A reforma do regime de arrendamento é um dos assuntos mais adiados da democracia portuguesa. Aliás, o problema tem mais de 100 anos: congeladas pela primeira vez em 1910, as rendas habitacionais só seriam submetidas a atualização condicionada a partir de 1948, com a exceção de Lisboa e Porto, voltando a ser congeladas em todo o País após o 25 de Abril de 1974.
A atualização com base na inflação é permitida a meio da década seguinte, com aplicação de um coeficiente extraordinário nas rendas mais antigas, e nos anos 90 acabam os contratos vitalícios - mas só nos novos arrendamentos, que são de celebração livre. Em 2004, o Executivo Santana tem pronta uma reforma que inclui negociação da renda entre proprietário e inquilino (como a atual) quando cai. O de Sócrates exara um diploma que permite atualizar as rendas antigas com base em avaliações oficiais dos imóveis, solicitadas e pagas pelos proprietários. Mas essa avaliação, além de poder implicar a obrigatoriedade de obras, implica também atualização do IMI. Mais: além de condicionadas ao estado do imóvel - não raro resultado do baixo valor das rendas pagas durante décadas -, as atualizações também dependem da idade e do rendimento do inquilino (a idade e o rendimento do senhorio nunca vêm ao caso).
Havendo versões díspares sobre o número de contratos de arrendamento em atualização com base na anterior lei, é evidente que ainda não foi esta a restituir aos proprietários o que é seu. Quanto ao diploma agora apresentado, apesar de propagandeado como uma alteração total das regras, mantém muitas das perversões dos regimes que o antecederam. O primordial é o entendimento do proprietário de um imóvel, que paga por ele impostos e é responsável pela sua manutenção e conservação, como acumulando ainda a obrigação de assistencialismo. Não existe, em todo o panorama jurídico português, uma tutela semelhante sobre um bem privado. E note-se que nem sequer se pode justificar a exceção com o facto de se estar a falar de habitação: no crédito bancário, quando as pessoas incumprem não há tratamentos diferenciados em função da carência económica ou da idade; o Estado não fixa o valor das prestações consoante o rendimento disponível. E decerto ninguém discute que quem não paga as prestações tem de sair da casa que pagou com juros - já a ideia de "facilitar o despejo" do inquilino incumpridor cria engulhos generalizados.
A ideia de que estar do lado do bem e dos fracos é "defender os inquilinos" e de que "defender os senhorios" é alinhar com os fortes e ricos sorri a muita gente, sobretudo à esquerda. Mas que ideia de igualdade sustenta um apartheid do mercado de arrendamento baseado na data dos contratos? Que noção de justiça aclama a expropriação extrajudicial de bens de privados para poupar dinheiro ao Estado e aliviar-nos as consciências, enquanto ao lado se perdem casas por não se poder pagá-las à banca?
Fernanda Câncio, DN 06.01.2012