domingo, março 25, 2018

A mochila




Os homens tinham descoberto uma nascente a cerca de 50 metros do rio. Do lado esquerdo do pontão onde atracavam as lanchas.
Começou por ser uma curiosidade naquele fim do mundo, onde pouco mais acontecia do que o rio a passar, umas vezes para juzante, durante a maré vazia, outras vezes para montante quando quando ela enchia. E à noite, claro, os ataques da chusma dos mosquitos.
Depois aguém se lembrou de fazer a “piscina”. Um nome megalómano que servia para designar um rectângulo, balizado por tijolos, onde a nascente empoçava nuns abissais setenta centímetros de profundidade.
Ao fim da tarde assistia-se sempre a um cortejo algo ridículo, de calções e toalhas de banho, que se propunha disputar um recanto da “piscina”. Mais do que refrescar-se o que eles pretendiam era ter a sensação de uns momentos de lazer, mesmo correndo o risco de ser mordido pelas sanguessugas, que arrancavam de perna alçada para gáudio dos colegas.
Naquele dia o tenente também lá foi. Que raio, não era por se misturar com os marujos que lhe caíam os parentes na lama. Ele já aprendera que a camaradagem não resultava, só por si, em faltas de respeito ou desobediências. Podia até reforçar a disciplina, por razões que não cabe aqui desenvolver.
Ouviu alguma piadas amistosas e lá meteu os pés na água morna, beneficiando da boa vontade devida a quem comandava aquele improvisado “aquartelamento”.
Tinham desembarcado ali um mês antes com toneladas de equipamento e víveres, debaixo de uma chuvada diluviana, e do nada que existia tinham feito nascer o “aquartelamento”. Adjacente ao rio e ao velho pontão, que ali ficara, dizia-se, dos tempos em que a CUF lá carregava a mancarra.
E lá ficaram a “ocupar a posição”, sem saberem bem porquê, ouvindo de quando em quando o canhão-sem-recuo do inimigo a fazer tiro de exploração a que o tenente não deixava responder. Na verdade, em termos de eficácia militar, nem tinham com que o fazer.
Foi então que surgiu a “piscina” e o referido banho do tenente.
Estava ele virado para o rio quando lhe pareceu ver um corpo vogando para montante. Saltou da água e aproximou-se da margem, fixando a vista. Não era a primeira vez que passavam animais, a boiar. Até um hipopótamo, inchado, se tal se pode dizer de um animal tão gordo, andara para baixo e para cima.
Farto daquela cena tétrica, meteu-se num bote de borracha e foi retirar o corpo da água. Era um guerrilheiro fardado e equipado.
Informado o QG, via rádio, ficou a saber-se que um grupo do PAIGC fora interceptado, quando atravessava o Cacheu numa piroga, e bombardeado. Ordenaram que se procedesse a uma tentativa de identificação do cadáver. O tenente recebeu ordens para comunicar o que encontrasse e guardar o cadáver até que chegasse o helicóptero para o levar.
Na mochila o tenente encontrou uma máquina fotográfica e muitas fotografias de reuniões políticas nas tabancas. O morto, percebia-se pelas imagens, seria uma espécie de comissário político que teria vindo fazer o seu trabalho de recrutamento e organização da resistência armada.
Num outro compartimento, encharcado, surgiu um livro: "Filosofia Marxista - Compêndio Popular", V. G. Afanassiev, Editorial Vitória, Rio de Janeiro. Nada mais nada menos que o último livro que o tenente andara a ler antes de embarcar para a guerra.
Um livro que ficara na sua casa de Lisboa. Um livro que ainda está na sua casa de Lisboa.

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