domingo, fevereiro 27, 2005

José Gil e os portugueses (I)





Li Portugal Hoje - O Medo de Existir de José Gil numa tarde, talvez demasiado depressa, e cheguei ao fim com um sentimento confuso de frustração e com a impressão de ter apenas lido uma introdução ao que esperava encontrar.

Acontece que nos dias que se seguiram, durante uma campanha eleitoral de triste memória, dei por mim a pensar frequentemente no livro, fui relê-lo e percebi como é importante.

Diz José Gil que o 25 de Abril se recusou "a inscrever no real os 48 anos de autoritarismo salazarista", que nunca se fez o luto do fascismo e que, por isso, "o que se quis apagar insiste em permanecer e sobrevive no medo e na irresponsabilidade.

Não posso estar mais de acordo. Os portugueses convenceram-se de que a revolução foi exemplar porque não foi vingativa, quiseram acreditar que os cravos nas espingardas encerravam por si só uma etapa negra, ficaram felizes porque Américo Tomás, Marcelo Caetano e os pides foram apeados, mas tentaram esquecê-los rapidamente, em nome dos amanhãs que cantavam, e nunca mais quiseram verdadeiramente ocupar-se deles.

Isto fez com que não construíssem a democracia diferenciando-a e consolidando-a com o passado fascista. (Seria interessante aprofundar o que se passou noutros países, sobretudo em Espanha, para comparar factos, atitudes e consequências.) Penso que assim se criou ou se agravou um hábito de desresponsabilização colectiva. Não estará aqui uma das causas no nosso atraso, da apatia e da falta de iniciativa que nos coloca hoje na cauda da Europa ?

A perda de memória passou a aplicar-se às figuras da história recente: Cavaco Silva já pode voltar a ser herói, Guterres vai a caminho e Santana Lopes só terá que ser suficientemente paciente para esperar.

O processo de esbatimento estendeu-se também ao que se passou após o 25 de Abril, nomeadamente ao PREC. Como é que as verdadeiras fracturas que atravessaram este período evoluíram até se chegar à actual vitória com 59% do chamado "povo de esquerda"? É importante revisitar este período. Li recentemente alguns jornais publicados nas vésperas das Legislativas de 1976 e fiquei a pensar que temos que tentar perceber o que é que é que ficou do processo revolucionário, como e onde. Há que pôr por escrito muita coisa antes que a memória viva desapareça. Seria também interessante que surgissem obras de ficção que permitissem aos jovens vivências de factos e ambientes. Não por revivalismo bacoco, mas porque só se poderá agir bem no presente se se conhecer e interiorizar o que está para trás.

Não deixemos que as memórias fiquem reduzidas à sobrevivência de umas quantas palavras de ordem como "Fulano amigo, o povo está contigo" (para qualquer bicho careto) ou "Assim se vê a força do PP"!...

Joana Lopes

A "esquerda" que ganhou e a esquerda que perdeu





Muito se tem comemorado a retumbante “vitória da esquerda”.
Sem querer ser desmancha-prazeres sempre vos digo que seria prudente moderar os ímpetos e passo a explicar por quê.

A melhor distinção direita-esquerda que conheço é: todos dizem desejar o bem público mas para a direita ele é alcançável sem acabar com o capitalismo e para a esquerda é imprescindível a transformação radical do sistema. É portanto à luz desta definição que eu avalio os resultados de 20 de Fevereiro.

A pergunta que deve ser formulada é: havia no dia 20 de Fevereiro mais portugueses convencidos da necessidade da superação do capitalismo, dispostos a propiciar a emergência de uma nova forma de produzir em sociedade, do que no dia 20 de Janeiro ?
Aposto que não.
Até penso que grande parte dos votantes dos partidos de esquerda nem sequer associam o PSD e o CDS ao governo Santana/Portas que tão claramente mostraram rejeitar. Grande parte dos dirigentes do PSD saem até prestigiados pela mão da esquerda desta curta experiência “santanista” (lembramos Pacheco Pereira, Marcelo, Cavaco, Manuela Ferreira Leite, António Borges e muitos outros) e constituem-se como perigosos inimigos futuros.

A culpa disto tem que ser atribuída àqueles que, por sofreguidão do poder, concentraram todos os trunfos eleitorais na exploração, até à náusea, das “peripécias santanistas”, tirando partido de uma fama longamente construída do “play-boy” e explorando a tendência portuguesa para a inveja (como explica José Gil).

A exploração fácil do “santanismo” foi, pelo sim pelo não, complementada pelo elenco habitual de “medidas sociais” em que cada partido tenta sempre superar os concorrentes esmerando-se no “caderno reivindicativo” (Sócrates considerou Bagão populista por baixar as taxas de IRS mas considera responsável prometer “tirar 300.000 idosos da miséria” e a “criação de 150.000 postos de trabalho”).

Alguns dirão que sem este oportunismo a esquerda não teria vencido as eleições mas cabe perguntar se esta vitória serve para alguma coisa. Cabe perguntar se vencer sem um claro programa de transformações progressistas não redundará, como no passado, numa nova machadada na esperança que os portugueses deveriam depositar na esquerda (a desilusão que percorre a sociedade brasileira na sequência da eleição de Lula da Silva é ilustrativa deste perigo).

Quando falo de transformações progressistas estou a pensar na definição de esquerda apresentada mais acima, numa mudança de paradigma sócio-económico, e não do “Estado Social” que é hoje, por falta de imaginação, a bandeira de todos os partidos à esquerda do PSD. Temos em Portugal um partido que se chama “social-democrata”, o PSD, mas aqueles que realmente defendem a social-democracia, entendida como “capitalismo+estado social”, são o PS, o PCP e o BE.

Por muito que invoquem o “marxismo-leninismo” ou as “propostas fracturantes” quer o PCP quer o BE (do PS nem vale a pena falar) têm vindo a capitular perante o modelo da social-democracia. Desapareceram as referências à superação do capitalismo que é cada vez mais contestado com base nas injustiças da redistribuição e não por constituir um empecilho para o desenvolvimento da espécie humana.
Trata-se mais de “cuidar dos pobrezinhos” do que de abrir caminho para um novo patamar da humanidade em que os “pobrezinhos” sejam um anacronismo.

Para aqueles que duvidem do que eu digo deixo um desafio: imaginem que a maioria absoluta tinha sido dada não ao Sócrates mas ao Louçã, ou ao Jerónimo e pensem, no vosso íntimo, se eles realmente estão preparados, se têm vindo a criar as condições políticas para transformar profundamente a nossa sociedade.

Em suma: venceu a “esquerda” que temos e perdeu a esquerda que devíamos ter.

Veja o debate no DOTeCOMe Forum

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terça-feira, fevereiro 22, 2005

A “política” como ópio do povo





Parafraseando Marx procuramos compreender como certas formas de fazer política têm o mesmo efeito alienatório que era atribuído à religião.

Paradoxalmente, ao longo do século XX, assistiu-se a todo o tipo de abastardamentos da política que fizeram dela, apesar do aviso de Marx, um conjunto de comportamentos de tipo religioso; os pseudo-messias, a crença na redenção longínqua e em uma nova vida “pós-qualquer coisa”, a permanente busca e castigo dos “hereges”, e outros.

A política era uma forma de escapar aos tormentos de cada dia e projectar-se num futuro ideal.
Aqueles que não eram “tocados por essa luz” precisavam de ser catequizados. Um dos maiores equívocos consistia em não se pôr sequer a hipótese de alguém não querer ou de alguém não considerar viável o mundo radioso que se almejava.

Essas perversas semelhanças entre a política e a religião já foram objecto de muitos e variados estudos e anátemas.

Na sequência da queda do muro de Berlim a política começou a parecer-se cada vez menos com a religião e a parecer-se cada vez mais com o futebol; a transcendência deu lugar ao primarismo, os “horizontes que cantam” desapareceram dos discursos, em vez de Messias passámos a ter os habilidosos “bons de bola” e em vez de hereges temos apenas as “claques” da outra cor.

Temos também o “offside” do Santana quando foi nomeado PM, as mudanças de treinador com “chicotada psicológica” protagonizada recentemente por Paulo Portas, as “transferências milionárias” do tipo Freitas do Amaral e os laivos de “apito doirado” atribuídos à dissolução do Parlamento à qual se seguiu uma “goleada” da equipa do Sócrates.

Os comentadores políticos já são pelo menos tão famosos como os comentadores desportivos e alguns até transitam elegantemente de uma condição para a outra (vide Santana e Seara, por exemplo).
Pacheco Pereira e Marcelo Rebelo de Sousa são as “irmãs Lúcia” destes novos tempos.

Enquanto que na sua “fase religiosa” a política se movia por grandes objectivos gerais, nesta “fase futebolística” a política é o reino dos cadernos reivindicativos de efeitos imediatos.
Mesmo os partidos com tradições revolucionárias, como o PCP, já só propõem os aumentos das pensões, e do salário mínimo em vez do “mundo novo” e do “homem novo”.
A esquerda moderna, ou seja da moda, adiciona umas pitadas de ervas “fracturantes” para ganhar as vanguardas do Bairro Alto.

A melhor distinção direita-esquerda que conheço é: todos dizem desejar o bem público mas para a direita ele é alcançável sem acabar com o capitalismo e a esquerda pensa que para isso é imprescindível a transformação radical do sistema.

Mas já ninguém fala do sistema excepto aqueles que, sintomaticamente, dizem que “outro mundo é possível”.
Notem bem: “é possível” e não “é desejável”, “é urgente” ou “deverá ser assim”.

Ninguém parece querer alterar profundamente as regras do sistema (do campeonato), as vitórias e as derrotas emanam dos fait-divers (dos dribles) amplificados pela comunicação social (pelas claques).
O leque de escolhas políticas disponíveis é demasiado estreito.

Estamos condenados ao clubismo mais delirante e ao “síndrome do penalti” que é uma forma de cegueira que nunca permite admitir os castigos contra a nossa equipa.

As campanhas eleitorais que estamos a viver são como um jogo de futebol em que, após 90 minutos de invectivas à mãe do árbitro e dos adversários, a vitória se decidisse não pelas bolas entradas na rede mas por votação dos adeptos presentes no estádio.

Infelizmente a política não é um jogo “a feijões”.

Veja o debate no DOTeCOMe Forum

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quarta-feira, fevereiro 16, 2005

Cenas dos próximos capítulos





...como nas telenovelas.

Deixem-me fazer de advogado do diabo, como é costume, e olhar por cima das próximas eleições para um horizonte de dois anos.

- no dia 20 de Fevereiro de 2005 o PS ganha as eleições (como verão é indiferente se tem maioria absoluta ou não) e forma governo com pompa e circunstância. Passa imediatamente a governar na bissetriz das pressões das várias corporações que participaram da vitória eleitoral.

- as condições económicas e sociais, já de si bastante difíceis à partida, são atiradas pela conjuntura depressiva europeia para a quase ruptura

- A direita que se tinha libertado do Santana Lopes, entretanto substituído pelo Prof. António Borges, vai capitalizando todos os descontentamentos e consegue criar um consenso tecnocrático com base nas recomendações do "Compromisso Portugal"

- O Prof. Cavaco Silva, entretanto eleito Presidente da República decide, perante os indicadores catastróficos, dissolver o Parlamento mesmo que o Governo tenha o apoio de uma maioria (o precedente foi criado por Sampaio)

- Os partidos da direita ganham por maioria absoluta com base num programa que recupera todas as teses do liberalismo económico que o PS era suposto desmontar com a sua eleição em Fevereiro 2005. O amigo de Cavaco, Prof. António Borges, forma um governo recheado de gestores e académicos de grande reputação técnica.

- As "reformas estruturais" há tanto reclamadas pela direita, agora referendadas pelo voto, são finalmente executadas. Cavaco apoia tudo isso da sua cadeira presidencial.

- A esquerda vê-se de novo remetida para um degrau mais abaixo na sua interminável luta defensiva.

Esta história, cujo triste fim lamento, deve-se ao facto de a esquerda ter ido atrás do engodo do Santana.

Santana foi um brinde caído dos céus, um adversário demasiado fácil.

A esquerda concentrou-se na sucessão de pretextos que Santana fornecia e argumentou como se o problema estivesse nos defeitos de Santana em vez de estar no sistema económico e nos interesses de classe.

Como a vitória nas eleições parecia inevitável tornou-se suspeito quem argumentasse, como eu fiz, que essa vitória se devia basear num projecto de esquerda consistente em vez de ser construída sobre a rejeição dos adversários.

Quem viu o debate de ontem percebeu que Socrates vai ganhar estas eleições mas não tem ideia nenhuma de como vencer os enormes problemas que o esperam. O "choque tecnológico", mesmo que tenha sucesso, só pode apresentar resultados daqui a meia dúzia de anos. Os problemas não podem esperar tanto tempo.

O PCP e O BE defendem causas sociais meritórias mas a sua preocupação é essencialmente eleitoral (um não pode perder mais votos e o outro cedeu ao "cheiro a palha").

Sem coragem para romper o falso dilema que opôe o liberalismo ao "assitencialismo do Estado", incapazes de inventar um novo quadro de escolhas e de decisões, os partidos de esquerda caminham para uma "vitória de Pirro".

Por tudo isto, profundamente desiludido, decidi não votar em qualquer partido.


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terça-feira, fevereiro 15, 2005

Eleições na sociedade da meta-informação





Antes de mais convém explicar o que é a sociedade da meta-informação. É a sociedade actual em que recebemos muito mais meta-informação do que informação.

E o que é meta-informação ? É informação que se destina a principalmente a condicionar a forma como “lemos” a informação.

Vejamos um exemplo simples: alguém que viva numa sociedade agrícola numa região remota pode encontrar durante uma jornada no campo, em contacto directo com a natureza, vários factos que não sabe interpretar (informação). Quando chega a casa poderá eventualmente consultar os mais velhos ou, se tal não resultar, colocar a questão na aldeia quando for à missa no Domingo seguinte. As explicações obtidas, certas ou erradas, que passarão provavelmente a servir de padrão de “leitura do real” constituem meta-informação. Verifica-se uma proporção entre informação e meta-informação que é largamente favorável à primeira.

Hoje vivemos quase todos em ambientes urbanos, com grande intensidade tecnológica na área da comunicação, e pode dizer-se que a “invasão” da meta-informação é quase inescapável; o “outdoor”, o jornal, a televisão e quase tudo o que nos rodeia emite meta-informação para nós praticarmos, consumirmos, votarmos, em suma, para obter de nós comportamentos em resultado de uma determinada “leitura” do mundo que nos é proposta.

As tecnologias digitais vieram, pela facilitação brutal da produção de réplicas, acelerar este processo que está ainda em desenvolvimento.

É claro que toda a vida em sociedade pressupõe esse condicionamento mas na época actual, com o surgimento de actividades e sectores económicos especializados e dedicados, a meta-informação alcançou proporções esmagadoras.

Os pobres humanos, que se debatem há milénios com os limites das suas percepções na captação do mundo real, são assim ainda mais desmoralizados por mensagens que constantemente se propõem ensinar-lhes a ver o que parecia óbvio.

E o que tem isso a ver com as eleições ?

Os políticos são alguém que considera ter a missão levar-nos a determinados comportamentos sociais, nomeadamente a determinadas escolhas eleitorais.
A persuasão baseia-se no pressuposto de que tais pessoas apreenderam a realidade social (e até a natural) de forma mais completa e mais fidedigna do que nós e se propõem trazer-nos vantagens com base nisso. É um processo em que nós somos convidados a ver o real pelos olhos de outrem em troca de hipotéticos benefícios.

Como se tal não bastasse existem os comentadores políticos.
Estes propõem-se ensinar-nos a “ler” aquilo que os políticos dizem.

Acontece frequentemente o cidadão assistir a uma intervenção produzida por um político, com a duração de dez minutos, e depois estar durante uma hora a escutar três comentadores que caridosamente lhe “explicam” aquilo que acabou de ouvir. É caso para dizer que deveríamos passar a votar nos comentadores.

Recapitulando: o político “explica-nos” o mundo em que vivemos e o comentador “explica-nos” a explicação produzida pelo político. Estamos portanto a receber meta-informação de segundo grau, pelo menos, porque também há comentadores que discorrem sobre as “explicações” dadas por outros comentadores e assim sucessivamente.

Por este processo o mundo real vai ficando cada vez mais longe, soterrado em camadas sucessivas de “explicações” e a sua existência torna-se, no essencial, uma matéria de fé.
Trata-se da mais forte ameaça ao materialismo de que há memória.

Os comentadores estão no mesmo patamar dos videntes.
Se é verdade que não “viram” uma qualquer divindade também é verdade que se lhes “revelou” o mundo, o que não é feito menor. E também eles, como os videntes, são comentadores por razões que escapam aos comuns mortais, são por que são.

No ponto a que as coisas chegaram podemos vir a deparar com uma situação em que os políticos deixam de se preocupar em agradar ao povo e passam a concentrar-se na tarefa de “ganhar” os comentadores; o resto virá por acréscimo.

Já não estamos longe. Já há quem assista a um atropelamento no Rossio mas precise de se convencer da existência do facto dando um “salto” ao blog do Pacheco Pereira.

Na fase final poderemos até correr o risco de ver o Sócrates decretar dois dias de luto nacional pela morte do ABRUPTO (Vá de retro Santanaz !!!).


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sexta-feira, fevereiro 11, 2005

Lonjuras

A Joana fez duas grandes viagens.
Para ver as fotos da Patagónia e da China clique na imagem:




sexta-feira, fevereiro 04, 2005

ALELUIA ! Temos de novo liberdade de expressão





Fiquei comovido quando ouvi hoje dizer, no Telejornal, que o Professor Marcelo vai voltar; na RTP 1 terá um programa carinhosamente intitulado "as escolhas de Marcelo".

Para dizer o que lhe vai na alma, em horário nobre, ainda receberá concerteza uns cobres.

Nós, que não temos pulpito nem avença, devemos afastar toda a inveja e alegrar-nos; como nos explicaram os clarividentes dirigentes dos partidos de esquerda o que está em causa, mesmo que não pareça, é a liberdade de expressão.

Libertemo-nos pois...

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Eu não critico o Marcelo mas confesso que tenho inveja.

Quem eu não suporto são aqueles que, por não saberem fazer melhor, têm o arrojo de usar politicamente o caso Marcelo invocando o perigo de o Santana acabar com a liberdade de expressão. Trata-se de uma irresponsabilidade do tipo "vem aí o lobo".

O ridículo de tal tese é patente; como poderia acabar com a liberdade de expressão um governo que foi acossado pela maior campanha mediática de sempre e que, como ficou demonstrado, não tinha a menor influência na comunicação social.

Como dizia Alain Minc na entrevista de ontem ao Público:

É Berlusconi quem pode, não é Berlusconi quem quer

quarta-feira, fevereiro 02, 2005

Reformas por onde e quem começar ?

Reformas por onde e quem começar ?
"A nossa vontade reformista está prisioneira de uma certa 'forma de vida'"

por Miguel Poiares Maduro in DN



Em Portugal estamos todos de acordo são necessárias reformas. Não sei até porque se fala tanto de pactos. Uma vez que todos parecem estar de acordo, não é necessário pactuar nada. Dos senadores aos políticos no activo, dos taxistas aos professores, este país está embalado de uma enorme vontade reformista.

Não esperem reformas no entanto. No que concerne às reformas, somos um pouco como aquele grupo de "acção" que no filme dos Monty Python A Vida de Brian planeava libertar Brian ( "representando" a figura de Cristo)

"- Temos de o libertar.

- Sim, não podemos esperar mais, tem de ser agora.

- É isso mesmo, temos de agir.

- Basta de conversa e vamos libertá-lo.

- Sim, temos de passar das palavras aos actos.

- É isso mesmo, vamos agir."

E assim continuavam infinitamente sem darem um passo e com Brian a apodrecer na cadeia.






Mas se estamos todos de acordo quanto à necessidade de mudar, o que impede a reforma em Portugal? Simples as reformas trazem custos e benefícios e mesmo que os benefícios sejam superiores aos custos, estes tendem a ser concentrados e facilmente perfectíveis pelos seus destinatários, enquanto os benefícios são difusos e dilatados no tempo. Enquanto os custos têm frequentemente uma "identidade" que mobiliza quem os sofre, os benefícios das reformas são anónimos (ou pela sua projecção no futuro ou porque não se sabe quem os virá a merecer). Logo, as reformas mobilizam muito mais facilmente contestação do que apoios.

Há alguns aspectos-chave para entender a dificuldade de um projecto reformista. O primeiro tem a ver com aquilo que um Nobel da Economia (Douglas North) designou de path dependence (dependência histórica). Num sentido amplo, este conceito ilustra como qualquer instituição social fica depen- dente da sua história. Num sentido mais simples, corresponde à nossa conhecida frase de que "as coisas são assim porque sempre assim foram". Esta frase não é apenas produto da preguiça. Pelo contrário, ela reflecte os custos envolvidos em qualquer mudança, mesmo uma mudança para muito melhor. Um exemplo há muito que se sabe que os teclados que usamos não são os melhores para permitir uma escrita mais rápida e saudável. Acontece que os teclados surgiram com as máquinas de escrever mecânicas e que a sua concepção técnica não permitia outro teclado. Hoje, tal seria possível. Só que a nossa dependência do teclado clássico (a que todos estamos historicamente habituados) dissuade qualquer mudança para um teclado mais eficiente.

Estes custos de transição associados a qualquer reforma não são insignificantes. Além disso, eles podem ter um impacto redistributivo capaz de mobilizar enorme oposição. Nalguns casos, essa redistribuição é perfeitamente justa mas não deixa de ser difícil de implementar. Imaginemos que a nossa sociedade deixa de ser organizada de acordo com aquilo que já designei, nestas páginas, de princípio da fidelidade (recompensa pela fidelidade ao grupo, ao chefe, aos amigos) para passar a ser organizada com base no mérito. É obvio que isto iria premiar os melhores e penalizar os piores uma redistribuição justa. Acontece que os piores facilmente compreenderiam os riscos que correm e opor-se-ão. Quanto aos melhores, decorre da própria política de mérito a incerteza quanto aos que por ela serão premiados. Logo, uma reforma deste tipo sofre de uma assimetria clara entre os custos e benefícios de um lado e aqueles que deles têm consciência do outro. Consequência: embora os benefícios sejam superiores aos custos, a contestação será superior aos apoios. Há aqui, igualmente, um primeiro paradoxo: quanto mais profundo seja este problema e a necessidade de reforma, maior será esta assimetria e logo mais difícil a reforma.

Noutros casos, os custos de transição inerentes a uma reforma podem ter um impacto redistributivo negativo que exigiria medidas de compensação que garantissem uma efectiva justiça distributiva. Um exemplo pode ser retirado da globalização e liberalização do comércio. O consenso entre os economistas sobre as vantagens de tal liberalização não é seguramente produto de uma qualquer conspiração entre eles para dominarem o mundo (seria interessante dissertar sobre a razão pela qual a análise económica ganhou uma caracterização marcadamente pejorativa). Independentemente das contrapartidas resultantes da abertura de outros mercados aos nossos produtos e por muito anti-intuitivo que tal pareça, a simples sujeição dos nossos produtos à concorrência externa aumenta potencialmente a nossa riqueza! Imaginemos que em Portugal se produz um certo bem mais caro que noutro Estado com que vamos agora ter de concorrer. A consequência para a nossa economia não se limita ao facto de as empresas portuguesas que produzem esse bem terem de fechar. Há contrapartidas que se traduzem num aumento da riqueza nacional.

Em primeiro lugar, os consumidores portugueses vão pagar menos pelo mesmo (ou melhor) produto, ficando dessa forma com mais dinheiro para consumir ou investir noutros bens. Em segundo lugar, o dinheiro que era utilizado na pro- dução ineficiente daquele produto pode agora ser investido na produção de outros bens ou serviços que, por exemplo, não se baseiem tanto em mão-de-obra barata. A lógica é simples ao comprarmos um bem mais barato ficamos com mais dinheiro para comprar outros bens e investir. O problema é que a passagem de um estado económico ao outro não é inócua. Ela tem custos de transição com potenciais impactos redistributivos significativos: aqueles que perdem o emprego com o fim de uma certa produção não são necessariamente os mesmos que vão ganhar com produtos mais baratos ou empregos em novos sectores de actividade. O paradoxo da liberalização do comércio é que, embora ela seja não apenas inevitável mas, igualmente, desejável (não só pelas vantagens que nos traz mas também para promover um desenvolvimento global mais solidário), ela exige, ao mesmo tempo, um reforço dos instrumentos de justiça distributiva. Embora o País enriqueça, há portugueses que podem empobrecer. Acontece que são precisamente aqueles com menos meios que tendem a ser mais afectados por estes custos de transição. Numa sociedade como a nossa, em que os critérios de justiça distributiva ainda são pouco credíveis, é natural que este tipo de reforma suscite oposição.

Este último exemplo permite perceber o último grande obstáculo às reformas em Portugal um problema de acção colectiva. Por onde (ou por quem) se começa? Muitos aceitam a necessidade de reformas mas todos temem que, começando por eles, tais reformas se transformem apenas numa forma de transferir o seu relativo bem-estar para os outros. Esta é a justificação clássica que qualquer português dá para procurar fugir aos impostos, ao mesmo tempo que contesta a evasão fiscal generalizada. É isto que leva, igualmente, a uma imediata contestação de qualquer primeiro passo, no sentido de reformar algum aspecto do sistema fiscal (porquê começar por mim?). A falta de legitimidade global do sistema fiscal leva a contestar qualquer reforma parcial, da mesma forma que a falta de credibilidade dos nossos instrumentos de justiça distributiva leva a contestar qualquer iniciativa de liberalização económica.

As reformas em Portugal dificilmente se farão de forma endógena. Os portugueses querem reformas mas não estão dispostos a passar por um processo de reforma. Estamos demasiados habituados a certos processos de vida para correr o risco de mudar. Há demasiados interesses constituídos que sabem bem os custos da mudança e poucos são aqueles que têm a percepção dos seus potenciais benefícios. A nossa vontade reformista está prisioneira de "certa forma de vida" e de um problema de acção colectiva.

Só através de estímulos externos é que nos reformámos e penso que assim vai continuar a ser. Integração europeia e globalização vão ser os factores exógenos em que vai assentar a energia reformista. Há dias, Rui Ramos defendia que seria possível promover reformas através do nosso sistema político num contexto de efectiva estabilidade política. Só que, como ele reconhecia, tal pressupõe uma atitude cívica que aceite como legítimas reformas que contestamos. Acontece que, em Portugal, o direito à indignação confunde-se com o direito à revolução a oposição a uma determinada política transforma-se facilmente numa oposição ao regime (com cortes de estradas, etc.).

É neste contexto que se compreendem os apelos ao pacto de regime. Consistiria em retirar certas questões do discurso político corrente instituindo uma forma de autodisciplina de todos os actores políticos e sociais. Pessoalmente, penso que este tipo de autodisciplina tem o seu mecanismo próprio numa sociedade democrática é a Constituição. É nela que podemos e devemos concentrar o nosso esforço na procura de combater as assimetrias democráticas identificadas que impedem projectos de reforma.

Miguel Poiares Maduro
miguel.maduro@curia.eu.int