Graffiti de Klaus KlingerA depressão é a esperança da revoluçãopor Miguel Poiares MaduroNos tempos da revolução havia um clássico graffiti ou slogan de parede que dizia que a revolução era a esperança dos oprimidos. Há dias, ao passear por Lisboa, dei de caras com uma nova versão: "a revolução é a esperança dos deprimidos". Nesta mudança de uma palavra está grande parte da mudança que se processou em Portugal. Hoje, os portugueses já não se sentem oprimidos mas sim deprimidos! Talvez seja por isso que a política já não promete soluções mas sim optimismo. É a política prozac: como é difícil curar as causas da doença combate-se a sensação de mal-estar que ela causa.
Muito do que está escrito (frequentemente mal escrito…) nas nossas paredes reflecte muito do que mudou no nosso país desde os tempos da revolução. Os graffitis são um espelho do que se alterou na concepção do mundo dos portugueses, na sua esfera pública e privada.
Em primeiro lugar, a grande maioria das pinturas de parede deixaram de ser políticas para passarem a ser pessoais. Esta é a primeira forma de pessoalização do espaço público. Só que até a natureza das mensagens pessoais gravadas nos espaços públicos mudou: o clássico "Maria amo-te" é cada vez mais substituído por referências explícitas ao fazer amor com Maria…A fazer fé no que se lê nas paredes de Lisboa os portugueses estão hoje muito mais confortáveis com a exposição pública da sua vida sexual: aquilo que antes se lia nas portas de uma casa de banho pública hoje é escrito nas paredes de uma qualquer casa de Lisboa… O amor (talvez porque é muito mais íntimo que o sexo) quase desapareceu dos muros de Lisboa (esperemos, aliás, que não tenha desaparecido de todo!). Do que os portugueses parecem gostar de falar em público é de sexo, o seu e o dos outros. Deprimidos mas entretidos, dir-se-ia.
Mesmo quando as mensagens políticas subsistem elas abandonaram a utopia revolucionária (como dizia outro slogan, não há revolução de gravata…) e o conflito de classes (trabalhadores do mundo, investi, podia ser o novo lema) para passarem a exprimir uma insatisfação existencial (o aborrecimento ou a depressão são os sentimentos mais frequentes na expressão política nas nossas paredes). Também aqui há uma certa pessoalização. Já não são grandes visões do mundo (que destino Portugal?) e de certas ideologias que comandam a relação dos portugueses com a política mas sim uma apreciação centrada no impacto que a política tem em cada um de nós. Esta pessoalização da política, com o consequente abandono do idealismo (um juízo assente no eu e já não num destino comum ideal) é, no entanto e ao contrário do que por vezes se afirma, positiva. É que é através deste interesse individual que a participação e a responsabilidade política melhor funcionam. O que não podemos é confundir esta crescente visão pessoal da política com a negação de um destino colectivo que implica que nem sempre os nossos interesses pessoais prevaleçam.
Hoje, os portugueses, felizmente, já não se sentem oprimidos mas também já não acreditam em promessas de "mundos perfeitos". E ainda bem que as novas gerações já não crêem em utopias. As utopias políticas apenas conduziram a pesadelos. Para parafrasear um outro slogan famoso é a imaginação que deve aceder ao poder e não a utopia. A imaginação, ao partir da realidade, respeita o mundo. A utopia, ao pretender subverter a realidade, instrumentaliza o mundo e os que o habitam ao serviço de uma qualquer ideologia.
A liberdade e a democracia banalizaram-se e, com isso, tomámos simplesmente consciência de que não existem soluções perfeitas ou milagrosas. No entanto, podemos ter conquistado liberdade e autonomia mas ainda não aprendemos a viver com o risco e a insegurança que isso comporta. Portugal é hoje uma sociedade livre cujo povo ainda não se sente totalmente confortável a viver em liberdade. A autoridade oprime mas dá segurança e estabilidade. Daí, o instinto tão forte em Portugal para o proteccionismo e o imobilismo. Quando em Portugal se evoca o passado não é no bem estar que se pensa mas sim na segurança. Não tanto a segurança física mas sim a segurança de conhecer e ter garantida uma certa forma de vida, mesmo que não seja uma grande vida. A depressão de que sofrem os portugueses tem origem na dificuldade em lidar com o risco inerente ao exercício da liberdade e manifesta-se hoje, de forma particularmente forte, devido aos desafios actuais à nossa tradicional forma de vida.
Mas esta depressão traz, no meio do pessimismo generalizado, sinais positivos. Os portugueses cada vez acreditam menos em slogans maniqueístas e cada vez se mostram mais abertos a debater o nosso modelo de sociedade. O verdadeiro dilema português está, como já aqui escrevi uma vez, na dificuldade em optar entre uma sociedade de fidelidades pessoais que protege as posições adquiridas de muitos portugueses mas limita a capacidade de renovação e mobilidade social ou uma sociedade assente no mérito que premeia os melhores e promove a inovação e dinamismo social mas comporta maiores riscos e insegurança nas expectativas da vida dos portugueses. Por um lado, só existe verdadeira liberdade quando sabemos que podemos ser premiados pelas iniciativas que tomamos e as competências que demonstramos. Por outro lado, a concorrência e o risco que essa liberdade traz assusta-nos. O que é também importante notar é que uma sociedade mais proteccionista e menos meritocrática não produz necessariamente mais igualdade. Portugal é hoje um bom exemplo: somos o país com maior desigualdade na distribuição do rendimento dos 25 Estados da União Europeia.
É este questionar colectivo que é o aspecto mais positivo da nossa proclamada depressão. Hoje, a discussão política não é apenas sobre eles (os políticos) para ser também sobre nós (os portugueses). Mas é importante que a culpa que se atribuía sempre aos políticos (esses seres diabólicos de outros planetas que ocupavam o corpo de inocentes cidadãos portugueses…) não seja simplesmente transferida para os portugueses (cujo carácter nos destinaria ao atraso e subdesenvolvimento). Ao contrário do que dizem algumas vozes ilustres: o problema não são os portugueses (e, com isso, eles querem dizer todos os portugueses menos eles), o problema é o nosso modelo de sociedade. Compete aos portugueses decidir que modelo querem. Também aqui, no entanto, é importante não esperar por um qualquer Dom Sebastião. Somos nós e não eles quem tem que decidir alguma coisa.
Para já, a depressão sentou-nos no sofá num processo positivo de psicanálise colectiva. E agora que falamos abertamente dos nossos traumas colectivos, temos duas opções: ou passamos de deprimidos a abatidos ou agimos sobre eles. Eu tenho algum optimismo. Acho que esta depressão é sinal de que os portugueses estão finalmente a descobrir a verdadeira política: desconfiam de messianismos e de grandes utopias, mobilizam-se para lá dos partidos (sem os substituir), esquecem os slogans e concentram-se nos problemas. Falta "apenas" criar confiança no sistema político, de forma a que este possa traduzir essa vontade de reforma em soluções que, mesmo que contestadas por alguns, apareçam como legítimas aos olhos de todos. Como se poderia escrever nas paredes: será a depressão o instrumento da revolução?
por Miguel Poiares MaduroMiguel.Maduro@curia.eu.int