domingo, fevereiro 27, 2005

José Gil e os portugueses (I)





Li Portugal Hoje - O Medo de Existir de José Gil numa tarde, talvez demasiado depressa, e cheguei ao fim com um sentimento confuso de frustração e com a impressão de ter apenas lido uma introdução ao que esperava encontrar.

Acontece que nos dias que se seguiram, durante uma campanha eleitoral de triste memória, dei por mim a pensar frequentemente no livro, fui relê-lo e percebi como é importante.

Diz José Gil que o 25 de Abril se recusou "a inscrever no real os 48 anos de autoritarismo salazarista", que nunca se fez o luto do fascismo e que, por isso, "o que se quis apagar insiste em permanecer e sobrevive no medo e na irresponsabilidade.

Não posso estar mais de acordo. Os portugueses convenceram-se de que a revolução foi exemplar porque não foi vingativa, quiseram acreditar que os cravos nas espingardas encerravam por si só uma etapa negra, ficaram felizes porque Américo Tomás, Marcelo Caetano e os pides foram apeados, mas tentaram esquecê-los rapidamente, em nome dos amanhãs que cantavam, e nunca mais quiseram verdadeiramente ocupar-se deles.

Isto fez com que não construíssem a democracia diferenciando-a e consolidando-a com o passado fascista. (Seria interessante aprofundar o que se passou noutros países, sobretudo em Espanha, para comparar factos, atitudes e consequências.) Penso que assim se criou ou se agravou um hábito de desresponsabilização colectiva. Não estará aqui uma das causas no nosso atraso, da apatia e da falta de iniciativa que nos coloca hoje na cauda da Europa ?

A perda de memória passou a aplicar-se às figuras da história recente: Cavaco Silva já pode voltar a ser herói, Guterres vai a caminho e Santana Lopes só terá que ser suficientemente paciente para esperar.

O processo de esbatimento estendeu-se também ao que se passou após o 25 de Abril, nomeadamente ao PREC. Como é que as verdadeiras fracturas que atravessaram este período evoluíram até se chegar à actual vitória com 59% do chamado "povo de esquerda"? É importante revisitar este período. Li recentemente alguns jornais publicados nas vésperas das Legislativas de 1976 e fiquei a pensar que temos que tentar perceber o que é que é que ficou do processo revolucionário, como e onde. Há que pôr por escrito muita coisa antes que a memória viva desapareça. Seria também interessante que surgissem obras de ficção que permitissem aos jovens vivências de factos e ambientes. Não por revivalismo bacoco, mas porque só se poderá agir bem no presente se se conhecer e interiorizar o que está para trás.

Não deixemos que as memórias fiquem reduzidas à sobrevivência de umas quantas palavras de ordem como "Fulano amigo, o povo está contigo" (para qualquer bicho careto) ou "Assim se vê a força do PP"!...

Joana Lopes

2 comentários:

Anónimo disse...

Uma das principais estratégias da "não inscrição" é a omissão.
Mesmo quando alguém diz, ou faz, algo relevante finge-se que nada aconteceu.
O José Gil é um bom exemplo; só quando foi referido internacionalmente é que passou a "existir".

Anónimo disse...

Estou no início do livro e estou encantada com este protuguês que tem a coragem de dizer a verdade sem complexos. Não consigo tirar os olhos das palavras e espero que mais portugueses sigam o seu exemplo da não omissão.