Sementes de Cravo
Há precisamente cinquenta anos, a 1 de Maio, o tenente zarpou para a Guiné.
A fragata NRP Corte Real saiu a barra do Tejo ao cair de um dia que se mativera cinzento desde a manhã.
O tenente, recém-casado, passara um par de horas a ver a maré deslizar para montante, com Lisboa a estibordo. Só quem viveu os anos 60 em Portugal pode imaginar a desolação que se apoderara do seu espírito.
Há precisamente cinquenta anos, a 1 de Maio, o tenente zarpou para a Guiné.
A fragata NRP Corte Real saiu a barra do Tejo ao cair de um dia que se mativera cinzento desde a manhã.
O tenente, recém-casado, passara um par de horas a ver a maré deslizar para montante, com Lisboa a estibordo. Só quem viveu os anos 60 em Portugal pode imaginar a desolação que se apoderara do seu espírito.
A navegação foi pacífica, com mar chão e sem borrascas. Os jovens oficiais dos fuzileiros, a caminho da guerra, viviam plácidamente aqueles dias em convívios demorados, pontuados pelas refeições.
Na sala dos oficiais liam, jogavam e também escreviam cartas às suas jovens esposas que tinham ficado em Lisboa.
Na sala dos oficiais liam, jogavam e também escreviam cartas às suas jovens esposas que tinham ficado em Lisboa.
O tenente, que militava em segredo contra a guerra, aproveitou para ler "Os condenados da terra", como parte da sua preparação psicológica para aquilo que julgava ir encontrar. Mandou dizer isso à mulher, numa carta que escreveu a quatro de Maio, no alto mar.
Naquelas condições a viagem parecia uma eternidade. De quando em vez avistavam navios ou grandes animais marinhos. Golfinhos, raias gigantes ou cachalotes. Quando já adivinhavam a costa africana, na latitude do Senegal, divertiam-se a observar os peixes voadores fazendo negaças à ondulação.
A 6 de Maio entraram no Geba e subiram para fundear frente a Bissau.
Já lá se encontrava um "transporte de tropas" do exército, com centenas de homens vestidos de verde, empoleirados como podiam, almejando perceber onde tinham vindo parar.
Muitos deles eram originários de vilas e aldeias do interior de Portugal, provavelmente na sua primeira viagem digna desse nome.
O tenente veio a saber mais tarde que os veteranos, que aguardavam a rendição em terra, designavam esses recém-chegados que os vinham substituir, carinhosamente, por "periquitos".
Já lá se encontrava um "transporte de tropas" do exército, com centenas de homens vestidos de verde, empoleirados como podiam, almejando perceber onde tinham vindo parar.
Muitos deles eram originários de vilas e aldeias do interior de Portugal, provavelmente na sua primeira viagem digna desse nome.
O tenente veio a saber mais tarde que os veteranos, que aguardavam a rendição em terra, designavam esses recém-chegados que os vinham substituir, carinhosamente, por "periquitos".
A fragata não se confundia com tais coisas; era um vaso de guerra, aparelhado e organizado nessa base, mesmo quando no seu bojo transportava tropas, como era o caso.
O tenente, tal como os outros camaradas que iriam fazer parte da 6ª Companhia, alongavam-se na amurada apontando binóculos ao casario acastanhado da poeira. A época das chuvas ainda não começara.
Foi preciso esperar, a bordo, até ao dia 8 de Maio para finalmente desembarcar e ocupar os alojamentos no quartel da Marinha junto ao Geba.
Novas rotinas para aprender e novos camaradas para descobrir.
Todos os oficiais acabados de chegar eram obsequiados, na messe do quartel, com um jantar de boas-vindas.
Todos os oficiais acabados de chegar eram obsequiados, na messe do quartel, com um jantar de boas-vindas.
O tenente escreveu, a propósito, numa carta para a mulher de 12 de Maio:
"Ontem foi a minha festa de chegada.
Todos os oficiais (é da tradição) têm que, a um jantar, pagar espumante aos que já cá se encontram. E há sempre muitos discursos.
Todos foram unânimes em que a minha festa tinha sido a mais marcante desde há bastante tempo.
Quando o espumante começou a correr lembraram-se de cantar e descobriram que eu cantava bem. Foi o meu sucesso, cantei várias.
Desde o "Canta camarada canta" aos "Vampiros", passando pelo "Fui-te ver estavas lavando...
Mas não podes imaginar como as coisas aqui se precipitam
Em certo momento o champanhe e o brandy já eram excessivos e já toda a gente gritava em pé em cima das cadeiras"
Todos os oficiais (é da tradição) têm que, a um jantar, pagar espumante aos que já cá se encontram. E há sempre muitos discursos.
Todos foram unânimes em que a minha festa tinha sido a mais marcante desde há bastante tempo.
Quando o espumante começou a correr lembraram-se de cantar e descobriram que eu cantava bem. Foi o meu sucesso, cantei várias.
Desde o "Canta camarada canta" aos "Vampiros", passando pelo "Fui-te ver estavas lavando...
Mas não podes imaginar como as coisas aqui se precipitam
Em certo momento o champanhe e o brandy já eram excessivos e já toda a gente gritava em pé em cima das cadeiras"
A mulher do tenente quando recebeu a carta, umas semanas depois, tentou imaginar uma série de barbudos em cima das cadeiras cantando a plenos pulmões:
Canta camarada canta
canta que ninguém te afronta
que esta minha espada corta
dos copos até à ponta
canta que ninguém te afronta
que esta minha espada corta
dos copos até à ponta
Eu hei-de morrer de um tiro
Ou duma faca de ponta
Se hei-de morrer amanhã
morra hoje tanto conta
Ou duma faca de ponta
Se hei-de morrer amanhã
morra hoje tanto conta
Tenho sina de morrer
na ponta de uma navalha
Toda a vida hei-de dizer
Morra o homem na batalha
na ponta de uma navalha
Toda a vida hei-de dizer
Morra o homem na batalha
Viva a malta e trema a terra
Aqui ninguém arredou
nem há-de tremer na Guerra
Sendo um homem como eu sou
Aqui ninguém arredou
nem há-de tremer na Guerra
Sendo um homem como eu sou
Que raio lhes passaria pela cabeça enquanto cantavam?
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