A primeira fase do projecto "Manuscritos de Pessoa em linha", desenvolvido pela Biblioteca Nacional (BN), através do seu Arquivo da Cultura Portuguesa Contemporânea, está disponível desde ontem, com a reunião, online, e num mesmo lugar, de toda a poesia de Alberto Caeiro, incluindo a que lhe é atribuída.
No endereço http/purl.pt/1000, que gradualmente acolherá todo o espólio literário pessoano, qualquer utilizador, seja ele investigador ou curioso da sua obra, poderá aceder às várias versões que o autor trabalhou, aos rascunhos que fez, às alterações que considerou necessárias - em papel de carta, em envelopes, em papel de sebenta, em fragmentos de papel; no fundo, em tudo o que tinha à mão, devolvendo-nos, a par do génio, também a dimensão do homem nas suas hesitações e na procura da palavra mais justa.
A complexidade de tratamento destes materiais - os célebres e numerosos "papéis de Pessoa" - foi, aliás, ontem salientada, na apresentação do projecto por Manuela Vasconcelos, técnica da BN que organizou a inserção online da documentação relativa à produção deste heterónimo, nos seus três núcleos: O Guardador de Rebanhos, O Pastor Amoroso e Poemas Inconjuntos. Complexidade que, percorrendo toda a obra de Pessoa, referiu, explica em larga medida "por que razão não existe ainda um inventário completo do espólio literário" do autor.
No caso dos manuscritos de Alberto Caeiro, e a par de problemas de datação divergente ou ausente, de decifração ou de natureza outra, vários casos há, lembrou, em que numa mesma folha de papel, dobrada várias vezes, coexistem fragmentos de diversos poemas sem ligação entre si. Também nestes casos, referiu Manuela Vasconcelos, houve a preocupação de dar a conhecer estes manuscritos na íntegra, como os demais, "de forma clara e legível".
O acesso universal à versão digital destes materiais terá também importantes reflexos em matéria de conservação dos originais. Tanto mais que, sublinhou Manuela Vasconcelos, é grande o "grau de deterioração dos papéis de Pessoa". Deterioração derivada, em muitos casos, das características do próprio suporte: "Ele escrevia muitas vezes a lápis, em papéis muito frágeis".
As próximas etapas do projecto "Manuscritos de Pessoa em linha" visarão a produção de Álvaro de Campos e de Ricardo Reis, anunciou, por seu turno, o director da BN. Lembrando que o acesso universal ao espólio de Pessoa via Internet vai abrir "um conjunto de novas possibilidades" de estudo e reflexão, Jorge Couto salientou a importância de, através de projectos desta natureza, se "associar a preservação [dos originais] à disponibilização dos fundos à guarda da BN". O que tem vindo a acontecer através da BNDigital.
À guarda do Arquivo da Cultura Portuguesa Contemporânea, no seio do qual se está a desenvolver o trabalho de digitalização/inserção em linha do espólio pessoano, estão hoje "130 espólios, compreendendo mais de três milhões de documentos", o que faz dele "um dos mais importantes arquivos literários a nível europeu e internacional". Um passo que, referiu ainda Jorge Couto, "vem contribuir para o aumento dos conteúdos em língua portuguesa na rede e para a afirmação da cultura e da língua portuguesa no mundo".
Saudando o passo dado pela BN, também a ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, recordou, na ocasião, a sua faceta de investigadora, ao definir os manuscritos de um autor como "objectos de paixão", cuja difusão alargada é hoje imperiosa. O acesso universal ao espólio de Pessoa, considerou, "vem também contribuir para a criação de uma outra mentalidade em matéria de acesso a materiais de investigação".
(Diário de Notícias 23 de Fevereiro 2006)
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