadeiramente feliz?

quinta-feira, junho 16, 2005

Tiago Estima - as minhas "predilectas"





Veja, clicando na foto, os excelentes trabalhos do Tiago Estima numa selecção das minhas "predilectas".

Para ver mais visite o site dele

quarta-feira, junho 15, 2005

Que povo desceu à rua?






Hoje Lisboa acorda povoada de memórias, muitas delas tão anónimas que escondem heroísmos inimagináveis. Muitos deles, dos que vão caminhar até ao Alto de S.João, perdidos na multidão, vão ficar no silêncio da História e, no entanto, serviram para a construção dessa História.

Milhares e milhares de pessoas prestam hoje a última homenagem a Cunhal. Vêm do Alentejo e de toda a parte. Será um dia de ir ao poço da memória e matar a sede no deserto quando sonharam com o paraíso: a vez em que estiveram presos, a separação dos filhos, a impressão clandestina do Avante!, os longos exílios.

De trabalhadores manuais, de camponeses a intelectuais, todos tiveram um sonho e Cunhal era o sonhador que empunhava a bandeira. Haverá, por certo, muitas lágrimas de dor e despedida, mas também interrogações que se vão multiplicando: valerá a pena continuar ou este é o partido com que Cunhal sonhou e durante tantos e duros anos ajudou a construir? O Governo declarou um dia de luto nacional.

Cunhal nunca aceitou uma condecoração do Estado português, no seu despojamento, mas também porque recusava aceitar condecorações de Liberdade ao lado daqueles que nada fizerem para que ela existisse e se desenvolvesse.

A sua coerência, revolucionária, mas também ética, é um legado que deixa ao país confrangedoramente sem ética nem coerência.

O país, passada esta espuma emocional e este espasmo comunicacional, regressará à sua «apagada e vil tristeza». O povo que hoje desce à rua, em silêncio, não é por certo o mesmo que homenageou Amália ou orou pela irmã Lúcia.

É um povo que sonhou um país mais livre, menos dependente do Fado e Fátima, mais esperançado num mundo melhor e numa mais equitativa distribuição da riqueza e da terra.

Rogério Rodrigues, A Capital, 15/06/05




terça-feira, junho 14, 2005

Hoje deitei-me ao lado da minha solidão







Hoje deitei-me ao lado da minha solidão.
O seu corpo perfeito, linha a linha
derramava-se no meu, e eu sentia
nele o pulsar do meu próprio coração.


Moreno, era a forma das pedras e das luas.
Dentro de mim alguma coisa ardia:
o mistério das palavras maduras
ou a brancura de um amor que nos prendia.


Hoje deitei-me ao lado da minha solidão
e longamente bebi os horizontes.
E longamente fiquei até ouvir
o meu sangue jorrar na voz das fontes.





Eugénio de Andrade 1923-2005

segunda-feira, junho 13, 2005

Álvaro Cunhal




Álvaro Cunhal 1913 - 2005


Um homem notável que terminou a sua árdua luta.

(clique na foto para aceder a um blog dedicado a Álvaro Cunhal)

quarta-feira, junho 08, 2005

Confesso-me pirómano...






TELEJORNAL das 20 horas.

Vamos já ligar à Vanessa Labaredas que se encontra em Bandalheira da Serra onde lavra um grande incêndio que ainda não foi possível controlar:

“Boa noite Zé, Isto é um inferno, a zona é inacessível, o mato não foi cortado, o vento muda constantemente de direcção, os meios aéreos foram desviados, há falta de coordenação, esta senhora tenta salvar a casa com uma cafeteira, os bombeiros já cá deviam estar, de que é que eu vou viver agora?, já o ano passado ardeu do outro lado, as causas são desconhecidas mas há indícios claros...”

Obrigado Vanessa. Passamos agora ao João Ardido que nos fará o ponto da situação em Pasmaceira do Vale onde a situação é muito preocupante:

“Boa noite Zé, Isto é um inferno, a zona é inacessível, o mato não foi cortado, o vento muda constantemente de direcção, os meios aéreos foram desviados, há falta de coordenação, esta senhora tenta salvar a casa com uma cafeteira, os bombeiros já cá deviam estar, de que é que eu vou viver agora?, já o ano passado ardeu do outro lado, as causas são desconhecidas mas há indícios claros...”

Boa sorte João. Pepineira de Cima é o nosso próximo destino para descrever tudo o que tem “a haver” com a vaga de incêndios. Passamos imediatamente à Kátia Fogaréu que se encontra no local:

“Boa noite Zé, Isto é um inferno, a zona é inacessível, o mato não foi cortado, o vento muda constantemente de direcção, os meios aéreos foram desviados, há falta de coordenação, esta senhora tenta salvar a casa com uma cafeteira, os bombeiros já cá deviam estar, de que é que eu vou viver agora?, já o ano passado ardeu do outro lado, as causas são desconhecidas mas há indícios claros...”

É neste momento que deixo de me controlar e desejo ardentemente ver arder, até aos alicerces, os estúdios onde fazem o TELEJORNAL.

Começou a época infernal em que os telejornais repetem, dia após dia, informação irrelevante sobre os fogos, num voyeurismo que acabará por levar a população à total indiferença perante a catástrofe.

São ouvidos todos os “populares” que se encontram no local, todos os sacrificados bombeiros atordoados pelo fumo, todos os autarcas de anel no dedo e crónica falta de meios, todos os burocratas que supostamente dirigem as operações e todos, todos sem excepção, repetem as evidências e os lugares comuns que nada resolvem.

Pobre país que se compraz com o espectáculo da sua própria inépcia.

quarta-feira, junho 01, 2005

Um logro do tamanho da Europa





A “escandalosa” votação do Tratado Constitucional, ocorrida em França recentemente, deu origem a uma desenfreada actividade dos comentadores e dos políticos.

Não é caso para menos pois os condimentos estão todos presentes; a “incongruência” e o ineditismo do resultado, a excepção e o exemplo que pode ser imitado, o dramatismo e a imprevisibilidade das consequências.

Curiosamente todos parecem considerar imprescindível ao Tratado que se consiga o “apoio popular” através do voto mas ninguém se questiona sobre a exequibilidade de os europeus votarem conscientemente nos referendos. Ora o voto que está a ser pedido reveste-se de uma complexidade enorme, vejamos porquê.

Nas votações nacionais é preciso, para votar em consciência, ter uma ideia formada sobre o interesse comum, ou interesse nacional, e depois avaliar as propostas em confronto ponderando os interesses pessoais, de grupo ou de classe.

Trata-se de um processo muito complexo para o qual, aliás, a maior parte dos votantes não tem nem preparação nem paciência. Como todos sabemos essa dificuldade é resolvida através da fidelidade partidária ou da identificação com os políticos carismáticos já que são formas de dispensar análises profundas.

Quando se trata de votar nas questões europeias a complexidade é ainda muito maior. Não basta conhecer o “interesse nacional” é ainda necessário ter alguma ideia sobre o “interesse da Europa” e depois proceder a uma avaliação de como se harmonizam, ou em que medida conflituam, tais interesses. Para este efeito é ainda necessário ter uma ideia do “interesse nacional” dos países que, em conjunto e em concorrência com o nosso, pertencem à União Europeia.

A esse nível actuam grupos de pressão locais e nacionais dos diferentes países sendo preciso considerar também os lobbies internacionais e mesmo globais. Um factor adicional de complexidade deriva das diferenças culturais e, as mais das vezes, dos preconceitos e rivalidades que a história produziu.
No caso presente, a votação do Tratado Constitucional, ainda acresce a dificuldade inerente à tecnicidade da “linguagem” pois se trata de um texto legal.

Sendo, como se explicou, as escolhas muito mais complexas quando nos movemos no âmbito europeu seria de esperar que se aplicassem, para as facilitar, os mesmos remédios que são usados ao nível nacional e que descrevemos mais acima. O que acontece é que não existem a nível europeu, ao contrário do que sucede a nível nacional, nem partidos nem políticos em que os votantes possam delegar a construção das suas opiniões na base da confiança. Por isso não deve estranhar-se que, como aconteceu em França, nas votações do Tratado os cidadãos se limitem a seguir as recomendações dos políticos nacionais em que confiam no momento de votar.

Por tudo o que foi dito anteriormente parece legítimo deduzir que um número significativo de “nãos” ao Tratado acabará por vir dos europeus que, conscientes da sua própria incapacidade para escolher, não querem ser compelidos a dar uma anuência passível de ser mal usada em fases posteriores.

Quem desenhou o processo de aprovação do Tratado nos moldes em que vigora foi uma de duas coisas: ou ingénuo ou mal-intencionado. Ingénuo se realmente acreditava no funcionamento democrático do esquema e mal-intencionado se, conhecendo a impossibilidade da participação consciente dos europeus, pensou poder através da manipulação do processo encenar uma adesão popular inexistente.

O tiro saiu pela culatra mas serviu para demonstrar que a UE já será muito ambiciosa mesmo que se limite a ser um fórum permanente de negociação e de harmonização dos interesses nacionais.

Teria sido muito mais sério e operativo admitir que os povos delegariam nos seus governantes, como fazem para os assuntos estritamente nacionais, a negociação do melhor Tratado possível.

Veja o debate no DOTeCOMe Forum