sábado, dezembro 06, 2025

A Esquerda à procura de nova Utopia

 


A Esquerda à procura de nova Utopia


Já ninguém nega a crise da esquerda, crise que eu lamento profundamente. Os maus resultados eleitorais começaram por atingir o PCP, desde os anos noventa, mas acabaram por estender-se ao BE e ao PS.
Para perceber melhor o que aconteceu decidi experimentar um quadro cronológico dos “modos” de ação dos principais partidos da esquerda e, por razões que explicaremos mais adiante, do Chega.
Os quatro “modos” são o “utópico”, o “pragmático”, o “sindical, e o “memória”. A caracterização dos “modos” está feita mais acima. Se tivesse de usar uma só palavra diria que a “utópico” associo esperança, a “pragmático” ligo segurança, “sindical” relaciono com protesto e “memória” rima com nostalgia.
No quadro apresentado mais acima, uma visão pessoal aberta a contestações, pode ver-se que:

Antes do 25A
PS e PCP eram os únicos partidos relevantes que funcionavam antes do 25 de Abril.
Operavam até essa data essencialmente em “modo utópico” dada a imprevisibilidade quanto à data da queda do regime e à natureza do que se seguiria. Também faziam reivindicações específicas, claro, mas a sua expressão nacional nesse aspeto era muito reduzida.
O PCP ganhou direito ao respeito e admiração da grande maioria dos portugueses pela tenacidade com que enfrentou a ditadura salazarista. Isso levou muitos jovens da minha geração (incluindo eu) a aderir à luta pelo derrube do regime, mas tal só aconteceu porque o PCP, para além da libertação do fascismo, tinha também o seu lado “utópico” de criação de uma sociedade de novo tipo.

O PS
Depois do 25 de Abril o PS, partido de governo, adotou o “modo pragmático” que consistia essencialmente na promessa de promover algo parecido com o que existia nas social-democracias do norte da Europa. Havia um modelo, portanto, que esteve na base de alguns sucessos eleitorais. As maiorias de Cavaco, entre 1985 e 1995, puseram em causa a liderança do PS na execução do modelo social-democrata. A bancarrota de José Sócrates abalou definitivamente essa liderança. Costa, com a sua “Geringonça” de esquerda, e a subsequente inoperância dos “casos e casinhos”, arruinou definitivamente imagem de pragmatismo do PS.
O partido foi remetido para o “modo sindical”, que só rende eleitoralmente em situações muito particulares.

O PCP
Nos pós 25 de Abril o PCP, para quem o “modo sindical” era congénito, dada a sua composição de classe, manteve em paralelo um intenso “modo utópico” até ao desaparecimento da URSS no início dos anos 90.
O lento declínio eleitoral do PCP veio na sequência do Cavaquismo e do desmoronamento da URSS.
Desaparecido o modelo de sociedade alternativa, e sem capacidade para se recriar, o PCP tornou-se essencialmente o mais eficaz dos partidos que praticam o “modo sindical”, recorrendo à sua implantação histórica na Intersindical e nas autarquias. Tal eficácia foi seriamente abalada pela participação na “Geringonça”, que lhe impôs cedências e conivências. O número de sindicalizados e as autarquias com maioria PCP têm vindo a diminuir ano após ano.
A incapacidade para interpretar o impacto das tecnologias do século XXI reduziu fortemente a credibilidade das suas reivindicações e propostas.
O envelhecimento da sua base de apoio, criada nos tempos do seu “modo utópico”, tornou o PCP um partido que atualmente vive em paralelo o “modo sindical” e o “modo memória”. Com forte erosão eleitoral.

O BE
O Bloco de Esquerda, de criação muito mais recente, começou a sua atividade com uma certa aura “utópica”, nomeadamente no plano da preservação ambiental e das “causas fraturantes”. Teve sucesso fulgurante nas camadas urbanas educadas, impulsionado por um acesso desproporcionado aos meios de comunicação. Praticando um vanguardismo por vezes arrogante, e sem implantação no “país real”, acabou por ser vítima da vacuidade das suas propostas e manifestações. A passagem pela “Geringonça” provocou uma certa erosão na sua imagem independente e radical. Está em decadência acelerada pois, ao contrário do PCP, não tem um lastro eleitoral.

O Chega
Deve ser mais do que uma coincidência cronológica o nascimento do Chega na sequência da “Geringonça”. Portanto no ponto mais baixo da credibilidade “utópica” e “sindical” dos partidos que costumavam ser os depositários de descontentamentos mais ou menos difusos.
O Chega apareceu para retomar o “modo utópico” de que certas camadas estavam carentes (omitindo aqui qualquer consideração sobre a bondade ou pertinência de tal utopia).
Os descontentamentos difusos são especialmente atreitos a soluções mágicas e redentoras.
A nova utopia, um mundo puro sem corruptos e sem vizinhos perturbadoramente exóticos, explica aparentemente a misteriosa transferência de votos de alguns partidos de esquerda, no Alentejo e na “cintura industrial”.
No discurso do Chega o “capitalista” é substituído pelo “corrupto” e o “capitalismo” é substituído pelo “sistema”. Novas categorias mais difusas, mais abrangentes e que requerem menos aptidões intelectuais.
A imigração, neste contexto, é o necessário inimigo externo tal como os corruptos são o inimigo interno. Ambos impedindo a pureza do povo para se afirmar e prevalecer como destinatário exclusivo da ação política.
O ar do tempo é favorável ao Chega.
As tecnologias proporcionadas pela nova IA tornam quase impossível a destrinça entre realidade e ficção, terreno em que o partido de Ventura vive como peixe na água.
A política internacional vai dando pistas ao Chega para singrar com a palavra de ordem “Fazer Portugal Grande Outra Vez”.

Para repensar a Esquerda
Os três partidos da esquerda, têm-se mostrado incapazes de reconstruir a sua aura “utópica”, mesmo quando os desenvolvimentos tecnológicos tornam mais credíveis novas relações de produção e novos níveis de democracia direta.
Num mundo em dramática e acelerada transformação a necessidade da utopia sobe em flecha; sempre foi e continua a ser a forma mais eficaz de interessar e motivar as pessoas para a ação política.
Mas esquerda passou ao lado das transformações do “povo votante”, e das novas formas de comunicar. Mais grave foi a sua omissão nos processos de transformação do capitalismo. Enquanto se preocupava com as relações de produção “arcaicas”, em vias de extinção, verificou-se a criação de uma casta de super-ricos digitais, que precisam cada vez menos de viver da exploração dos seus assalariados (basta-lhes explorar os utilizadores/clientes).
Mas não foi só o “modo utópico” que falhou; os partidos de esquerda partilham algumas práticas que tendencialmente vão minando a sua credibilidade enquanto “pragmáticos” e mesmo “sindicais”.
De uma forma genérica pode dizer-se que os partidos de esquerda tendem a responder aos problemas práticos com tiradas constitucionais, princípios abstratos e limitações legais.
No caso das greves ferroviárias na cintura de Lisboa, por exemplo, com graves problemas para centenas de milhares de pessoas, respondem com a imutabilidade da Lei da Greve, mesmo quando ela causa sofrimento aos utentes e não ao patrão.
Outro exemplo: as questões do sistema de saúde, as suas falhas e difícil acessibilidade. Os partidos de esquerda parecem quase sempre mais preocupados com a dicotomia público/privado do que em encontrar soluções viáveis.
Mesmo no que toca aos preceitos da Constituição há uma rigidez que não toma em consideração o carácter excecional do período em que foi concebida; o ambiente insurrecional ainda muito presente, influenciado pela experiência soviética numa lógica de omnipresença e omnipotência do Estado, na sociedade e na economia.
A omnipresença e omnipotência do Estado, na sociedade e na economia, coisa que a história já mostrou o que vale, continua aliás a ser a proposta utópica da esquerda, de forma mais ou menos assumida.
Um exemplo disso é a responsabilização do Estado pelo acesso de todos os cidadãos a uma “habitação digna” sem se perceber como, e com que meios, tal se realizará.
Estas e outras abordagens proclamatórias irrealistas, que omitem a realidade económica, são uma constante fonte de desilusão e desconforto. Como nunca houve clarividência para as atualizar por consenso das forças moderadas não é difícil prever que acabarão, um dia, por ser desfiguradas por alianças maioritárias com a extrema-direita.
O descontrole da imigração e os casos judiciais sem fim, como o da Operação Marquês, constituíram um poderoso combustível para as percepções (corrupção e caos étnico) em que assenta o crescimento do Chega.
Como se tudo o que já foi dito não bastasse há também a dificuldade em substituir os grandes líderes históricos da esquerda por políticos com um mínimo de estatura.
Sem se repensar todas estas questões não é possível uma nova dinâmica vitoriosa da esquerda em Portugal

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