"Monstro", Constança Lucas
O monstro e a democraciapor Miguel Poiares Maduro, DN 25/5/2005
O défice e o discurso do défice
O "monstro" está aí e vamos ter de fazer sacrifícios. O "vamos" quer normalmente significar "vão", pois os sacrifícios sugeridos são os dos outros. Para uns, há que reduzir as despesas no sector público (em particular dos funcionários públicos) argumentando que é aí que está o peso principal no défice e que aumentar a receita indo buscar dinheiro ao sector privado apenas agravará a situação económica, reduzindo o consumo e o investimento e aumentando o desemprego. Para outros, há que aumentar os impostos, combater a fraude fiscal e os denominados privilégios económicos, pois apenas assim se distribuirão os sacrifícios de forma equitativa.
Aparentemente aborda-se o mesmo problema através de dois modelos diferentes de sociedade. Para os primeiros, o Estado é o problema e o sector privado a solução. Para os segundos, o Estado soluciona os problemas criados pelo sector privado.
Na realidade, nenhuma destas soluções é legítima ou eficaz por si só. Parece antes tratar-se de um combate pelo controlo do "discurso do défice". As propostas de solução do défice orçamental são, em larga medida, resultado de diferentes comunidades de interesses. O "vamos" legitima as propostas ao esconder os interesses de um sector na linguagem de um programa de princípios. Neste sentido, a discussão sobre "o monstro" tem a mesma origem do monstro na nossa democracia e nas suas assimetrias.
O problema orçamental é a expressão financeira de um problema democrático. O défice orçamental é, na verdade, resultado de um défice democrático. O défice é "democraticamente" decidido por uma geração e pago por outra geração. Muitos daqueles que acarretarão com os custos não têm ainda direito de voto. Neste sentido, as decisões orçamentais, ao vincularem cidadãos que não participam nelas, sofrem de um défice democrático.
Claro que as gerações futuras também se podem endividar para pagar as dívidas das gerações anteriores mas a sua margem de actuação vai sendo progressivamente diminuída. A liberdade ou autonomia democrática de cada geração vai sendo assim reduzida. É por isso que a disciplina imposta pelas regras relativas ao défice orçamental é só apenas aparentemente uma limitação do processo democrático. Na verdade, ela visa salvaguardar a democracia das gerações futuras.
Assimetrias democráticas
É por isso, também, que o défice é tão difícil de combater. A democracia perfeita seria aquela em que todos os interesses afectados estariam representados, mas isso nem sempre é possível. A democracia sofre de quatro tipos de assimetria democrática que impedem a sua expressão plena.
A primeira é uma assimetria temporal (é o tipo da que está inerente aos problemas orçamentais mas também, por ex., a certas consequências ecológicas futuras) uma certa comunidade de participantes toma decisões com impacto num momento futuro em que os afectados serão outros.
A segunda é uma assimetria informacional nem todos os participantes têm acesso ao mesmo nível de informação e, desta forma, nem todos podem participar da mesma maneira e ter consciência dos custos ou fazer uso dos benefícios que o processo democrático decide (pense-se em como o conhecimento do regime fiscal ou dos financiamentos públicos é mais benéfico a quem tem mais informação).
A terceira é uma assimetria espacial é possível, por exemplo, que uma comunidade de cidadãos tome decisões que afectam sobretudo a uma pequena comunidade local (é o caso da decisão de colocar uma certa central ou indústria poluidora, que beneficia o país no seu todo, numa pequena comunidade local em quem se concentram todos os riscos da mesma actividade).
A quarta é uma assimetria racional. O processo político é massificado e isso exige simplificação. O paradoxo é que as questões submetidas ao processo político são crescentemente mais amplas, técnicas e complexas.
A simplificação destas questões permite, frequentemente, a sua manipulação aumentando a componente irracional e populista do processo democrático (levando a que se afirme, por exemplo, que a democracia pode legitimar a violação das normas do Estado de direito, pretendendo uma espécie de legitimação política de certas formas de corrupção).
Estas assimetrias explicam o défice. O falhanço de uma determinada comunidade política na gestão dos custos e benefícios das suas opções políticas é resultado quer da sua tentativa em concentrar os benefícios em si e exportar ou adiar os custos para os outros (os de fora ou as gerações futuras) quer da sua incapacidade para internalizar e racionalizar toda a informação necessária a uma decisão racional e verdadeiramente representativa de todos os interesses afectados.
Como é óbvio, isto não nos deve levar a desistir da democracia, deve antes levar-nos a duas coisas. Em primeiro lugar, a compreender a importância dos mecanismos de disciplina impostos pelo direito (e em particular pela Constituição) ao sistema democrático. Eles não são limites à democracia, mas sim garantes de uma verdadeira democracia e da democracia dos outros (as gerações futuras e os grupos e indivíduos não representados).
Em segundo lugar, a organizar a nossa sociedade e o nosso Estado de forma a reduzir as suas assimetrias democráticas e a maximizar a legitimidade das suas decisões.
As soluções: eficácia e legitimidade
É importante recordarmo-nos disto ao discutirmos as melhores soluções para enfrentar o problema orçamental e a austeridade que nos espera.
Em primeiro lugar, não basta falar das soluções mais eficazes. A eficácia tem de ser suportada pela legitimidade. Pode ser que a única forma realmente eficaz de combater o défice (pelo menos a curto prazo) passe por medidas duras a nível da função pública mas para que esta medida seja legítima, ela tem de vir acompanhada de medidas de austeridade para todos. Estas últimas até podem não ser necessárias para reduzir o défice, mas são-no para conferir legitimidade às primeiras.
Em segundo lugar, temos de reduzir os factores que distorcem o funcionamento da nossa democracia e promovem a sua captura por alguns grupos particulares.
Há três coisas que me parecem primordiais a este respeito.
Primeiro, simplificar, simplificar, simplificar quanto mais simples as regras, mais acessíveis a todos, menos manipuláveis por alguns e mais perceptíveis os seus efeitos, logo, melhor e mais verdadeiro o juízo democrático sobre elas (os benefícios fiscais, por exemplo, não podem ser decididos apenas na base da sua eventual justificação económica, mas têm de atender às possibilidades de evasão fiscal que se multiplicam e à sua fácil manipulação pelos grupos mais poderosos e informados).
Segundo, substituir a lógica da fidelidade (ao partido, aos amigos, ao grupo) pela lógica do mérito tanto no sistema público como no sector privado (a governação das nossas empresas sofre frequentemente dos mesmo vícios que a governação do nosso Estado; a inexistência de uma verdadeira e eficaz concorrência e as distorções decorrentes dos problemas no nosso Estado de direito não criam os incentivos apropriados à adopção do risco e da boa gestão económica como factores de sucesso no mercado).
Terceiro, racionalizar o nosso discurso público criar mecanismos de informação credível que possam ser partilhados por todos aqueles que debatem no espaço público e promover mecanismos de análise de políticas públicas independentes e legitimados em termos técnicos.
Nada disto evitará o conflito político, nem isso deve ser pretendido. Também nenhum destes aspectos ira eliminar o défice orçamental. O ponto é outro é que qualquer solução do défice para ser legítima e socialmente aceite tem de ser acompanhada de medidas destinadas a eliminar as assimetrias democráticas que nos trouxeram até aqui e contaminam qualquer proposta de solução da actual crise económica.