terça-feira, maio 01, 2018

Sementes de Cravo



Sementes de Cravo
Há precisamente cinquenta anos, a 1 de Maio, o tenente zarpou para a Guiné.
A fragata NRP Corte Real saiu a barra do Tejo ao cair de um dia que se mativera cinzento desde a manhã.
O tenente, recém-casado, passara um par de horas a ver a maré deslizar para montante, com Lisboa a estibordo. Só quem viveu os anos 60 em Portugal pode imaginar a desolação que se apoderara do seu espírito.
A navegação foi pacífica, com mar chão e sem borrascas. Os jovens oficiais dos fuzileiros, a caminho da guerra, viviam plácidamente aqueles dias em convívios demorados, pontuados pelas refeições.
Na sala dos oficiais liam, jogavam e também escreviam cartas às suas jovens esposas que tinham ficado em Lisboa.
O tenente, que militava em segredo contra a guerra, aproveitou para ler "Os condenados da terra", como parte da sua preparação psicológica para aquilo que julgava ir encontrar. Mandou dizer isso à mulher, numa carta que escreveu a quatro de Maio, no alto mar.
Naquelas condições a viagem parecia uma eternidade. De quando em vez avistavam navios ou grandes animais marinhos. Golfinhos, raias gigantes ou cachalotes. Quando já adivinhavam a costa africana, na latitude do Senegal, divertiam-se a observar os peixes voadores fazendo negaças à ondulação.
A 6 de Maio entraram no Geba e subiram para fundear frente a Bissau.
Já lá se encontrava um "transporte de tropas" do exército, com centenas de homens vestidos de verde, empoleirados como podiam, almejando perceber onde tinham vindo parar.
Muitos deles eram originários de vilas e aldeias do interior de Portugal, provavelmente na sua primeira viagem digna desse nome.
O tenente veio a saber mais tarde que os veteranos, que aguardavam a rendição em terra, designavam esses recém-chegados que os vinham substituir, carinhosamente, por "periquitos".
A fragata não se confundia com tais coisas; era um vaso de guerra, aparelhado e organizado nessa base, mesmo quando no seu bojo transportava tropas, como era o caso.
O tenente, tal como os outros camaradas que iriam fazer parte da 6ª Companhia, alongavam-se na amurada apontando binóculos ao casario acastanhado da poeira. A época das chuvas ainda não começara.
Foi preciso esperar, a bordo, até ao dia 8 de Maio para finalmente desembarcar e ocupar os alojamentos no quartel da Marinha junto ao Geba.
Novas rotinas para aprender e novos camaradas para descobrir.
Todos os oficiais acabados de chegar eram obsequiados, na messe do quartel, com um jantar de boas-vindas.
O tenente escreveu, a propósito, numa carta para a mulher de 12 de Maio:
"Ontem foi a minha festa de chegada.
Todos os oficiais (é da tradição) têm que, a um jantar, pagar espumante aos que já cá se encontram. E há sempre muitos discursos.
Todos foram unânimes em que a minha festa tinha sido a mais marcante desde há bastante tempo.
Quando o espumante começou a correr lembraram-se de cantar e descobriram que eu cantava bem. Foi o meu sucesso, cantei várias.
Desde o "Canta camarada canta" aos "Vampiros", passando pelo "Fui-te ver estavas lavando...
Mas não podes imaginar como as coisas aqui se precipitam
Em certo momento o champanhe e o brandy já eram excessivos e já toda a gente gritava em pé em cima das cadeiras"
A mulher do tenente quando recebeu a carta, umas semanas depois, tentou imaginar uma série de barbudos em cima das cadeiras cantando a plenos pulmões:
Canta camarada canta
canta que ninguém te afronta
que esta minha espada corta
dos copos até à ponta
Eu hei-de morrer de um tiro
Ou duma faca de ponta
Se hei-de morrer amanhã
morra hoje tanto conta
Tenho sina de morrer
na ponta de uma navalha
Toda a vida hei-de dizer
Morra o homem na batalha
Viva a malta e trema a terra
Aqui ninguém arredou
nem há-de tremer na Guerra
Sendo um homem como eu sou
Que raio lhes passaria pela cabeça enquanto cantavam?

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