Não percam, se ainda conseguirem, esta bela despedida de Robert Altman (morreu em Novembro).
Uma dissertação sobre o fim que vem sempre mas que nunca realmente acontece.
Ternura, humanismo e musica. "The show must go on" ou, melhor ainda, o espectáculo continua sempre de uma forma ou de outra.
A função dos artistas como paradigma da condição humana.
Não há melhor sítio para ver este filme do que o Quarteto com o seu ar moribundo...
sexta-feira, dezembro 08, 2006
A prairie home companion
quarta-feira, novembro 15, 2006
"Os Filhos do Homem" e a decadência
O filme de Alfonso Cuarón constitui essencialmente uma parábola destinada a iluminar o mundo actual.
A acção situa-se em 2027 mas penso que isso tem como objectivo facilitar a acentuação dos problemas e desafios que já hoje vivemos (a falta de confiança no futuro, o esbatimento dos “valores” e o consequente surgimento de reacções defensivas sob a forma de cerceamento das liberdades, violência, xenofobia, etc) .
Pode dizer-se que o caos e a violência social presentes no filme já existem no mundo actual, de uma forma ou de outra, ainda que ocorram por enquanto predominantemente em determinadas zonas geográficas.
A infertilidade que se abate sobre todas as mulheres do planeta constitui aparentemente o tema do filme mas, numa segunda observação, constatamos que é apenas um estratagema para mostrar o velhíssimo problema das pseudo-soluções para as crises da humanidade.
Em “Os Filhos do Homem” toda a sociedade se encontra focada na captura e expulsão dos “emigras” apesar de isso não resolver de maneira alguma o problema da sua sobrevivência. É sobre isso que o filme propõe a reflexão.
Os “emigras”, tal como ao longo da história os judeus, os negros e as “bruxas”, são apenas bodes expiatórios.
Aconteceu-me ver o filme numa sala onde os espectadores eram maioritariamente jovens e adolescentes em idade escolar.
Como muitas vezes acontece nos cinemas actuais houve conversas em voz alta que perduraram ao longo da sessão, múltiplas saídas e entradas durante a exibição do filme, mastigação ruidosa de pipocas e o mais que se sabe.
Eu detesto ter que assistir aos filmes neste tipo de ambiente mas, desta vez, para além de sofrer o incómodo fui levado a perguntar-me se estes comportamentos não serão já formas embrionárias da decadência mostrada no filme.
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sábado, novembro 04, 2006
Maria Antonieta
Gostei muito deste filme de Sofia Coppola.
Mostra-nos, de forma chocante, que a verdadeira marca do poder é a "distância", o poder é viver num mundo imune à ralé, ao povo, ao proletariado, aos pobres ou mesmo às "pessoas normais". A Cidade Proibida em Pequim, rodeada por um fosso inundado, constitui um exemplo claro de como o poder sempre voltou as costas ao mundo.
Sofia Coppola usa música actual na banda sonora para nos dizer que os mesmos tiques do poder continuam a existir no mundo actual. Não é por acaso que os políticos durante as campanhas eleitorais percorrem as feiras tentando criar a ilusão de que esse mundo à parte afinal não existe.
Custa-me ver a crítica desancar este filme com base em preconceitos.
Pensam que Sofia Coppola tem o intuito de "salvar" Maria Antonieta da má imagem que a história lhe criou.
Mesmo que tenham razão nesse aspecto particular deviam perceber que o significado histórico da monarquia absoluta do século XVIII não está dependente do carácter, da estatura moral ou das preferências sexuais de Maria Antonieta.
Do mesmo modo o capitalismo imperial dos Estados Unidos não se caracteriza por Bush ser beato, ou usar ceroulas e dizer dislates...
Infelizmente, como ensina a lei do menor esforço, ainda há quem prefira "motivar as massas para a luta" com base no acessório e no anedótico...
segunda-feira, outubro 02, 2006
UMA VERDADE INCONVENIENTE
É uma chamada de atenção para o grande publico, tem fotografias impressionantes e gráficos que fazem pensar.
Pessoalmente, gostava de ter visto os aspectos científicos tratados com mais profundidade, até porque algumas vezes tenho sido tentada pela posição dos cépticos: “O planeta tem passado por períodos de aquecimento e arrefecimento globais, isto é mais do mesmo, etc. etc.”
Por exemplo, achei muito interessante o gráfico que mostrava a coincidência das curvas de nível de CO2 e dos períodos glaciares e inter glaciares; mas gostaria que me explicassem de onde, nessas épocas sem a influência nefasta do Homem, poderia ter vindo esse anidrido carbónico em tal quantidade e tão concentrado no tempo.
De qualquer modo, acho que o filme deve ser divulgado: Al Gore é um bom comunicador, e tem estatuto para se fazer ouvir. Não nos fará mal nenhum reflectir sobre estas questões, e embora não acredite que o mundo se muda por iniciativas individuais sei que as grandes medidas não vingam se não forem acompanhadas de mudanças de atitude de cada um e da sociedade.
Foi pena que um homem familiarizado com a politica internacional não tenha referido a responsabilidade do mundo desenvolvido em relação ao tipo de “ajudas” dadas ao terceiro mundo e ao modelo de vida apresentado aos países em desenvolvimento.
Se uma fracção da população do globo já causa tais estragos, o que acontecerá se todos os milhões de asiáticos, africanos, etc tiverem um automóvel à porta?!!!!
Bom, recomendo o filme. E para terem uma ideia do que lá se vê, “jast luke ete de treila” em www.climatecrisis.net.
Hora da publicação: 12:15 0 comentários
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quinta-feira, setembro 21, 2006
O Paraíso, Agora!
Parti para este filme de Hany Abu-Assad , como a maior parte dos espectadores, numa atitude de voyeur.
Aquilo que mais me intriga no fenómeno dos bombistas suicidas não é o facto de tantos estarem dispostos a perder a vida mas sim a pobre “administração” do seu sacrifício.
Quando alguém está disposto a morrer dispõe de um poder enorme o que, em minha opinião, não se reflecte nos resultados dos atentados que muitas vezes se limitam a matar meia dúzia de pessoas sem qualquer valor “estratégico”.
Nesse aspecto o filme ajudou-me muito pois fornece um quadro em que nos é proposta uma reflexão sem maniqueísmos.
O ritual suicida, tal como é mostrado, constitui um acto de “libertação” individual ancorado na religiosidade em vez de constituir uma assumida forma de luta com objectivos claros e perpectivas de futuro. Os atentados são fundamentalmente uma saída para o insuportvel individual e não o sacrifício de alguns para uma libertação colectiva.
Constituem uma atitude emocional servida “a quente” (as horas cruciais que precedem as acções são milimetricamente controladas e encenadas) em vez de uma pensada e maquiavélica construção com vista a provocar efeitos desvastadores ao inimigo.
Em contrapartida a acção do exército israelita parece muito mais “fria” (no filme é referido um episódio em que o exército israelita invade uma casa e pergunta ao propritário qual das pernas quer que lhe partam).
Dos dois candidatos a suicidas aquele que revela firmeza até ao fim não é aquele que se quer vingar da violência dos israelitas mas sim aquele que não pode mais suportar o fardo de ter tido um pai colaboracionista.
A exploração desta faceta emocional pelos “responsáveis” políticos, que recorrem complementarmente à manipulação das crenças religiosas, acaba afinal por se revelar uma fraqueza, uma forma fácil mas limitada de manter as aparências de resistência.
Como fica patente no filme, esta estratégia inviabiliza qualquer tentativa de usar a inteligência para combater um inimigo tenaz e muito mais poderoso.
Um grande e corajoso filme.
Hora da publicação: 15:21 0 comentários
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segunda-feira, agosto 28, 2006
Antonioni 75 - já não se fazem filmes assim
Não percam "Profissão: Reporter" de Michelangelo Antonioni, uma obra prima de 1975. Enquanto nós vivíamos o "verão quente" Antonioni filmava esta história de desistência e fuga.
Tenho a sensação (passe o saudosismo) de que já não há filmes assim. A textura dos lugares e das coisas, a densidade das "histórias" e o enigma do desenlace impressionaram-me profundamente.
A ver enquanto é tempo.
Se não for possível pode sempre visitar o site do filme
Hora da publicação: 21:58 0 comentários
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terça-feira, agosto 22, 2006
«Sonhar com Xangai»
quarta-feira, março 29, 2006
As Editoras de DVD vendem-nos gato por lebre
Comprei recentemente as três partes de "O Padrinho" ("The Godfather"), de Francis Ford Coppola, em DVD, e mais uma vez fui enganado naquilo que me oferecem. Nas Opções Especiais havia uma referência aos comentários do realizador ao seu próprio filme.
Depois de muito procurar, porque o acesso ao menu não é fácil, verifico que os comentários não eram legendados. Ou seja, numa versão para Portugal e em que se diz na capa que há legendas em português, as Opções Especiais não são legendadas. Este conjunto de filmes foi editado pela Paramount, para que se saiba.
Mas, noutra edição, também recente, de "O Último Tango em Paris", de Bernardo Bertolucci, as Opções Especiais que eram assinaladas na capa e se referiam a um livrete com notas da produção e ao "Making of" do filme, não nos eram fornecidas, nem sobre a forma de livrete, nem em qualquer entrada no menu. Este filme é uma edição em DVD da MGM.
Estes dois exemplos podiam-se repetir até ao infinito, principalmente a ausência de legendas nas Opções Especiais.
Seria bom que todos estivéssemos atentos a isto, para que em uníssono pudéssemos protestar.
Hora da publicação: 19:02 1 comentários
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domingo, março 26, 2006
Neo-realismo com telemóveis
O filme "O Mundo", do chinês JIA Zhang-Ke, é como que um neo-realismo italiano que tivessem atafulhado de gadgets tecnológicos.
A dura luta pela subsistência, as "migrações internas", o desenraizamento em suburbios cheios de guindastes, as longas auto-estradas quase vazias e as desesperadas tentativas de fuga pelo tabaco, pelo jogo e pelas relações amorosas estabelecem o paralelismo.
Tudo se passa num parque de diversões dos arredores de Pequim (ver aqui) que constitui uma imitação do mundo com a sua torre Eiffel, o seu Vaticano e o seu Big Ben. Como que a querer mostrar-nos por um lado a força da globalização e por outro que afinal ela não passa de um cenário onde os verdadeiros dramas têm lugar.
domingo, março 19, 2006
A Condessa Russa
A Condessa Russa
Fui ver A Condessa Russa, de James Ivory, motivado pelo "trailer" e pela recordação, mesmo que vaga, desse maravilhoso filme de Josef Von Sternberg chamado O Expresso de Xangai (Shangai Express), de 1932, e em que o papel principal era desempenhado por Marlene Dietrich. O filme de Ivory passa-se igualmente em Xangai, neste caso, nas vésperas e no dia da invasão dos japoneses. Há de facto uma condessa russa, levada pelos ventos da Revolução, que nada tendo de misterioso. Trabalha num bar, o que dá sempre aquele um tom de decadência tão propício às vidas enigmáticas. No entanto, nada disto é visível neste filme e temos uma história delicodoce, que com o filme de Sternberg só tem de comum Xangai, objecto de toda a imaginação pelo fascínio misterioso da China ante-revolucionária.
Se puderem, vão ver antes o filme de Sternberg, que não dão por mal empregue o vosso tempo
quarta-feira, março 08, 2006
Good night, good luck
O filme de Clooney conseguiu emocionar-me o que não é pouca coisa já que trata de um tema que o visado conhece há muito e já viu tratado de muitas maneiras.
O lado “histórico” do filme, a experiência “macartista” nos states, não adicionou muito à informação que eu já tinha mas estou convencido de que será uma fecunda revelação para milhões de jovens em todo o mundo.
A razão pela qual me emocionei foi por ver no ecran alguém a bater-se por uma causa, correndo riscos, sem esperar nada em troca e sem necessidade da retórica.
Podem dizer-me que “isso” não é novo mas eu respondo que “isso” tem andado um bocado esquecido pois não incluo nessa categoria muitos dos folclores hoje em voga entre os profissionais da defesa dos “desgraçadinhos”.
A grande força deste filme está em recriar dentro de nós a adrenalina dos combates sérios num tempo em que proliferam as “guerras de alecrim e manjerona”, os cálculos e os pactos.
“Boa noite, boa sorte” não se esgota nisso e mostra-nos também que o espírito do senador-inquisidor continua bem vivo mesmo entre aqueles que dizem odiá-lo.
Sempre que reagimos a uma discordância lançando lama sobre as intenções de quem de nós discorda, em vez de rebater a sua opinião, estamos a ressuscitar Joseph McCarthy.
Hora da publicação: 00:07 0 comentários
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terça-feira, fevereiro 07, 2006
Match Point
Match Point é uma obra deslumbrante sobre a força do instinto de sobrevivência e sobre a sua precaridade.
Destino ou determinação individual ? Necessidade ou acaso ? Um dos temas mais antigos e recorrentes da humanidade tratado com grande maestria por Woody Allen.
Uma obra impiedosa que deixa o espectador a pensar sobre as atrocidades que seria capaz de cometer se o tentassem desapossar de algo para si essencial.
domingo, novembro 20, 2005
Short Cuts
Por obra e graça do canal Hollywood tive a oportunidade recente de rever (e gravar) o filme "Short Cuts - Vidas Cruzadas" dirigido por Robert Altman em 1993.
Quando o vi pela primeira vez, há uns anos, fiquei profundamente impressionado. Ao revê-lo agora apenas confirmei que se trata de um filme extraordinário.
Mostra (durante três horas) um certo número de vidas "entrelaçadas" o que só por si está longe de ser original e até tem produzido alguns filmes detestáveis. Os motivos de interesse são outros.
Um polícia, um médico, uma "palhaço ao domicílio" que anima festas de aniversário, uma pintora, uma empregada de balcão numa cafetaria, um limpador de piscinas, um comentador de TV, uma prestadora de serviços pornográficos via telefone, uma violoncelista, um condutor de limousine para encontros amorosos, um piloto de helicóptero, uma cantora de jazz, um decorador de bolos comemorativos, um maquilhador de efeitos especiais e outros, cruzam-se e voltam a cruzar-se (em Los Angeles, como no excelente "Colisão" que ainda recentemente comentámos).
A lista das profissões, onde não figura nenhuma ligada à produção de mercadorias convencionais, mostra uma sociedade "desenvolvida" com grande pendor para os "serviços interpessoais" e onde a "classe operária" ou desapareceu ou é invisível.
As relações afectivas mostram-se ressequidas e distorcidas como se estivessem atacadas por uma praga (curiosamente o filme decorre sob o pano de fundo de uma praga de moscas que os helicópteros todas as noites tentam envenenar aspergindo químicos sobre a cidade).
Com o decorrer da acção vamos intuindo que o mal-estar e, depois, a tragédia radicam na mercantilização de gestos e comportamentos que costumavam situar-se no plano das relações afectivas, tornando "profissionais" as relações que deviam ser íntimas e fazendo cair as barreiras que costumavam separar as amizades, a família e os afectos da luta, quantas vezes impiedosa, pela sobrevivência económica.
Aqueles que ainda pensam que a alienação resulta da preponderância das coisas no relacionamento entre os humanos deviam perceber que é ainda pior quando o que se compra e o que se vende são os próprios humanos.
terça-feira, setembro 13, 2005
A Colisão na Comunicação
COLISÃO, “Crash”, é um grande filme sobre a complexidade (improbabilidade ?) da comunicação entre os humanos.
Quase todos as vítimas deste flagelo insistem, no filme, em dizer “eu também sou americano” mas os seus “mundos pessoais” mostram-se irremediávelmente distantes. COLISÃO não trata específicamente das questões sociais e raciais da América mas sim da incomunicabilidade humana; nós podemos dizer “eu também sou humano” mas as dificuldades de comunicação persistem.
Em Portugal notou-se muito a passagem de apenas um posto de televisão para os actuais quatro (agora aumentados pelo cabo). De repente deixou de ser garantido que o colega do emprego tinha visto, na véspera, o mesmo debate ou novela como acontecia antes o que sem dúvida facilitava o diálogo por, ao menos, se partir de objectos idênticos.
Na vida, através dos sentidos, cada um de nós vê constantemente “um programa” diferente. Como se isso não bastasse o nosso mecanismo interpretador do “programa” não funciona da mesma forma que o do nosso vizinho do lado, ou do prédio da frente.
Do “mundo pessoal” do outro o que nos chega são apenas objectos materiais; um papel com signos, umas vibrações do ar, a rugosidade da sua pele, uma expressão do rosto...
Ou seja muito pouco, vestígios que penosamente tentamos decifrar.
Em COLISÃO o que colide não são essencialmente os automóveis mas sim os “mundos” que vogam no vazio de Los Angeles (nas cenas iniciais há uma referência muito interessante ao facto de os habitantes da cidade não terem oportunidade de se cruzar como numa cidade normal).
A sociedade humana, perante a incomunicabilidade, respondeu com as classificações, as categorias, os estereótipos (o preto, o operário, o chinês, o sem abrigo, o árabe, o “pato bravo”, etc, etc.). Em sociedade é quase impossível sobreviver sem estas formas de simplificação/deturpação. Não podemos, óbviamente, falar durante umas horas com todos aqueles com que nos cruzamos para tentar perceber melhor a sua individualidade.
O autor de COLISÃO brinca com o expectador quando, por exemplo, os dois pobres negros vítimas de discriminação se convertem de um momento para o outro em ladrões de automóveis e as pobres vítimas do roubo do automóvel são afinal também desiquilibrados racistas eivados de preconceitos. Ou seja, as taras justificam os preconceitos e os preconceitos justificam as taras, num jogo rotativo que não tem fim.
O drama social reside na transposição para as relações interpessoais das categorias sociológicas, ou dos estereótipos, que são imprescindíveis para a “compreensão” da realidade social: as classes, os grupos étnicos, os escalões etários, as orientações sexuais, e outros.
A cena em que o polícia mata o negro a quem tinha dado boleia por pensar que ele vai puxar uma arma quando se tratava de tirar do bolso uma imagem de um santo, ilustra bem o facto de as circunstâncias nos criarem muitas vezes armadilhas fatais. Neste caso uma decisão baseada no estereótipo mas da qual dependia a vida ou a morte.
Brecht trata este tema do “expectável” em termos sociais e de classe quando, em “A Excepção e a Regra”, durante a travessia do deserto o carregador entra de noite na tenda do patrão para partilhar com ele um restinho de água e é abatido com um tiro.
O patrão é absolvido em tribunal pois o juiz reconhece que nas circunstâncias verificadas, tendo nos dias anteriores o patrão tratado brutalmente o carregador, o patrão nunca poderia esperar deste um acto de generosidade.
Hora da publicação: 12:32 1 comentários
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sexta-feira, maio 20, 2005
"A Queda" do "Reino dos Céus"

Vi, em dias consecutivos, “A Queda” e “Reino dos Céus”.
Isso ajudou-me a perceber que o tema comum aos dois filmes, apesar de bastante diferentes, é o fanatismo. Num caso a acção decorre na Alemanha hitleriana e no outro durante o século XII das cruzadas.
O filme alemão sobre os últimos tempos do regime nazi é muito mais denso, chegando a roçar a tragédia clássica. Baseado em testemunhos presenciais não nos deixa acalentar a suspeita de que os (f)actos presenciados possam ser obra de alguma imaginação doentia apostada em chocar o espectador.
Curiosamente não foram as cenas de grande violência que mais me impressionaram mas sim o grau de “descolamento” de quase todos os habitantes do bunker (dezenas de pessoas) relativamente ao mundo real. Como num pesadelo de que não se consegue escapar vemos prolongarem-se hábitos, rituais e “fidelidades” que já não fazem qualquer sentido prático, nem têm qualquer futuro.
A realidade sofre deformações grotescas quando olhada através das lentes do fanatismo.
O nazismo tem que ser considerado um caso notável dos efeitos do fanatismo quer pela dimensão das devastações provocadas quer pela “sinceridade” com que a casta dominante, bem retratada no filme, assumia as teses absurdas em que a barbárie assentou; mas seria demasiado redutor ver no filme apenas um grito contra o nazismo ou fazer a sua avaliação na base do maior ou menor “humanismo” com que Hitler é retratado.
Quando se diz, como no slogan, “nunca mais” é preciso perceber a raiz do que rejeitamos até porque todos sabemos que o nazismo não foi a primeira ocorrência de violência maciça “justificada” por pretensos princípios. A história está cheia de guerras “religiosas” e de razias e genocídios para “corrigir” consciências.
O fanatismo caracteriza-se pela existência, à partida, de algo inquestionável: um deus, uma raça superior, um clube glorioso, um homem providencial. Em busca da sua identidade os homens são vulneráveis à sobrestimação da pertença a instituições, nações, ideologias, religiões e outras manifestações gregárias.
Tal como os vírus que habitam, sem consequências, os nossos corpos também o fanatismo, nas suas várias formas, pode permanecer inócuo. Mas em determinadas circunstâncias o fanatismo degenera em formas agudas de imposição aos outros de “verdades inquestionáveis”.
A cadeia de raciocínios é simples:
- se a “verdade” é inquestionável torna-se incompreensível que alguém a não queira ou que a ela resista.
- essa recusa da “verdade” indicia ou incapacidade para a entender ou desígnios inconfessáveis
- em qualquer dos casos, como a “verdade” é inquestionavelmente favorável, resulta legítimo impô-la aos relapsos mesmo contra a sua vontade
Este tipo de mecanismo justifica que se queimem “bruxas” ou “cristãos novos”, se espanquem adeptos do clube adversário ou homossexuais, se trespassem à espada os “infiéis”, se instaure a democracia com bombardeamentos ou se enviem judeus e comunistas para campos de extermínio.
A generalidade daqueles que se envolvem em manifestações agressivas de fanatismo não obtêm desse facto qualquer vantagem identificável ou, nos casos em que tal acontece, não é essa a razão principal das suas atitudes.
O facto de rejeitarmos o fanatismo não significa que devamos rejeitar a adesão a ideais, ideologias, misticismos ou utopias. Significa, isso sim, a adopção de uma pedagogia da relatividade e falibilidade dos julgamentos humanos que reserve para casos extremos, prementes e inevitáveis, a substituição da persuasão pelo uso da violência física ou intelectual.
Hora da publicação: 23:38 2 comentários
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terça-feira, março 15, 2005
"Million Dollar" parábola

Levei um murro no estomago e saí do cinema a cambalear interiormente. Million Dollar Baby é o filme mais triste que já vi.
Tenho que dizer isto ainda que seja um lugar comum.
O filme de Clint Eastwood é uma espantosa e impiedosa parábola.
A vida é um exercício solitário, num mundo inóspito que só alguns seres especiais amenizam enquanto não somos atingidos pelo soco fatal.
A única redenção, espiritual e não social, consiste em perseguir teimosamente os nossos sonhos.
Uma porta estreita e remota aonde só nós cabemos.
Hora da publicação: 15:18 1 comentários
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domingo, março 06, 2005
O “Mercador de Veneza” e a questão do Estado

Num qualquer “cinema perto de si” Al Pacino representa um portentoso Shylock, mercador judeu que insiste em confrontar o Doge com as leis venezianas e acaba vítima do contrato que pretendia cobrar. A fabulosa trama engendrada por Shakespeare permite as mais variadas “leituras” mas eu prefiro a seguinte: todos os textos dizem tudo mas são sempre incompletos.
O paradoxo tem a ver com a ilusão do poder da escrita que soçobra às mãos da subjectividade humana sem a qual não há leitura. Dito de outra forma: não há textos sagrados, não há contratos inexpugnáveis e não há leis cegas.
À tentativa frustrada de encurralar o Estado, conduzida pelo judeu Shylock, responde o Estado com um “exercício interpretativo” das leis cujo fito é legitimar a arbitrariedade do seu poder.
A questão do Estado é de uma actualidade gritante.
Fala-se do Estado a torto e a direito mas não é nada claro o significado desta palavra. O Estado é o quê ?
É o conjunto dos diplomas que constituem o ordenamento jurídico em vigor ? É o conjunto das instituições e organizações que estruturam o regime ? É o conjunto dos funcionários e burocratas que asseguram a administração pública ? É o conjunto dos políticos e dos partidos que influenciam o funcionamento das instituições ? São todos os referidos anteriormente ?
Esta complexidade prolonga-se na necessidade de garantir que uma entidade tão multifacetada como o Estado persegue, com autenticidade, o chamado “interesse público”. O “interesse público”, por sua vez, padece também da pecha da indefinição e o mesmo se passa, para os que preferem esta terminologia, com os “interesses de classe”.
Nos sistemas democráticos como o nosso o “interesse público” é supostamente definido pelas consultas populares que seleccionam programas partidários e que estabelecem maiorias parlamentares. Os parlamentos e governos que emanam dessas maiorias são constituídos por políticos que têm “autorização” para, de acordo com regras estabelecidas, modificar as leis, governar as instituições, nomear e gerir os funcionários. Em suma, realizar o “interesse público”.
As coisas estão longe de ser simples já que são escolhidos partidos diferentes, quiçá contraditórios, para diferentes instituições (parlamento, presidência, autarquias) e também porque os programas eleitorais dos partidos concorrentes às eleições sofrem do defeito inicialmente atribuído a todos os textos: dizem tudo mas são sempre incompletos. Esse defeito também afecta, como já referimos, as próprias leis que serão produzidas pelo partido vencedor.
Como se tudo isto não bastasse ainda temos a celebrada “alternância democrática” que, em vez de ser prova da vitalidade do sistema, é antes de mais um reconhecimento das falhas do sistema. Dito de outra maneira: se a consulta popular opta pelo partido A e, passados dois anos, vota em B para se livrar de A, então é porque as decisões democráticas não garantem a bondade das soluções políticas e, como tem sucedido, cada nova escolha constitui um erro que o futuro tem que corrigir. É como se o “interesse público” fosse redefinido ao sabor das conjunturas. As interpretações pós-eleitorais produzem intermináveis discussões sobre o verdadeiro sentido da votação.
Para Lenine o Estado era, de forma algo linear, apenas a demonstração da injustiça inerente às sociedades divididas em classes. Lenine não conheceu o “Estado Social” da época da mediatização, nem a alternância, e estava fundamentalmente preocupado com o perigo do patriotismo no esbatimento da “consciência de classe”.
Curchill dizia que “a democracia é a pior forma de governo se exceptuarmos todas as outras que já foram experimentadas”, e isso continua a ser verdade no que toca à determinação do “interesse público”, mas há cada vez mais vozes que exigem a reinvenção da democracia, como tem feito José Saramago, com base nos crimes que têm cometidos em seu nome.
Também não é claro se aqueles que votam, quando o fazem, estão a pensar na realização do “interesse público” ou a defender os seus interesses pessoais. Na segunda hipótese as votações definiriam o “interesse público” como o somatório dos interesses individuais o que corresponde à concepção liberal.
Não se pense, apesar de tudo o que foi dito, que pretendemos pôr em causa o regime democrático; trata-se apenas de pedir atenção para a complexidade e variabilidade da noção de “interesse público” e para a dificuldade em assegurar que o Estado, enquanto tal, procede consequentemente com vista à sua realização.
Se não temos, para já, uma alternativa melhor do que a democracia vigente para assegurar o governo da sociedade e é portanto compreensível que nos sujeitemos às suas imperfeições isso não pode de maneira nenhuma autorizar a mitificação do Estado hoje tão em voga.
Tal mitificação consiste em assumir, sem qualquer fundamento, um Estado “antropomórfico” que tem uma vontade e desígnios tendentes à realização da justiça e mesmo à correcção das injustiças. Assim, o Estado como que “personificaria” o interesse geral independentemente dos resultados das eleições. Muitos consideram aberrantes as decisões do eleitorado quando as maiorias resultantes não correspondem à sua particular concepção do “interesse público” sem se darem conta de que, em última instância, isso é uma forma de impugnar a própria democracia.
A partir desse mito se deduzem as concepções inadequadas, hoje dominantes na esquerda, que levam à rejeição liminar de qualquer forma de privatização das funções actualmente asseguradas pelo Estado. Ao arrepio de Marx deixou de se opor o modo de produção A ao modo de produção B e passou a opor-se uma pretensa “autoridade moral” do Estado contra o poder económico civil, omitindo descradamente a questão do modo de produção. Uma coisa é certa, o Estado não é o embrião de um novo modo de produção e a sua importância advém, no essencial, de estarmos numa fase de transição em que o modo de produção capitalista já não “resolve” os problemas sociais e o novo modo de produção ainda não floresceu.
Esta deturpação teórica poderá eventualmente ser explicada pelo número enorme de cidadãos que hoje dependem economicamente do Estado.
Segundo Medina Carreira “temos 4,5 milhões de indivíduos que integram uma espécie de "Partido do Estado" (Cerca de 730.00 funcionários públicos; 2.591 000 pensionistas da Segurança Social; 477.000 reformados e pensionistas da Caixa Geral de Aposentações; 307.000 beneficiários do subsídio de desemprego; 351.000 beneficiários do RMI. Com os familiares próximos poderão ser uns 6 milhões de indivíduos, numa população de 10 milhões)”.
Ao contrário do que se poderia pensar este “Partido do Estado” não é constituído por cidadãos com uma visão uniforme mas sim por grupos cujos interesses podem até ser contraditórios (por exemplo os gastos com os salários dos funcionários reduzem os montantes disponíveis para financiar as reformas).
Nesta fase a opinião sobre o Estado e o papel que lhe cabe na sociedade são fundamentais para a caracterização dos estratos sociais; quando as condições sociais e económicas se degradarem para além de certos limites veremos emergir conflitos de classe de novo tipo e em nova escala e essa será, provavelmente, a profunda crise que acabará por abrir caminho ao novo modo de produção.
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