Oficial de serviço
O tenente estava de oficial de serviço naquele dia.
Deixou o quarto que partilhava com dois colegas, ao fundo da parada, e caminhou pela noite enluarada na direcção do gabinete. Estava taciturno, colonizado pelas recordações da fugaz lua-de-mel, que antecedera o embarque para a Guiné.
O asfalto da parada fervilhava de minusculos sapos. Ele desviava os passos para evitar a horrível sensação de esmagar algum debaixo da sola. Uma gincana.
Então resolveu apanhar do chão alguns daqueles batráquios suicidas que pulavam em seu redor. Nos duzentos metros da parada, sem esforço de maior, recolheu uns sete ou oito.
Comichavam nas palmas das mãos e nos bolsos onde alguns tinham ido parar. Foi precisa uma certa habilidade para receber as indicações do oficial de serviço cessante, com a bicharada aos pulos. Mas o outro queria era safar-se dali o mais depressa possível.
Tomou posse do espaço. O gabinete tinha uma secretária metálica, de cinzento indefinível, e uma pequena estante de vidros de correr. Uma porta, por trás, dava para um cubículo com uma cama precária onde, altas horas, se não houvesse bronca, se podia dormitar.
Os sapos destinavam-se a amenizar as largas horas de pasmaceira que o tenente antecipava. Sob a luz mortiça do tecto, algum resto de jornal retardado costumava ser a companhia. Coisa deprimente.
Foi tirando os sapos dos bolsos e alinhou-os numa das extremidades do tampo da secretária. Não era nada fácil dar o sinal de partida para a corrida pois alguns sapos antecipavam-se e desatavam aos pinotes antes de tempo. Outros então, só com piparotes no traseiro iniciavam a participação.
Mas havia uma dificuldade adicional. Perante a inexistência de pistas individuais os sapos cruzavam-se desordenadamente e, em vez de caminhar para o outro extremo do tampo, precipitavam-se pela borda fora estatelando-se no chão.
Após várias tentativas, que ajudaram a passar a primeira das doze horas do encargo, o tenente fartou-se de aturar os sapos. Pegou na trupe, conforme pôde, e despejou-a no ajardinado adjacente ao gabinete. E ficou cara a cara com o tempo, e a chatice, que ainda faltava.
Voltou para a secretária e lamentou não ter trazido o livro que andava a ler. Embrenhou-se nos pensamentos. A sua mulher, cuja vinda tanto ansiava, mandara dizer que estavam completos os últimos exames da licenciatura. Tinha tido 18 valores a “História de não sei quê”, pois sempre fora boa aluna. Acabaria no liceu de Bissau a ensinar aos miúdos guineenses as glórias do Afonso Henriques.
Estava ele nesta modorra quando assomou à porta do gabinte o cabo Joel, atarracado e de boné sempre tombado nos incertos cabelos. O tenente não se pode dizer que simpatizasse muito com ele.
Com a sua voz rangida disparou: “Prenda-me senhor tenente”. O tenente, siderado, não sabia muito bem o que responder. Engoliu em seco duas vezes e depois disse baixinho “Põe-te a andar antes que eu me chateie”.
E o Joel insistiu: “Prenda-me, prenda-me senhor tenente”. O tenente levantou-se devagarinho, apontou para a porta do gabinete e gritou “Se não te pões a andar imediatamente chamo a guarda e levas um enxugo de porrada” e acrescentou alguns impropérios cuja reprodução a delicadeza não recomenda.
O outro lá se dirigiu para a porta, contra-feito, a resmungar, e desapareceu no escuro. O tenente voltou a sentar-se ainda confundido com a cena inédita que tinha presenciado. Um tipo aqui, lixado da cabeça, e leva com um anormal daqueles. Só espero nunca chegar ao estado em que ele está.
Não lhe saía da cabeça e e fez play-back da cena várias vezes. A certa altura apercebeu-se de um pormenor que não tinha relevado antes. O Joel, o tal chato, tinha entrado no gabinete com os bolsos atafulhados dabe-se lá de quê. Os bolsos dos calções brancos da farda entumesciam de uma forma inusitada. Só a irritação tinha impedido o tenente de lhe perguntar que raio era aquilo.
E o tempo voltou a rastejar como de costume naquele gabinete. E muita sorte tinha o tenente por se estar na estação seca. Ao menos não se tinha que aturar os mosquitos.
Com as coisas neste ponto morto, tocou o telefone. Mau, mau, querem ver?
O tenente pegou no auscultador como se tivesse peçonha e começou, mesmo antes de o levar à orelha, a ouvir uma gritaria do outro lado. “Senhor tenente! venha depressa! ao café Império! Está aqui um fuzo, na esplanada, a tirar granadas de mão dos bolsos e a pôr em cima da mesa”.
Raios parta, temos chatice. Mandou chamar o sargento da guarda e preparar a carrinha “creme nívea”. Pôs a pistola à citura, reuniu meia dúzia de homens estremunhados, e lá partiram avenida acima para o café Império.
Os clientes estavam espalhados pelo passeio, em pequenos grupos, e gesticulavam. O gerente saíu ao encontro da carrinha da guarda, de avental, e berrou: “Foi-se embora meu tenente! fugiu por ali!” e apontava para lá do Palácio do Governador, para a zona das vivendas finas onde se alojavam altas patentes e estados maiores.
O tenente deu ordens para arrancar, torneando a praça, e patrulharam demoradamente toda a zona das vivendas. A busca parecia destinada ao fracasso.
A certa altura, já numa avenida onde as vivendas terminavam e começavam as palhotas avistaram ao longe o Joel, ou o diabo por ele. O tenente gritou com o motorista mas, quando alcançaram, não conseguiram mais do que ver o Joel, todo nu, com a farda enrolada debaixo do braço, atravessar a avenida a correr e meter-se, tal e qual, pelo escuro da tabanca.
E quem é que se atrevia a entrar por ali dentro atrás dele?
O tenente deu ordem de retirada. No livro de ocorrências escreveu "um fuzileiro não identificado causou burburinho na esplanada do café Império e depois fugiu antes que a guarda chegasse".
Nunca se chegou a saber quando, e em que preparos, o Joel regressou à unidade.
Deixou o quarto que partilhava com dois colegas, ao fundo da parada, e caminhou pela noite enluarada na direcção do gabinete. Estava taciturno, colonizado pelas recordações da fugaz lua-de-mel, que antecedera o embarque para a Guiné.
O asfalto da parada fervilhava de minusculos sapos. Ele desviava os passos para evitar a horrível sensação de esmagar algum debaixo da sola. Uma gincana.
Então resolveu apanhar do chão alguns daqueles batráquios suicidas que pulavam em seu redor. Nos duzentos metros da parada, sem esforço de maior, recolheu uns sete ou oito.
Comichavam nas palmas das mãos e nos bolsos onde alguns tinham ido parar. Foi precisa uma certa habilidade para receber as indicações do oficial de serviço cessante, com a bicharada aos pulos. Mas o outro queria era safar-se dali o mais depressa possível.
Tomou posse do espaço. O gabinete tinha uma secretária metálica, de cinzento indefinível, e uma pequena estante de vidros de correr. Uma porta, por trás, dava para um cubículo com uma cama precária onde, altas horas, se não houvesse bronca, se podia dormitar.
Os sapos destinavam-se a amenizar as largas horas de pasmaceira que o tenente antecipava. Sob a luz mortiça do tecto, algum resto de jornal retardado costumava ser a companhia. Coisa deprimente.
Foi tirando os sapos dos bolsos e alinhou-os numa das extremidades do tampo da secretária. Não era nada fácil dar o sinal de partida para a corrida pois alguns sapos antecipavam-se e desatavam aos pinotes antes de tempo. Outros então, só com piparotes no traseiro iniciavam a participação.
Mas havia uma dificuldade adicional. Perante a inexistência de pistas individuais os sapos cruzavam-se desordenadamente e, em vez de caminhar para o outro extremo do tampo, precipitavam-se pela borda fora estatelando-se no chão.
Após várias tentativas, que ajudaram a passar a primeira das doze horas do encargo, o tenente fartou-se de aturar os sapos. Pegou na trupe, conforme pôde, e despejou-a no ajardinado adjacente ao gabinete. E ficou cara a cara com o tempo, e a chatice, que ainda faltava.
Voltou para a secretária e lamentou não ter trazido o livro que andava a ler. Embrenhou-se nos pensamentos. A sua mulher, cuja vinda tanto ansiava, mandara dizer que estavam completos os últimos exames da licenciatura. Tinha tido 18 valores a “História de não sei quê”, pois sempre fora boa aluna. Acabaria no liceu de Bissau a ensinar aos miúdos guineenses as glórias do Afonso Henriques.
Estava ele nesta modorra quando assomou à porta do gabinte o cabo Joel, atarracado e de boné sempre tombado nos incertos cabelos. O tenente não se pode dizer que simpatizasse muito com ele.
Com a sua voz rangida disparou: “Prenda-me senhor tenente”. O tenente, siderado, não sabia muito bem o que responder. Engoliu em seco duas vezes e depois disse baixinho “Põe-te a andar antes que eu me chateie”.
E o Joel insistiu: “Prenda-me, prenda-me senhor tenente”. O tenente levantou-se devagarinho, apontou para a porta do gabinete e gritou “Se não te pões a andar imediatamente chamo a guarda e levas um enxugo de porrada” e acrescentou alguns impropérios cuja reprodução a delicadeza não recomenda.
O outro lá se dirigiu para a porta, contra-feito, a resmungar, e desapareceu no escuro. O tenente voltou a sentar-se ainda confundido com a cena inédita que tinha presenciado. Um tipo aqui, lixado da cabeça, e leva com um anormal daqueles. Só espero nunca chegar ao estado em que ele está.
Não lhe saía da cabeça e e fez play-back da cena várias vezes. A certa altura apercebeu-se de um pormenor que não tinha relevado antes. O Joel, o tal chato, tinha entrado no gabinete com os bolsos atafulhados dabe-se lá de quê. Os bolsos dos calções brancos da farda entumesciam de uma forma inusitada. Só a irritação tinha impedido o tenente de lhe perguntar que raio era aquilo.
E o tempo voltou a rastejar como de costume naquele gabinete. E muita sorte tinha o tenente por se estar na estação seca. Ao menos não se tinha que aturar os mosquitos.
Com as coisas neste ponto morto, tocou o telefone. Mau, mau, querem ver?
O tenente pegou no auscultador como se tivesse peçonha e começou, mesmo antes de o levar à orelha, a ouvir uma gritaria do outro lado. “Senhor tenente! venha depressa! ao café Império! Está aqui um fuzo, na esplanada, a tirar granadas de mão dos bolsos e a pôr em cima da mesa”.
Raios parta, temos chatice. Mandou chamar o sargento da guarda e preparar a carrinha “creme nívea”. Pôs a pistola à citura, reuniu meia dúzia de homens estremunhados, e lá partiram avenida acima para o café Império.
Os clientes estavam espalhados pelo passeio, em pequenos grupos, e gesticulavam. O gerente saíu ao encontro da carrinha da guarda, de avental, e berrou: “Foi-se embora meu tenente! fugiu por ali!” e apontava para lá do Palácio do Governador, para a zona das vivendas finas onde se alojavam altas patentes e estados maiores.
O tenente deu ordens para arrancar, torneando a praça, e patrulharam demoradamente toda a zona das vivendas. A busca parecia destinada ao fracasso.
A certa altura, já numa avenida onde as vivendas terminavam e começavam as palhotas avistaram ao longe o Joel, ou o diabo por ele. O tenente gritou com o motorista mas, quando alcançaram, não conseguiram mais do que ver o Joel, todo nu, com a farda enrolada debaixo do braço, atravessar a avenida a correr e meter-se, tal e qual, pelo escuro da tabanca.
E quem é que se atrevia a entrar por ali dentro atrás dele?
O tenente deu ordem de retirada. No livro de ocorrências escreveu "um fuzileiro não identificado causou burburinho na esplanada do café Império e depois fugiu antes que a guarda chegasse".
Nunca se chegou a saber quando, e em que preparos, o Joel regressou à unidade.
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