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quinta-feira, setembro 12, 2019

sábado, junho 08, 2019

Crónicas de um Tenente





Lançamento das "Crónicas de um Tenente"
Na mesa contei com a presença dos amigos (da esquerda para a direita), Daniel Maymone, Osvaldo Cordeiro, Mário de Carvalho e Fernando Mão de Ferro.





segunda-feira, outubro 01, 2018

Em vez de Balas - no Mocho




Em vez de balas
Fizemos anteontem um convívio à volta das memórias da Guiné, de há 50 anos, na Casa da Cultura de Sacavém.
Foi com enorme prazer que recebemos, com apoio da Câmara de Loures, amigos da Quinta do Mocho e não só.
Como tínhamos previsto houve um diálogo muito rico de culturas e gerações. Nunca esquecerei.
As fotografias publicadas neste post foram feitas pelo Carlos Almeida e pela Sonia Figueiredo, que deram uma ajuda inestimável à concretização deste projecto. O Kally Meru e a Emanuela Kalemba, como sempre, foram incansáveis. 
Quero também agradecer à Elsa Arruda e ao restante pessoal da CMLoures pelo apoio prestado.






terça-feira, setembro 04, 2018

domingo, março 25, 2018

A mochila




Os homens tinham descoberto uma nascente a cerca de 50 metros do rio. Do lado esquerdo do pontão onde atracavam as lanchas.
Começou por ser uma curiosidade naquele fim do mundo, onde pouco mais acontecia do que o rio a passar, umas vezes para juzante, durante a maré vazia, outras vezes para montante quando quando ela enchia. E à noite, claro, os ataques da chusma dos mosquitos.
Depois aguém se lembrou de fazer a “piscina”. Um nome megalómano que servia para designar um rectângulo, balizado por tijolos, onde a nascente empoçava nuns abissais setenta centímetros de profundidade.
Ao fim da tarde assistia-se sempre a um cortejo algo ridículo, de calções e toalhas de banho, que se propunha disputar um recanto da “piscina”. Mais do que refrescar-se o que eles pretendiam era ter a sensação de uns momentos de lazer, mesmo correndo o risco de ser mordido pelas sanguessugas, que arrancavam de perna alçada para gáudio dos colegas.
Naquele dia o tenente também lá foi. Que raio, não era por se misturar com os marujos que lhe caíam os parentes na lama. Ele já aprendera que a camaradagem não resultava, só por si, em faltas de respeito ou desobediências. Podia até reforçar a disciplina, por razões que não cabe aqui desenvolver.
Ouviu alguma piadas amistosas e lá meteu os pés na água morna, beneficiando da boa vontade devida a quem comandava aquele improvisado “aquartelamento”.
Tinham desembarcado ali um mês antes com toneladas de equipamento e víveres, debaixo de uma chuvada diluviana, e do nada que existia tinham feito nascer o “aquartelamento”. Adjacente ao rio e ao velho pontão, que ali ficara, dizia-se, dos tempos em que a CUF lá carregava a mancarra.
E lá ficaram a “ocupar a posição”, sem saberem bem porquê, ouvindo de quando em quando o canhão-sem-recuo do inimigo a fazer tiro de exploração a que o tenente não deixava responder. Na verdade, em termos de eficácia militar, nem tinham com que o fazer.
Foi então que surgiu a “piscina” e o referido banho do tenente.
Estava ele virado para o rio quando lhe pareceu ver um corpo vogando para montante. Saltou da água e aproximou-se da margem, fixando a vista. Não era a primeira vez que passavam animais, a boiar. Até um hipopótamo, inchado, se tal se pode dizer de um animal tão gordo, andara para baixo e para cima.
Farto daquela cena tétrica, meteu-se num bote de borracha e foi retirar o corpo da água. Era um guerrilheiro fardado e equipado.
Informado o QG, via rádio, ficou a saber-se que um grupo do PAIGC fora interceptado, quando atravessava o Cacheu numa piroga, e bombardeado. Ordenaram que se procedesse a uma tentativa de identificação do cadáver. O tenente recebeu ordens para comunicar o que encontrasse e guardar o cadáver até que chegasse o helicóptero para o levar.
Na mochila o tenente encontrou uma máquina fotográfica e muitas fotografias de reuniões políticas nas tabancas. O morto, percebia-se pelas imagens, seria uma espécie de comissário político que teria vindo fazer o seu trabalho de recrutamento e organização da resistência armada.
Num outro compartimento, encharcado, surgiu um livro: "Filosofia Marxista - Compêndio Popular", V. G. Afanassiev, Editorial Vitória, Rio de Janeiro. Nada mais nada menos que o último livro que o tenente andara a ler antes de embarcar para a guerra.
Um livro que ficara na sua casa de Lisboa. Um livro que ainda está na sua casa de Lisboa.

sexta-feira, março 16, 2018

Foi neste mesmo cais do Cacheu



Foi neste mesmo cais do Cacheu
que se passou a história que eu vou contar.
Chegáramos extenuados depois de andar a fugir aos baixios na foz do Cacheu. Que já lá tínhamos encalhado das outras vezes.
Logo por azar fomos encontrar o cais sobrecarregado de lanchas e batelões. Tivemos que atracar ao último, que chegara antes de nós, e para ir a terra era preciso saltitar de embarcação em embarcação.
A noite veio depressa e depressa se foi a janta à roda do tabuleiro comunitário, de onde toda a tripulação picava o seu pedaço de frango comprado na tabanca.
Não havia disposição para serões e não tardou que cada um armasse o respectivo "burro" de lona e pés de madeira, e se cobrisse com uma manta que prevenia o frio noturno e algum ataque da mosquitada.
Noite alta soou o brado "fujam...fujam..." que em tais paragens, e circunstâncias bélicas, resultava ainda mais urgente do que é normal. Só sei que abri os olhos e deparei com labaredas a cerca de três metros.
Saltei como uma mola, atirei com a manta, e lá fui como os outros aos pinotes por cima dos batelões na direcção da terra firme. Metros adiante lembrei-me que deixara para trás a minha amada e fiel Pentax e voltei a buscá-la, aos encontrões dos que ainda fugiam.
Acabámos todos no pontão a ver a lancha arder e logo percebemos que era necessário tirá-la dali, para não propagar o fogo às outras embarcações.
Lá fomos, receosos, soltámos amarras e atirámos a lancha contra o lodo da margem uns cem metros mais para juzante. As chamas iam alteando e não tínhamos com que apagar.
O sargento foi mandado em busca de uma bomba de água e por milagre voltou com ela. Começou então o trabalho de a pôr a chupar a água do rio, de um lado, e a lançar a água sobre as chamas do outro.
A chapa queimava-nos os pés, mesmo calçados com sola, e não sabíamos quanto tempo teríamos antes que o combustível ou as munições provocassem alguma explosão.
Estivemos naquela luta até ao nascer do dia, com o credo na boca, até que finalmente murcharam as últimas labaredas. A lancha estava devastada e dos nossos pertences pouco havia sobrado.
Mas não podíamos sossegar pois os cunhetes fixos de munições, em ferro, tinham sido sujeitos a enormes temperaturas.
A tampa fechava sob pressão e, depois de forçar a mola, espreitámos para o interior. Havia granadas de mão, projécteis de 20mm da peça Oerlikon, e munições de G3. Fumegavam.
Tínhamoss consciência da imprevisibilidade da situação. E também da inevitabilidade de encontrar uma solução.
Começámos então um tráfico sinistro.
Enchíamos um caixote com granadas, passávamos o caixote para um bote de borracha e íamos despejá-lo no meio do rio. Uma vez e outra.
Confiando na sorte.
À cabra-cega com a morte.

quinta-feira, fevereiro 01, 2018

Em vez de balas




Parto para a Guiné no dia 6 de Fevereiro, para percorrer os lugares de há 50 anos e fotografar com a mesma máquina que então usei.

EM VEZ DE BALAS
No dia 1 de Maio de 1968, larguei do Tejo, rumo à Guiné, a bordo da fragata Corte Real. Era então um jovem tenente dos fuzileiros, com 22 anos, recém casado, que interrompera os estudos de Economia na Universidade de Lisboa.

Em Bissau integrei a 6ª Companhia, aquartelada no INAB, junto ao Geba. A nossa missão consistia essencialmente na escolta de combóios de embarcações que levavam abastecimento aos quartéis do Exército.

Subi e desci os principais rios da Guiné comandando, conforme os casos, uma ou duas lanchas de desembarque médias (LDMs). Em ocasiões apoiado por lanchas de fiscalização pequenas (LFPs).

Naveguei no Cacheu até Farim, no Mansoa, no Geba e no Rio Grande de Buba. Liguei por mar a foz desses grandes rios e também fui a Bolama e a Bubaque.
A guerra era uma realidade penosa para quem como eu, jovem militante comunista, se opunha ao domínio colonial e defendia a independência das colónias. Partilhei esse drama pessoal com a minha mulher, Maria Rosa, que trabalhou como professora de História no Liceu Honório Barreto.
A fotografia constituiu para mim um paliativo. Ao fotografar a dignidade do povo guineense, a beleza das suas mulheres, o porte dos seus homens e o encanto das suas crianças, eu tinha a impressão de estar a fazer um gesto de amizade no contexto da guerra. A disparar fotografias em vez de tiros.
É significativo que pouco tenha fotografado da guerra e dos temas militares.
2018 é o cinquentenário da minha chegada a Bissau.
Sinto-me na obrigação de comemorar essa fase tão marcante da minha vida de jovem adulto. Tal como os outros jovens da minha geração aprendi, "no terreno", a grande lição da relatividade da nossa própria cultura.
No dia 6 de Fevereiro parto para a Guiné e percorrer os locais por onde passei, e fotografei, há 50 anos. E voltarei a fotografar lá com a mesma câmara Pentax Spotmatic que então usei.
Está a ser organizada uma exposição das minhas fotografias, feitas em 1968/69, que terá lugar no Centro Cultural Português de Bissau, em 2018. O acervo deverá também ser exposto em Lisboa, no mesmo ano, estando em curso um processo de viabilização no Museu Nacional de Etnologia.
Uma espécie de tributo, pela restituição da memória de uma realidade que em grande medida já não existe.
Fechar-se-á então o ciclo. Como experiência pessoal é uma grande emoção.
Num plano mais geral creio que propiciará reflexões sobre a guerra colonial e sobre a forma como a viam tantos jovens que politicamente a contestavam.

Ver o programa Fotobox aqui:

https://vimeo.com/253468657?ref=fb-share&1




terça-feira, janeiro 02, 2018

LDM



LDM
ao deambular pela margem esquerda do rio Gilão, em Tavira, dei de caras com esta LDM (Lancha de Desembarque Média).
Emocionante. Foi numa coisa destas que eu subi e desci os grandes rios da Guiné, foi numa coisa destas que me brindaram com umas bazookadas (que por sorte falharam o alvo).
Noites inteiras a ouvir ronronar o seu motor, sem acender sequer um isqueiro, atentos aos baixios de lodo e à muitas curvas da água.
50 anos saltados num instante.
Disseram-me depois que esta LDM pertence à edilidade que a usa para transportar contentores de lixo.
Foi o anti-climax.

quarta-feira, outubro 05, 2016

Cartas da guerra (quem as não tem?)



Cartas da guerra (quem as não tem?)
Fui ver o filme de Ivo M. Ferreira que tem como base as cartas que António Lobo Antunes enviou à sua mulher, Maria José, quando estava a combater em Angola (como médico).
É preciso dizer desde já que o filme é magnífico e que a fotografia tem uma elevadíssima qualidade.
Para aqueles que também escreveram cartas durante a guerra (eu, por exemplo, guardo dezenas e dezenas) o filme é especialmente tocante.
Aquilo que importa no filme é a ilustração angustiante da incomunicabilidade nesses tempos remotos em que, por incrível que pareça aos mais jovens, não havia telemóveis, nem skype.
Escrevia-se uma carta e recebia-se o retorno um mês depois.
Como é que uma pessoa apaixonada, ou em vésperas de ser pai, pode lidar com isto, suportar isto?
As cartas de Lobo Antunes, lidas ao longo do filme em off, mostram como todas e cada uma das palavras soam curtas, insignificantes nesses momentos.
As declarações e os sentimentos são repetidos, e repetidos, da mesma ou sob diferentes formas, como se fosse necessário martelar um sentido que nunca mais se alcança.

quinta-feira, julho 02, 2015




Por causa desta notícia

lembrei-me disto que publiquei na Vértice em Abril de 1971, depois de vir da Guiné

quarta-feira, julho 30, 2014

Guerra ou Paz

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Filme "Guerra ou Paz", de Rui Simões - Depoimento incluído no DVD como extra




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quarta-feira, abril 09, 2014

APACHE



APACHE

- Despacha-te. Já estamos a ficar atrasados…
O tenente tentava apressar a sua jovem esposa que se alongava à frente do espelho.
O quarto tinha chão de cerâmica e mobiliário rudimentar, em grande parte desencantado nos armazéns do quartel. O que não se encontrara tinha sido inventado com caixotes de munições, primorosamente pintados, e garrafas grandes de Perrier atafulhadas de flores.
Uma esteira na parede exibia Che Guevara, fixado com dois punaises, de charuto entre os dedos e sorriso largo, ao lado da imagem icónica do vietcong, de mãos atadas, a ser alvejado na cabeça por um polícia. O tenente e a mulher tinham vindo directamente dos meios progressistas da universidade para a guerra na Guiné.
Enquanto ele comandava um pelotão de fuzileiros ela tentava garbosamente explicar os feitos de Afonso Henriques aos jovens mandingas e balantas que frequentavam o liceu.
As janelas da casa eram guarnecidas por mosquiteiros e davam para um esboço de alpendre.
Na sala acantonavam-se os livros que a bagagem militar tinha permitido e o gira discos de plástico com os seus long playings. Um recanto de cultura com que tentavam resistir aos dois anos de desterro.
- Despacha-te!
A sessão no cinema dedicada ao pessoal da Armada era sempre ao Domingo de manhã e estava prestes a começar.
Da casa do tenente numa transversal até à Avenida da República, onde se situava o cinema, não se demorava mais de dez minutos.
Saíram à pressa e seguiram, rua fora, contornando os montes de insectos que os varredores tinham arrumado contra os muros das casas, naquela zona quase toda habitada por brancos.
Quando chegaram à Avenida da República em vez de virarem para a esquerda, na direcção do palácio cor de rosa do Governador, giraram em sentido oposto e atravessaram para o lado de lá, onde se erguia o cinema.
Foi então que notaram algo inusitado. O tenente que, dado o seu atraso, esperava chegar já com a projecção a decorrer avistava magotes de fardas brancas agitando-se nas escadarias de acesso à sala.
Depois começou também a ouvir-se a algazarra.
Quando viram o primeiro tipo conhecido perguntaram-lhe o que se passava.
- Os marinheiros e grumetes querem levar também as mulheres para o balcão, como fazem os sargentos e os oficiais.
Não eram muito numerosos aqueles que estavam em comissão acompanhados pela mulher mas, até por causa disso, não se sentiam à vontade numa plateia cheia de homens sempre prontos para dixotes e calduços.
O balcão, onde assistiam circunspectos os oficiais, sobrevoava aquela balburdia como se ela não existisse.
Era então por causa disso que o átrio do cinema fervilhava; a arraia miúda recusava-se a ocupar os lugares na plateia enquanto os seus colegas casados não tivessem permissão para se sentar no balcão com as caras metade.
- A mulher de um oficial não é mais nem menos do que a mulher de um marinheiro
Gritava o enorme cabo João, barbudo como um apóstolo, para o capitão-de-fragata, segundo comandante da Guiné, que lhe segurara o braço e que, no minuto seguinte, sacudido pelo João, se estatelava nos degraus.
Foi nesse instante que o tenente percebeu que as coisas estavam fora de controle.
As tensões tinham vindo a acumular-se nos úlimos meses.
Não havia talheres suficientes no refeitório nem ventoinhas nas casernas.
No quartel, junto ao Geba, os protestos tinham vindo a suceder-se sem que o Comando Naval tomasse medidas para os obviar.
O cinema tinha sido o rastilho para soltar todos os ressentimentos.
Entretanto o capitão-de-fragata recompôs-se da queda e deu ordem ao cabo da guarda, em serviço de patrulha, que detivesse o cabo João.
O que se passou a seguir foi confrangedor, ou seja, não se passou nada. O cabo da guarda fez de conta que não tinha ouvido qualquer ordem e desandou no jipe sob as invectivas do superior.
De um momento para o outro, sem se perceber como, centenas de fuzileiros começaram a descer a avenida da República, a mais importante da cidade, como uma onda branca ululante que nenhuma força se atreveria a deter.
Alguns subordinados do tenente, com quem privava mais frequentemente, aconselharam-no a regressar a casa e a passar o Domingo calmamente em família.
Lá mais para a tarde o tenente soube pelos colegas que beberam lá em casa umas cervejas que no quartel, tomado nessa manhã pelos fuzileiros, a hierarquia deixara de vigorar e que o oficial de serviço, mais recalcitrante, tivera que deixar o seu posto correndo à frente das garrafas de Cuca que os marinheiros lhe atiravam.
O capitão-de-mar-e-guerra, a maior autoridade do comando naval, vira-se forçado a visitar o quartel e a contemporizar com a rapaziada. No essencial atendera todos os seus pedidos.
O tenente soube de todos estes desenvolvimentos com visível satisfação já que se tratava da coisa mais parecida com uma insurreição que lhe fora dado observar nos vinte e dois anos que levava de vida. E não sabia ele então para o que estava guardado.
Para comemorar tomaram a decisão de ir ao cinema, em grupo, depois do jantar.
O filme em exibição era o “Apache” do Robert Aldrich, coisa que o tenente nunca mais esqueceu.
Como de costume, no espaço que medeia entre a primeiras cadeiras da plateia e o écran, tinham sido colocados uns bancos corridos, de madeira, para a ganapagem que se dedicava a transportar as marmitas da messe e outros pequenos serviços ao domicílio.
Os garotos negros, em grande algazarra, aplaudiram todas as flechas e machadadas com que os índios brindaram a cavalaria durante aquela hora e meia.
O índio Burt Lancaster deve ter povoado os seus sonhos infantis quando, já noite alta, regressaram à tabanca.

sexta-feira, março 28, 2014

GANTURÉ



GANTURÉ
Chegaram a Ganturé quase à noite. Horas e horas nos meandros do Cacheu a ver o mangal passar e a ouvir o ronronar do motor da lancha.
O mangal, a que por lá se chamava tarrafo, com as suas raizes merguladas nas àguas baixas, interrompia-se de quando em quando em aberturas de clareira. Era nessas alturas que um dos rapazes saltava para o banco da Oerlikon e ficava de atalaia, a prometer projécteis de vinte milímetros.
O tenente tinha dito que não se fazia fogo preventivo, apenas se responderia em caso de ataque.
O rapazola, imberbe, sentado no banco da peça limitava-se a rodar sobre o eixo, de mãos aperreadas nos punhos do gatilho, como se andasse num carrocel lá da terra dele.
Depois o tarrafo aparecia de novo e tudo regressava à sonolência pesada da época das chuvas.
A atracagem em Ganturé foi feita pelo cabo, um barbas mais batido, sob o olhar aprovador do tenente. Era preciso aproximar a lancha do pontão ao arrepio das correntes fortíssimas que a maré trazia até ali, a cem quilómetros da costa. Tal era a chateza do país.
Passadas as amarras para terra, com ajuda dos grumetes que estacionavam naquela base de fuzileiros, tisnados e cravejados pela mosquitada, houve uns abraços entre conhecidos e o desembarque das grades de cerveja e das munições.
Entretanto escurecera e ligou-se o petromax, mesmo sabendo que a luz atraía a bicheza voadora.
O tipo que nesse dia estava escalado para o tacho apareceu com o tabuleiro cheio de bacalhau à Gomes Sá.
À volta da mesa, sob o toldo da popa, sentaram-se todos. Sete homens, incluindo o tenente, que picavam no enorme tabuleiro e faziam circular o garrafão de tinto de onde todos emborcaram.
Estavam de costas para o rio que, naquele ponto não teria mais de duzentos metros de largura. A outra margem era apenas negrume.
De súbito rebentam disparos cadenciados de metralhadora. Não parecia o ritmo de rajada ligeira mas sim a fala da metralhadora pesada dos turras.
Toda a gente saltou da mesa e extinguiram a luz num ápice, para deixarem de ser como patos numa esparrela.
Enquanto os disparos ecoavam na noite toda a gente a bordo se concentrava, aos gritos, em desatracar e virar a lancha para a outra margem. Embicada a terra, como estava, era impossível disparar a Oerlikon.
Muito fumo, muito ronco de motor acelerado de rompante, um tabuleiro de bacalhau desvirado, e lá tínham a lancha em posição de disparar. Foi nessa altura que o fogo do inimigo se calou.
Ficou toda a gente perplexa pois, sem os tiros e sem a chama que eles produzem, eram impossível saber em que direcção responder.
O tenente mandou avançar mais para o meio do rio e colocou-se muito esticado, na proa, a ver se lobrigava alguma coisa. Ligaram o holofote da cabine e então apareceu a barcaça Bolama que fundeara por ali, em completa ocultação de luzes. Reinava agitação a bordo.
O tenente, com dois marinheiros, meteu-se no bote de borracha e fez uma abordagem.
Aos gritos explicaram que um cabo do exército, já bebido, tinha caído ao rio em plena noite. Fora então que o Zé Calmeirão, aquele grumete que sofria de ataques de pânico, para dar o alarme, tinha desatado a disparar a G3 para o ar e provocara todo o alarido.
Tinham saltado três tipos em cima do Zé, antes que ele se atirasse também para a água. E só a muito custo dominaram aquela besta de um metro e noventa e lhe tiraram a espingarda das mãos.
Estava tudo explicado, não havia ataque nenhum dos turras. Era preciso era procurar o cabo João que o Cacheu engolira.
Os tipos da base de fuzileiros, que ficava a trezentos metros, também tinham sido alertados pelo tiroteio. Rápidamente puseram os botes na água e apesar da escuridão iniciaram as buscas. Primeiro à volta da Bolama e depois em círculos cada vez mais largos.
Margens, pequenos afluentes, emaranhados do tarrafo e lodaçais, tudo foi esquadrinhado. O cabo João não aparecia.
Horas, para cá e para lá. Olhos cansados de insónia e de falta de luz.
Começaram alguns a dizer que os crocodilos já deviam ter feito desaparecer o João. Outros diziam que a corrente de mais de dez nós devia tê-lo levado vários quilómetros para juzante, sabe-se lá para onde. Também havia quem dissesse que o emaranhado impenetrável das raízes do tarrafo seria, para sempre, a sepultura inescapável do João.
Entratanto fizera-se dia.
A lancha tinha por missão continuar a subir o rio até Farim, escoltando o grupo de barcaças a que pertencia a Bolama.
O tenente agarrou-se ao transmissor e, por entre ruídos roufenhos, informou Bissau do desaparecimento do cabo do exército e pediu instruções ao Estado Maior. Em tempo de guerra não se brinca.
Mandaram avançar como planeado.
Foi dada ordem para desatracar a quem estava atracado e para levantar ferro a quem estava fundeado. Era preciso ordenar a coluna para a largada.
Na barcaça Bolama os homens esfalfavam-se na manivela do guincho, onde enrolavam a corrente da âncora. Iça o ferro, gritavam à uma.
Foi então que viram aparecer o cabo João, desesperadamente agarrado aos elos da corrente.
Passara a noite, morto, a dois metros de profundidade resistindo à força das águas.
Foi muito difícil soltar-lhe os dedos.

sexta-feira, fevereiro 21, 2014

Memórias do S. Gabriel

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Quando acabou a comissão na Guiné o meu destacamento de Fuzileiros regressou "à metrópole" neste navio S. Gabriel.
Mas não veio directamente. Primeiro fomos a Luanda encher o casco de petróleo. Chegámos a Lisboa em Março de 1970.
Nas imagens pode ver-se:
1 - um postal ilustrado
2 - fundeados em Luanda
3 - a navegar. pode ver-se no centro a caixa de lona que servia de piscina
4 - à saída de Luanda apanhámos mar pela proa

terça-feira, julho 10, 2012

LEICA IIIa (1938)

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Esta máquina foi-me anunciada como tendo uma história por trás.
Um velho de 80 anos, no Canadá desde 1960, foi quem ma contou.
Nunca conseguirei confirmar se esta história é verdadeira, no todo ou em parte, mas é uma bela história.
Também de ficções se faz o trabalho dos coleccionadores.




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quinta-feira, junho 16, 2011

Quem Vai à Guerra



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Um belíssimo filme sobre o sacrifício de uma geração.
E também o registo de algumas das minhas memórias pessoais.

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segunda-feira, janeiro 31, 2011

O nosso Vietname

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retrouver ce média sur www.ina.fr



Um excelente documentário sobre a guerra na Guiné, o nosso Vietname.
Por lá andei durante dois anos, precisamente nesta época em que Spínola era governador.
Para que não se esqueça que houve uma geração inteira que foi sacrificada.

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quinta-feira, novembro 11, 2010

Entre quem poupa e quem se endivida

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Hoje, em Seul, na Coreia do Sul, reúnem-se os líderes das maiores economias do Planeta e das principais potências emergentes. São 19 países, mais a União Europeia. Será uma discussão entre os países que exportam e os que importam, entre as economias que poupam e as que se endividam, entre as potências do Ocidente e as forças emergentes da Ásia e da América do Sul, entre os que têm matérias-primas e as que têm de as comprar e entre os que provocaram a crise financeira e os que apenas sofreram com ela.
No meio de todos estes embates e, muitas vezes, cruzando-os, estará sempre a discussão entre dois homens: Barack Obama e Hu Jintao. O presidente dos EUA culpa a China por muitas das dificuldades que o seu país sente para garantir um regresso ao crescimento económico. Washington diz que Pequim mantém a sua divisa artificialmente desvalorizada e impede as empresas norte-americanas de competir nos mercados internacionais.
Do lado da China, não há grande vontade de abdicar de forma rápida da vantagem competitiva que têm as suas exportações. E responde-se aos EUA, com uma crítica feroz à sua política monetária expansionista, que faz cair o dólar e prejudica as exportações dos outros países.
Há claro, outros actores importantes, como a União Europeia, o Japão, a Índia ou o Brasil. E, na realidade, quem tem mais razões de queixa em relação à actual conjuntura monetária internacional é mesmo a Europa. Com o yuan e o dólar a serem levados a cair, o euro não tem tido outro caminho que não o da valorização face às duas divisas. Isso faz com que os representantes europeus, principalmente a Alemanha, não se cansem de distribuir críticas tanto aos EUA como à China.
Público, 11.11.2010

Este tipo de disputa gerou guerras ao longo da história.

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sábado, agosto 28, 2010

Hipocrisia sobre o Tibete


Em 1904, aproveitando-se do estertor da dinastia Qing em Pequim, uma expedição britânica liderada por Sir Francis E. Younghusband, um aventureiro ao serviço do Império Britânico, dominou o forte de Gyantse e marchou até Lhasa, a capital do Tibete, tornando-se a primeira força ocidental a forçar a abertura do Tibete e a arrancar concessões comerciais dos seus lamas.

A expedição de Younghusband foi enviada por Lord Curzon, o vice-rei da Índia, para forçar o 13º Dalai Lama a concordar com concessões comerciais. O Tibete também havia começado a ganhar importância no que ficou conhecido como o Grande Jogo, onde os impérios britânico e russo rivalizavam por influência na Ásia Central.
Na vila de Guru, as tropas britânicas encontraram um acampamento de 1.500  tibetanos. Ocorreram hostilidades. As tropas britânicas, que incluíam sikhs e gurkas, abriram fogo. Em quatro minutos, 700 tibetanos fracamente armados caíram, mortos ou feridos.
Mais tarde, num desfiladeiro a apenas 32km de Gyantse, os britânicos assassinaram mais 200 tibetanos.
Os tibetanos montaram a sua última resistência no forte de Gyantse, chamado dzong, ou Jong, em tibetano. Depois de terem esgotado o prazo de rendição, em 5 de julho, os britânicos atacaram a partir do sudeste do forte.
"A rendição do jong teria um efeito esmagador sobre o moral tibetano", escreveu Hopkirk. "Havia uma superstição antiga de que, se o grande forte caísse nas mãos de um invasor, seria inútil uma maior resistência".

Em 1910, bem depois da partida dos britânicos, 2 mil soldados chineses ocuparam Lhasa. Mas em 1913, após a desintegração da dinastia Qing por acção das potências ocidentais e do Japão, iniciou-se um período de "independência de facto" do Tibete.

Os comunistas chineses retomaram o controle do Tibete novamente em 1951, numa demonstração de nacionalismo destinada a redimir os "cem anos de humilhação" a que a China tinha sido sujeita.

Não há nada como a história para mostrar a hipocrisia daqueles que tendo praticado o colonialismo desavergonhadamente choram agora lágrimas de crocodilo pela independência do Tibete.
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segunda-feira, março 09, 2009