quinta-feira, março 17, 2011

Remédio Santo




O senhor Anacleto tem 95 anos. Foi professor e exerceu a sua profissão durante mais de 50 anos. Enviuvou há dois e desde então, de mês a mês, pontualmente como o relógio grande que antes marcava as horas na sala da sua casa, muda de uma casa para outra entre os seus cinco filhos. Recusa-se a viver num lar, não quer empregados em casa e a solução encontrada de comum acordo passa pela estada temporária em casa de cada um dos filhos. Do Algarve até ao Minho, porque nenhum vive nas ilhas, o senhor Anacleto lá vai cumprindo as suas periódicas visitas, levando consigo a mala e nesta os remédios de que necessita.
Estava há dias com uma das filhas na urgência. Uma queda na rua e algumas dores nas costas. O médico que o atende pergunta-lhe pela medicação e ouve-o sem surpresa enumerar a cor de quatro ou cinco comprimidos diferentes. Como muitos idosos (e outros nem tanto), e apesar da excelente memória, recusa-se a fixar o nome da medicação. A filha apercebe-se de que na lista parecem faltar alguns e recorda-lhe um outro branco pequenino e umas cápsulas castanhas, ao que o idoso aclara tratar-se dos medicamentos do cardiologista e esse é do consultório privado e estão num serviço público, e acrescenta haver ainda uns outros de que nem sabe cor nem formato porque lhe foram receitados há cerca de quinze dias na urgência do hospital da localidade onde estava — e a que recorrera por dor abdominal.
Bem vistas as coisas, e sem nenhum espanto para os médicos que habitualmente lidam com estes doentes, o senhor Anacleto estaria a tomar, no mínimo, entre sete a dez medicamentos, prescritos por diferentes clínicos em diferentes contextos (clínica privada, centro de saúde, urgência hospitalar), sem que nenhum soubesse dos restantes, porque a listagem total da medicação não é visível ao abrir um processo clínico informatizado, a menos que tenha sido prescrita naquela instituição ou com aquele programa. Não é também improvável que do conjunto dos vários medicamentos alguns fossem exatamente iguais aos outros, diferindo apenas na cor, no nome ou no laboratório que os produziu, com o consequente risco para a saúde do doente e aumento dos custos (imediatos — no momento da compra — e diferidos — pelas complicações que daí podem resultar) para o Serviço Nacional de Saúde.
Provável é também que alguns entre si fossem incompatíveis ou que a sua associação devesse ser criteriosamente pensada ou até excluída, pois poderiam anular ou potenciar os efeitos uns dos outros, tornando-se assim ineficazes ou, pelo contrário, com um maior efeito do que seria de esperar. Isto caso se soubesse o que o doente estava a tomar, o que na atualidade e face às presentes circunstâncias é quase totalmente impossível. Quando a necessidade de contenção de custos é notória, o envelhecimento populacional é uma realidade, a informatização do serviço público de saúde está a avançar, a informática parece encontrar uma solução para (quase) todos os problemas, não será possível encontrar um ponto comum entre os vários programas instalados e cruzar em tempo real informação vital como é a da medicação, ao menos no serviço público, melhorando a prestação de cuidados a uma população cada vez mais idosa, com mais problemas de saúde, com menos recursos económicos e, por acréscimo, à população em geral?
Acredito que ao consegui-lo, ainda que com custos imediatos muito grandes, se poupariam muitos milhões de euros inutilmente gastos na atualidade e se melhoraria em muito a saúde das populações. Era, provavelmente, ‘remédio santo’. 
Artigo da Dra. Cristina Galvão, Publicado no Expresso 12.03.2011

Aqui está uma excelente análise de uma realidade que eu observei directamente durante muitos anos enquanto os meus pais foram vivos. 
O que é dito para os medicamentos acontece também com os exames complementares de diagnóstico. Médicos sucessivos prescrevem exames similares por desconhecerem que já foram feitos.
Ao contrário do que os defensores ideológicos do SNS defendem, prova-se que os custos podiam baixar significativamente sem se reduzir a quantidade e qualidade dos serviços prestados aos doentes/utentes.
Defender o SNS é, no essencial, garantir que os seus custos permanecem controlados e ao alcance de Orçamentos do Estado cada vez mais exíguos.

.

Sem comentários: