segunda-feira, fevereiro 05, 2024

Pobres Criaturas


Pobres Criaturas
A história, cruamente, é a seguinte: uma mulher grávida atira-se de uma ponte. Um cirurgião, ele próprio uma versão do Frankenstein, recupera os corpos recém falecidos e transplanta o cérebro do feto para o crânio da mãe.
Um percurso feito ao contrário; todos nós, no processo de crescer, recebemos algum do “cérebro dos pais” e não dos filhos.
Este estratagema inverosímil, criado pelo grego Yorgos Lanthimos, a partir de um livro de Alasdair Grey, vagamente situado no virar do século XIX para o XX, faz-nos percorrer uma via sacra de consequências exóticas e chocantes. Um cérebro infantil, que acaba de descobrir o mundo num corpo de mulher adulta, permite-nos espreitar o que somos antes de sermos o indivíduo social.
A trama desafia-nos ao longo de duas horas e meia para temas como a educação, o erotismo e o sexo, a parentalidade, as imposições da sociedade, a ética médica, a manipulação, o livre arbítrio, a “perversidade” infantil, etc, etc.
Presenciar “Pobres Criaturas” pode ser considerado uma experiência, mais do que um espectáculo, tão íntimas são as questões em que nos obriga a remexer.
Uma experiência da qual ninguém sairá como entrou.
Os ambientes criados para o filme são oníricos, talvez por pretenderem mostrar a maneira infantil de ver o mundo.
A certa altura a criança/mulher Bella Baxter (Emma Stone), escapa ao seu criador Godwin Baxter (Willem Dafoe), a quem sempre trata por God, para descobrir o mundo.
Nesse percurso passa por Lisboa com o seu amante, meramente instrumental, já que Bella não estabelece qualquer relação entre sexo e afectividade. A cidade que ela vê é fabulosa, com carros eléctricos pelo céu, e uma fonte compulsiva de pastéis de nata. Curiosamente, é num navio que parte de Lisboa para novas aventuras.
Quis o acaso que eu visse “Pobres Criaturas” quando estava a ler “A Civilização do Espectáculo”, de Vargas Llosa, e concretamente o capítulo “IV. O desaparecimento do erotismo”.
Uma parte substancial do filme são as peripécias resultantes da atracção sexual que Bella, uma bela mulher, desperta nos incautos masculinos; mostra como eles estão impreparados para um jogo em que a parceira, para seu desespero, quebra todas as regras.
O cérebro infantil ainda não tem a maturidade suficiente para perceber toda a teia de questões psicológicas e sociais que envolvem a actividade sexual, muito para além da componente meramente física e, no limite, meramente animal.
Ao ver como Bella descobre o seu corpo percebemos melhor as reservas postas por Llosa, no seu livro, relativamente aos “workshops de masturbação” organizados pela Junta da Estremadura, para meninos e meninas a partir dos 14 anos, com o delicioso nome “O Prazer Está nas Tuas Mãos”.
Termino com palavras de Vargas Llosa extraídas do livro acima mencionado:
“O sexo desempenhou um papel de destaque na criação do indivíduo e, como mostrou Sigmund Freud, nesse domínio, o mais recôndito da soberania individual, forjam-se as características distintivas de cada personalidade, o que nos é próprio e nos torna diferentes dos outros. Esse é um domínio privado e secreto e deveríamos procurar que continue a sê-lo se não quisermos tapar uma das fontes mais intensas do prazer e da criatividade, isto é, da civilização”.