terça-feira, julho 26, 2022

Os slides que nunca mostrarei


 

Os slides que nunca mostrarei

Em 1996 fiz uma das viagens mais belas da minha vida, da qual guardo paradoxalmente uma memória triste.
Saímos de Sacramento, de casa da minha irmã, com os dois filhos (com 21 e 25 anos), numa "banheira" alugada.

Queria mostrar aos rapazes algumas maravilhas naturais da América.Passámos pelo Yosemite, atravessámos o parque das Sequóias Gigantes, e descemos até ao sul, à latitude de Los Angeles.Inflectimos para o interior, pelo deserto do Mojave, sempre dormindo nos motéis, como se estivéssemos num filme americano. Sempre a abrir no fast food, guardando senhas de um para obter desconto no próximo. Para os rapazes era o delírio.

Como não podia deixar de ser parámos em Las Vegas e deambulámos de casino em casino, ofuscados pelo neon.O passo seguinte foi o Grand Canyon, onde não tivemos coragem de descer mesmo até ao fundo, e depois o grande deserto pintado dos filmes do farwest. Acontece que chegámos já de noite e com uma trovoada de relâmpagos. O carro avançava na escuridão e, de vez em quando, um relâmpago mostrava os pináculos de rocha à nossa volta. Inesquecível.

Acordámos no dia seguinte, na pitoresca Mexican Hat, onde nos deliciámos com um pequeno almoço servido por "índias" e alegrado pelos colibris que bebiam nos ibiscos vermelhos.Então metemo-nos num jeep, com um velho navajo, e passámos o dia por rochedos e grutas, que tresandavam a desaparecidos rituais indígenas.Não quero maçar-vos com mais detalhes, que seriam muitos e saborosos, mas desapropriados.De barriga cheia, tomámos a direcção do regresso. Não sem antes dar um salto ao ponto mais baixo do planeta em Death Valley.

Eu tivera a precaução de reservar alojamento a uns 70 km de Los Angeles, para evitar entrar à noite naquele dédalo de autoestradas onde já antes havia penado.
O local aprazado da pernoita era S. Bernardino, e eu reservara dois quartos no motel. Quando lá chegámos percebemos que não era bem aquilo que tínhamos imaginado.Não por sermos os únicos brancos do bairro, isso não nos incomodava. A questão é que o nosso motel tinha uma frequência bizarra de travestis espadaúdos e "loiras" demasiado bronzeadas, e nas esquinas próximas pareceu-nos haver um correpio de comércio suspeito.Nunca me ocorreria classificar aquele motel como tendo "ambiente familiar".Acantonámos a família toda num dos quartos, o que nos permitiu imaginar como se sentiriam os bravos da cavalaria quando sitiados pela tribo Apache.

A noite decorreu sem sobressaltos e no dia seguinte visitámos Los Angeles, e depois tomámos a estrada do Pacífico até Monterey e S. Francisco.Uma viagem e peras que os putos nunca mais esqueceram nem esquecerão, durante a qual eu tinha feito uns vinte rolos de slides com a minha fiel Pentax.

Agora imaginem o que sentiriam se perdessem todas as imagens de uma viagem como esta, de certa forma irrepetível.Foi precisamente o que me aconteceu. Regressado a Lisboa, e tendo posto os rolos a revelar, foi-me comunicado pelo gerente da loja que um saco com todos os meus slides (cerca de 800) havia sido roubado.

É verdade que obtive uma indemnização, mas continuo a não me conformar com aquele "buraco" nas minhas extensas memórias fotográficas.

São os slides que nunca mostrarei e, pior do que isso, os slides que eu próprio nunca vi. 

quinta-feira, julho 21, 2022

"The cold is in the head"


 

"The cold is in the head"
Passámos um Agosto chuvoso na Irlanda, com os rapazes. Foi em 1993.
Uma parte do tempo deambulámos por Dublin e por Cork, com a música sempre presente nas ruas e nos bares.Depois aventurámo-nos, de automóvel, pelas imensas colinas verdes e pela margem dos lagos.
O arranque do Ford alugado, com o volante à direita, proporcionou uma das cenas mais divertidas vividas em família. As tentativas de meter mudanças com a manivela do vidro da janela ficaram para sempre nas nossas memórias.
As estradas eram, nessa época, de uma pobreza franciscana e, quando se saía das principais, era comum roçar nas silvas com ambos os lados do carro.
Outra coisa que nunca esquecerei, porque me causou grandes transtornos, eram os letreiros indicando destinos imediatamente depois do cruzamento em que devíamos ter virado.
Saltávamos de "Bread & Breakfast" todos os dias, beneficiando de uma rede densa que cobre todo o território, aproveitando para ver os interiores das casas irlandeses. Quase sempre deparávamos com imagens do Papa e até da Senhora de Fátima.A paisagem verde só perde a monotonia quando os rebanhos criam, nas encostas, padrões inesperados.
Os constantes muros de pedra à beira da estradas faziam-me lembrar o norte de Portugal e as raízes celtas que por lá ficaram. Monumentos arcaicos e as abadias em granito soam-nos familiares.
A comida, com excepção da Guiness, não entusiasma e sou levado a pensar que a música que tocam nos bares, excelente, foi inventada para nos distrair do que estamos a comer.
Também os penhascos rochosos de Kerry nos lembram muito a costa portuguesa do Oeste ou do Sudoeste Alentejano. Mas com chuvinha diária.
Ao largo, a oito milhas da costa, encontram-se a ilhas Skellig. A maior das duas tem nome em gaélico; Sceilig Mhichíl, que significa "rocha do Miguel".Como somos povo de marinheiros não resistimos e navegámos até lá.
Quando avistei a embarcação, em Portmagee, a minha experiência na Armada segredou-me que o fundo era demasiado chato. Guardei para mim tal ideia e tive esperança de estar enganado.Quando acabámos de descer o canal e ficámos expostos ao Oceano os efeitos não tardaram; uma boa parte dos turistas vomitou enquanto se agarrava como podia.
As ilhas são enormes rochedos triangulares, cravejados de aves marinhas, onde no Século VI uma comunidade de monges fundou um mosteiro. Não duvido que o local é especialmente indicado para a introspecção; custa imaginar um inverno naquele local, com as comodidades medievais e isolados do mundo pelas enormes vagas do atlântico.
Foi com alívio que regressámos a terra firme para seguir em direcção a Galway, o ponto mais ao norte onde chegámos antes de inflectirmos de volta a Dublin.Foi nesse percurso que pernoitámos em Killkee, uma simpática vilória que cresceu à volta de uma praia em forma de concha.
Chegámos ao fim da tarde e depois de largarmos as malas no alojamento saímos, enregelados, à procura de uma sítio para comer.Na marginal deparámos com um simpático coreto, fustigado pelo vento de oeste, que na ocasião era o único instrumento que ali se tocava.
Na rua quase deserta veio ao nosso encontro um tipo com ar alucinado, num tipo de embriaguez muito para além do álcool. Sem que nós tivéssemos tempo de dizer alguma coisa ele gritou, gesticulando: "The cold is in the head, the cold is in the head".E desandou tal como chegara.
Depois de conduzir, pela esquerda, muitas centenas de quilómetros, regressei a Dublin com uma horrível dor nas costas.