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(compilado pelo jornal Expresso 23.11.4014)
As sombras de Sócrates
O nome do ex-primeiro-ministro esteve envolto durante muitos anos em processos de corrupção, mas nunca foi oficialmente suspeito de nada. Até agora.
A primeira vez que José Sócrates foi denunciado por corrupção foi em 1997, há 17 anos. Longe ainda de se tornar líder do Partido Socialista e ganhar as eleições legislativas, o político estreara-se num governo socialista em 1995, assumindo o cargo de secretário de Estado do Ambiente no executivo de António Guterres. Só muito mais tarde surgiram os casos mais conhecidos e polémicos: o Freeport em 2005, que coincidiu com sua ascensão a primeiro-ministro, e, em 2007, o processo da conclusão da sua licenciatura em engenharia civil na Universidade Independente. Em nenhum deles, no entanto, foi constituído arguido.
Cova da Beira. É a história mais antiga a envolver o nome de José Sócrates num alegado esquema de corrupção e está relacionada com a Covilhã, a terra onde cresceu e começou a sua vida profissional. As quatro cartas enviadas à Procuradoria-Geral da República e à Polícia Judiciária entre 1997 e 1998 eram bastante detalhadas. Diziam que Sócrates teria recebido 150 mil contos (750 mil euros) em "luvas" por causa do concurso público para a construção do aterro sanitário promovido pela associação de municípios da Cova da Beira (de que faz parte a Covilhã). Teria sido ele, segundo as denúncias, a nomear a equipa técnica que escolheu o vencedor.
A investigação demorou dois anos a arrancar e, uma década depois, em 2007, acabaram por ser acusadas três pessoas: Horácio Luís de Carvalho, dono da empresa, a HLC, que ganhou o concurso público, pelo crime de corrupção ativa; António José Morais, engenheiro e professor universitário, dono da empresa AS&M, responsável pela análise das propostas a concurso, pelo crime de corrupção passiva; Ana Simões, sócia de Morais e sua mulher à data dos factos, pelo mesmo crime. Os três foram absolvidos em Janeiro de 2013, apesar de o Ministério Público ter recolhido provas de transferências de 58 mil euros de uma conta offshore de Horácio Luís de Carvalho para uma offshore do casal, ambas na ilha de Jersey. A Polícia Judiciária ainda tentou fazer buscas, no início da investigação, à casa de Sócrates, mas o procurador titular do caso achou que eram descabidas.
O ex-primeiro foi, de qualquer forma, ouvido por escrito como testemunha durante a fase de julgamento, negando qualquer envolvimento no concurso. Embora não tivesse sido acusado, Carlos Santos Silva, amigo de longa data de Sócrates e detido esta semana por crimes em que estão os dois implicados, esteve também ligado ao caso Cova da Beira. O seu nome surgia nas denúncias como uma pessoa muito próxima do então secretário de Estado do Ambiente, sendo que era sócio de Horácio Luís de Carvalho numa empresa chamada Conegil, que por sua vez fazia parte do consórcio da HLC que ganhou a adjudicação do aterro.
Licenciatura. Um blogue esteve na origem da divulgação do caso, em março de 2007. Aparentemente, José Sócrates teria obtido o grau de engenheiro civil concluindo a licenciatura na Universidade Independente de forma irregular, em 1996. Quatro das cinco cadeiras feitas naquela instituição tinham sido ministradas por António José Morais, o engenheiro acusado de corrupção no caso Cova da Beira. E os monitores das cadeiras estavam todos eles igualmente envolvidos no concurso público da Cova da Beira, trabalhando como consultores para a empresa de Morais e ajudando-o a escolher tecnicamente qual a melhor proposta.
Nesse mesmo ano, Morais foi nomeado diretor do Gabinete de Estudos e Planeamento de Instalações do Ministério da Administração Interna por Armando Vara, amigo e colega de governo de José Sócrates. E viria a atribuir uma série de trabalhos de fiscalização de obras ao arquitecto Fernando Pinto de Sousa, pai de Sócrates.
Quanto à quinta cadeira, de Inglês Técnico, foi dada pelo próprio reitor da universidade, Luís Arouca, com o exame a ser realizado a um domingo, à mesa de um restaurante. O Ministério Público abriu um inquérito-crime mas arquivou-o logo a seguir, passado dias, alegando que não se provava o eventual crime em causa: falsificação de documento (neste caso, do certificado de habilitações).
Ainda assim, um conjunto de 16 escutas que constavam de um processo-crime relacionado com a gestão da Universidade Independente acabaram por ser divulgadas mais tarde pelo Correio da Manhã. Eram conversas entre Arouca e José Sócrates, gravadas em março de 2007, em que o então primeiro-ministro pedia ao reitor para que não revelasse a um jornalista do Público os nomes dos seus professores.
Freeport. Foi o mais mediático dos processos que envolveram Sócrates. Tornou-se do conhecimento público mal o inquérito-crime foi aberto, em plena campanha eleitoral, quando José Sócrates concorreu pela primeira vez a primeiro-ministro, em 2005, contra Santana Lopes. O enredo envolvia a aprovação ambiental do projecto de outlet Freeport, em Alcochete, numa zona de proteção especial, em 2002, no final do segundo governo de Guterres, quando Sócrates ainda era ministro do Ambiente.
Numa primeira fase, até 2007, o que saiu na imprensa foi contraditório. Sócrates aparecia como suspeito, mas soube-se que a denúncia envolveu um assessor de Santana Lopes, Miguel Almeida, o que retirou credibilidade à tese de que o então ministro teria recebido 500 mil contos em ´luvas'. O caso seria relançado nos media em 2009, quando a TVI divulgou um vídeo clandestino que constava de um processo paralelo em Londres e em que uma das figuras-chave na aprovação ambiental do outlet, o consultor inglês Charles Smith, admitia terem sido pagas luvas ao político, explicando que isso teria sido feito através de um primo.
Apesar de não poder ser admitido como prova em Portugal, o vídeo catapultou a investigação ao caso. A Procuradoria-Geral da República resolveu transferir o processo do Ministério Público do Montijo para o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) e destacou dois procuradores para trabalharem a tempo inteiro com a Polícia Judiciária de Setúbal.
Mas no fim o que veio a dominar o processo foi a forma intempestiva como terminou o inquérito, no verão de 2010, com um despacho que incluía 27 perguntas que ficaram por fazer a Sócrates, por falta de tempo. O então ainda primeiro-ministro, já no seu segundo mandato, constara sempre como suspeito não oficial, mas nunca foi constituído arguido ou ouvido sequer como testemunha. Dois consultores, Charles Smith (o homem do vídeo) e Manuel Pedro, foram acusados do crime de extorsão. A tese oficial passou a considerar que, afinal, não tinha havido corrupção. A história teria sido inventada pelos intermediários para poderem receber mais dinheiro do grupo Freeport. Os dois foram a julgamento e o tribunal absolveu-os em 2012, dez anos depois dos acontecimentos.
Face Oculta. Foi o seu último escândalo e rebentou depois de ter sido reeleito em 2009. Alegadamente, José Sócrates terá tentado controlar a TVI, uma estação de televisão que lhe era bastante crítica, e esse controlo passava por a Portugal Telecom comprar a posição dominante no capital social detida pelo grupo espanhol Prisa (dono do jornal El País). Isso não chegou a concretizar-se, mas aconteceram alguns movimentos de bastidores e o Ministério Público chegou a propor um inquérito-crime para apurar se tinha ocorrido um crime de atentado contra o direito de Estado.
O caso surgiu de forma fortuita. A investigação a uma rede de corrupção e tráfico de influência com epicentro em Aveiro, tendo como protagonista um industrial de sucata, Manuel Godinho, envolveu escutas a Armando Vara (amigo de Sócrates e então vice-presidente do Millennium BCP) e a Paulo Penedos, consultor jurídico da Portugal Telecom. Essas escutas, que incluíam conversas entre Vara e Sócrates, levaram o coordenador da PJ Teófilo Santiago e os procuradores João Marques Vidal e Carlos Filipe, em Aveiro, a extrair uma certidão em Junho de 2009 para abrir um processo-crime autónomo. O que se seguiu foi uma sucessão controversa de decisões. O procurador-geral da República, na altura Fernando Pinto Monteiro, enviou as escutas entre Vara e Sócrates para o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, mas Noronha do Nascimento não as validou, mandando-as destruir. O PGR optou por não abrir um inquérito-crime e, para evitar a consulta dos factos por terceiros, fez um arquivamento administrativo, uma figura até então desconhecida e cuja legalidade foi posta em causa por muitos juristas.
No fim, e depois de fazer correr muita tinta nos jornais, o assunto já tinha deixado de ser sobre se Sócrates tinha ou não cometido um crime, mas sobre a forma como a Justiça se comporta perante alguém como um primeiro-ministro.