Em vez de balas
No dia 1 de Maio de 1968, o Tenente largou do Tejo, rumo à Guiné, a bordo da fragata Corte Real. Era então um jovem fuzileiro, de 22 anos, recém casado, que interrompera os estudos de Economia na Universidade de Lisboa.
Subiu e desceu os principais rios da Guiné comandando as missões a partir das lanchas da Armada. Navegou no Cacheu até Farim, no Mansoa, no Geba e no Rio Grande de Buba. Ligou por mar a foz desses grandes rios e também foi a Catió, a Bolama e aos Bijagós.
A guerra era uma realidade penosa para quem como ele, jovem militante comunista, se opunha ao domínio colonial e defendia a independência das colónias. Partilhou esse drama pessoal com a sua mulher, que trabalhou como professora de História no então Liceu Honório Barreto.
A fotografia constituiu um paliativo. Ao fotografar a dignidade do povo guineense, a beleza das suas mulheres, o porte dos seus homens e o encanto das suas crianças, ele tinha a impressão de estar a fazer um gesto de amizade no contexto da guerra.
Quase não fotografou a guerra e os aparatos militares.
Dedicava-se a registar as gentes da tabanca, dos campos do arroz, os pescadores, e a garotada negra.
Felupes com os seu cachimbos, balantas em trajes de fanado, mandingas com as suas longas vestes. Rostos, corpos e gestos impressos a preto e branco.
No contexto da guerra estas eram coisas preciosas, que corriam perigo, mas que um disparo da câmara fotográfica dava a ilusão de resgatar para sempre.
Fotografias em vez de balas.
A fotografia, para o Tenente, ficaria definitivamente marcada por aquele momento inicial na Guiné. A fotografia como forma de viver, ou de sobreviver. Afirmação íntima contra a inevitabilidade do tempo e contra as inevitabilidades de cada tempo.
A fotografia não mais o abandonou. E aos setenta anos, como aos vinte, continua a desempenhar o seu papel de argamassa interior, lingando os tijolos da memória.
(Extractos do livro "Crónicas de um Tenente", 2019)
(a fotografia de cima foi feita pelo meu amigo José Carlos Alves Almeida)