domingo, fevereiro 09, 2020
sábado, fevereiro 01, 2020
Fora de brincadeiras
Fora de brincadeiras
Será que a Joacine alguma vez visitou o Museu Etnográfico do seu país de origem? Será que tem noção das limitações com que vive? Será que faz ideia da extensão e riqueza insubstituível da "colecção guineense" depositada no MNE, em Lisboa, para não mencionar outros? Será que Joacine percebe que esse património, se os colonialistas não o tivessem trazido, teria já sido destruído numa das várias confrontações politico-militares que infelizmente têm ocorrido no seu país (o que aliás aconteceu com muito do que lá ficou)? A um deputado da nação temos que exigir mais conhecimento de causa e ponderação nas propostas.
(a propósito de uma proposta de devolução de património às ex-colónias feita no parlamento)
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quinta-feira, setembro 12, 2019
Apresentação das "Crónicas..."
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segunda-feira, agosto 19, 2019
Dia Mundial da Fotografia
Em vez de balas
No dia 1 de Maio de 1968, o Tenente largou do Tejo, rumo à Guiné, a bordo da fragata Corte Real. Era então um jovem fuzileiro, de 22 anos, recém casado, que interrompera os estudos de Economia na Universidade de Lisboa.
Subiu e desceu os principais rios da Guiné comandando as missões a partir das lanchas da Armada. Navegou no Cacheu até Farim, no Mansoa, no Geba e no Rio Grande de Buba. Ligou por mar a foz desses grandes rios e também foi a Catió, a Bolama e aos Bijagós.
A guerra era uma realidade penosa para quem como ele, jovem militante comunista, se opunha ao domínio colonial e defendia a independência das colónias. Partilhou esse drama pessoal com a sua mulher, que trabalhou como professora de História no então Liceu Honório Barreto.
A fotografia constituiu um paliativo. Ao fotografar a dignidade do povo guineense, a beleza das suas mulheres, o porte dos seus homens e o encanto das suas crianças, ele tinha a impressão de estar a fazer um gesto de amizade no contexto da guerra.
Quase não fotografou a guerra e os aparatos militares.
Dedicava-se a registar as gentes da tabanca, dos campos do arroz, os pescadores, e a garotada negra.
Felupes com os seu cachimbos, balantas em trajes de fanado, mandingas com as suas longas vestes. Rostos, corpos e gestos impressos a preto e branco.
No contexto da guerra estas eram coisas preciosas, que corriam perigo, mas que um disparo da câmara fotográfica dava a ilusão de resgatar para sempre.
Fotografias em vez de balas.
A fotografia, para o Tenente, ficaria definitivamente marcada por aquele momento inicial na Guiné. A fotografia como forma de viver, ou de sobreviver. Afirmação íntima contra a inevitabilidade do tempo e contra as inevitabilidades de cada tempo.
A fotografia não mais o abandonou. E aos setenta anos, como aos vinte, continua a desempenhar o seu papel de argamassa interior, lingando os tijolos da memória.
(Extractos do livro "Crónicas de um Tenente", 2019)
(a fotografia de cima foi feita pelo meu amigo José Carlos Alves Almeida)
sábado, junho 08, 2019
Crónicas de um Tenente
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segunda-feira, fevereiro 18, 2019
terça-feira, novembro 20, 2018
domingo, outubro 21, 2018
Em Vez de Balas
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segunda-feira, outubro 01, 2018
Em vez de Balas - no Mocho
Fizemos anteontem um convívio à volta das memórias da Guiné, de há 50 anos, na Casa da Cultura de Sacavém.
Foi com enorme prazer que recebemos, com apoio da Câmara de Loures, amigos da Quinta do Mocho e não só.
Como tínhamos previsto houve um diálogo muito rico de culturas e gerações. Nunca esquecerei.
As fotografias publicadas neste post foram feitas pelo Carlos Almeida e pela Sonia Figueiredo, que deram uma ajuda inestimável à concretização deste projecto. O Kally Meru e a Emanuela Kalemba, como sempre, foram incansáveis. Quero também agradecer à Elsa Arruda e ao restante pessoal da CMLoures pelo apoio prestado.
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domingo, agosto 19, 2018
19 de Agosto - Dia Mundial da Fotografia
É conhecido na sua terra por "120" já que, dizem, morreu com essa idade.
A fotografia é isto; na tabanca mandinga onde ele viveu,
o aparecimento das suas fotografias foi uma festa da memória colectiva.
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segunda-feira, maio 14, 2018
Oficial de serviço
Deixou o quarto que partilhava com dois colegas, ao fundo da parada, e caminhou pela noite enluarada na direcção do gabinete. Estava taciturno, colonizado pelas recordações da fugaz lua-de-mel, que antecedera o embarque para a Guiné.
O asfalto da parada fervilhava de minusculos sapos. Ele desviava os passos para evitar a horrível sensação de esmagar algum debaixo da sola. Uma gincana.
Então resolveu apanhar do chão alguns daqueles batráquios suicidas que pulavam em seu redor. Nos duzentos metros da parada, sem esforço de maior, recolheu uns sete ou oito.
Comichavam nas palmas das mãos e nos bolsos onde alguns tinham ido parar. Foi precisa uma certa habilidade para receber as indicações do oficial de serviço cessante, com a bicharada aos pulos. Mas o outro queria era safar-se dali o mais depressa possível.
Tomou posse do espaço. O gabinete tinha uma secretária metálica, de cinzento indefinível, e uma pequena estante de vidros de correr. Uma porta, por trás, dava para um cubículo com uma cama precária onde, altas horas, se não houvesse bronca, se podia dormitar.
Os sapos destinavam-se a amenizar as largas horas de pasmaceira que o tenente antecipava. Sob a luz mortiça do tecto, algum resto de jornal retardado costumava ser a companhia. Coisa deprimente.
Foi tirando os sapos dos bolsos e alinhou-os numa das extremidades do tampo da secretária. Não era nada fácil dar o sinal de partida para a corrida pois alguns sapos antecipavam-se e desatavam aos pinotes antes de tempo. Outros então, só com piparotes no traseiro iniciavam a participação.
Mas havia uma dificuldade adicional. Perante a inexistência de pistas individuais os sapos cruzavam-se desordenadamente e, em vez de caminhar para o outro extremo do tampo, precipitavam-se pela borda fora estatelando-se no chão.
Após várias tentativas, que ajudaram a passar a primeira das doze horas do encargo, o tenente fartou-se de aturar os sapos. Pegou na trupe, conforme pôde, e despejou-a no ajardinado adjacente ao gabinete. E ficou cara a cara com o tempo, e a chatice, que ainda faltava.
Voltou para a secretária e lamentou não ter trazido o livro que andava a ler. Embrenhou-se nos pensamentos. A sua mulher, cuja vinda tanto ansiava, mandara dizer que estavam completos os últimos exames da licenciatura. Tinha tido 18 valores a “História de não sei quê”, pois sempre fora boa aluna. Acabaria no liceu de Bissau a ensinar aos miúdos guineenses as glórias do Afonso Henriques.
Estava ele nesta modorra quando assomou à porta do gabinte o cabo Joel, atarracado e de boné sempre tombado nos incertos cabelos. O tenente não se pode dizer que simpatizasse muito com ele.
Com a sua voz rangida disparou: “Prenda-me senhor tenente”. O tenente, siderado, não sabia muito bem o que responder. Engoliu em seco duas vezes e depois disse baixinho “Põe-te a andar antes que eu me chateie”.
E o Joel insistiu: “Prenda-me, prenda-me senhor tenente”. O tenente levantou-se devagarinho, apontou para a porta do gabinete e gritou “Se não te pões a andar imediatamente chamo a guarda e levas um enxugo de porrada” e acrescentou alguns impropérios cuja reprodução a delicadeza não recomenda.
O outro lá se dirigiu para a porta, contra-feito, a resmungar, e desapareceu no escuro. O tenente voltou a sentar-se ainda confundido com a cena inédita que tinha presenciado. Um tipo aqui, lixado da cabeça, e leva com um anormal daqueles. Só espero nunca chegar ao estado em que ele está.
Não lhe saía da cabeça e e fez play-back da cena várias vezes. A certa altura apercebeu-se de um pormenor que não tinha relevado antes. O Joel, o tal chato, tinha entrado no gabinete com os bolsos atafulhados dabe-se lá de quê. Os bolsos dos calções brancos da farda entumesciam de uma forma inusitada. Só a irritação tinha impedido o tenente de lhe perguntar que raio era aquilo.
E o tempo voltou a rastejar como de costume naquele gabinete. E muita sorte tinha o tenente por se estar na estação seca. Ao menos não se tinha que aturar os mosquitos.
Com as coisas neste ponto morto, tocou o telefone. Mau, mau, querem ver?
O tenente pegou no auscultador como se tivesse peçonha e começou, mesmo antes de o levar à orelha, a ouvir uma gritaria do outro lado. “Senhor tenente! venha depressa! ao café Império! Está aqui um fuzo, na esplanada, a tirar granadas de mão dos bolsos e a pôr em cima da mesa”.
Raios parta, temos chatice. Mandou chamar o sargento da guarda e preparar a carrinha “creme nívea”. Pôs a pistola à citura, reuniu meia dúzia de homens estremunhados, e lá partiram avenida acima para o café Império.
Os clientes estavam espalhados pelo passeio, em pequenos grupos, e gesticulavam. O gerente saíu ao encontro da carrinha da guarda, de avental, e berrou: “Foi-se embora meu tenente! fugiu por ali!” e apontava para lá do Palácio do Governador, para a zona das vivendas finas onde se alojavam altas patentes e estados maiores.
O tenente deu ordens para arrancar, torneando a praça, e patrulharam demoradamente toda a zona das vivendas. A busca parecia destinada ao fracasso.
A certa altura, já numa avenida onde as vivendas terminavam e começavam as palhotas avistaram ao longe o Joel, ou o diabo por ele. O tenente gritou com o motorista mas, quando alcançaram, não conseguiram mais do que ver o Joel, todo nu, com a farda enrolada debaixo do braço, atravessar a avenida a correr e meter-se, tal e qual, pelo escuro da tabanca.
E quem é que se atrevia a entrar por ali dentro atrás dele?
O tenente deu ordem de retirada. No livro de ocorrências escreveu "um fuzileiro não identificado causou burburinho na esplanada do café Império e depois fugiu antes que a guarda chegasse".
Nunca se chegou a saber quando, e em que preparos, o Joel regressou à unidade.
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terça-feira, maio 01, 2018
Sementes de Cravo
Há precisamente cinquenta anos, a 1 de Maio, o tenente zarpou para a Guiné.
A fragata NRP Corte Real saiu a barra do Tejo ao cair de um dia que se mativera cinzento desde a manhã.
O tenente, recém-casado, passara um par de horas a ver a maré deslizar para montante, com Lisboa a estibordo. Só quem viveu os anos 60 em Portugal pode imaginar a desolação que se apoderara do seu espírito.
Na sala dos oficiais liam, jogavam e também escreviam cartas às suas jovens esposas que tinham ficado em Lisboa.
Já lá se encontrava um "transporte de tropas" do exército, com centenas de homens vestidos de verde, empoleirados como podiam, almejando perceber onde tinham vindo parar.
Muitos deles eram originários de vilas e aldeias do interior de Portugal, provavelmente na sua primeira viagem digna desse nome.
O tenente veio a saber mais tarde que os veteranos, que aguardavam a rendição em terra, designavam esses recém-chegados que os vinham substituir, carinhosamente, por "periquitos".
Todos os oficiais acabados de chegar eram obsequiados, na messe do quartel, com um jantar de boas-vindas.
Todos os oficiais (é da tradição) têm que, a um jantar, pagar espumante aos que já cá se encontram. E há sempre muitos discursos.
Todos foram unânimes em que a minha festa tinha sido a mais marcante desde há bastante tempo.
Quando o espumante começou a correr lembraram-se de cantar e descobriram que eu cantava bem. Foi o meu sucesso, cantei várias.
Desde o "Canta camarada canta" aos "Vampiros", passando pelo "Fui-te ver estavas lavando...
Mas não podes imaginar como as coisas aqui se precipitam
Em certo momento o champanhe e o brandy já eram excessivos e já toda a gente gritava em pé em cima das cadeiras"
canta que ninguém te afronta
que esta minha espada corta
dos copos até à ponta
Ou duma faca de ponta
Se hei-de morrer amanhã
morra hoje tanto conta
na ponta de uma navalha
Toda a vida hei-de dizer
Morra o homem na batalha
Aqui ninguém arredou
nem há-de tremer na Guerra
Sendo um homem como eu sou
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domingo, abril 01, 2018
Exposição em Bissau
Reportagem da RTP Africa
durante a inauguração da Exposição
no Centro Cultural Português de Bissau
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domingo, março 25, 2018
A mochila
Os homens tinham descoberto uma nascente a cerca de 50 metros do rio. Do lado esquerdo do pontão onde atracavam as lanchas.
Depois aguém se lembrou de fazer a “piscina”. Um nome megalómano que servia para designar um rectângulo, balizado por tijolos, onde a nascente empoçava nuns abissais setenta centímetros de profundidade.
Ao fim da tarde assistia-se sempre a um cortejo algo ridículo, de calções e toalhas de banho, que se propunha disputar um recanto da “piscina”. Mais do que refrescar-se o que eles pretendiam era ter a sensação de uns momentos de lazer, mesmo correndo o risco de ser mordido pelas sanguessugas, que arrancavam de perna alçada para gáudio dos colegas.
Naquele dia o tenente também lá foi. Que raio, não era por se misturar com os marujos que lhe caíam os parentes na lama. Ele já aprendera que a camaradagem não resultava, só por si, em faltas de respeito ou desobediências. Podia até reforçar a disciplina, por razões que não cabe aqui desenvolver.
Ouviu alguma piadas amistosas e lá meteu os pés na água morna, beneficiando da boa vontade devida a quem comandava aquele improvisado “aquartelamento”.
Tinham desembarcado ali um mês antes com toneladas de equipamento e víveres, debaixo de uma chuvada diluviana, e do nada que existia tinham feito nascer o “aquartelamento”. Adjacente ao rio e ao velho pontão, que ali ficara, dizia-se, dos tempos em que a CUF lá carregava a mancarra.
E lá ficaram a “ocupar a posição”, sem saberem bem porquê, ouvindo de quando em quando o canhão-sem-recuo do inimigo a fazer tiro de exploração a que o tenente não deixava responder. Na verdade, em termos de eficácia militar, nem tinham com que o fazer.
Foi então que surgiu a “piscina” e o referido banho do tenente.
Estava ele virado para o rio quando lhe pareceu ver um corpo vogando para montante. Saltou da água e aproximou-se da margem, fixando a vista. Não era a primeira vez que passavam animais, a boiar. Até um hipopótamo, inchado, se tal se pode dizer de um animal tão gordo, andara para baixo e para cima.
Farto daquela cena tétrica, meteu-se num bote de borracha e foi retirar o corpo da água. Era um guerrilheiro fardado e equipado.
Informado o QG, via rádio, ficou a saber-se que um grupo do PAIGC fora interceptado, quando atravessava o Cacheu numa piroga, e bombardeado. Ordenaram que se procedesse a uma tentativa de identificação do cadáver. O tenente recebeu ordens para comunicar o que encontrasse e guardar o cadáver até que chegasse o helicóptero para o levar.
Na mochila o tenente encontrou uma máquina fotográfica e muitas fotografias de reuniões políticas nas tabancas. O morto, percebia-se pelas imagens, seria uma espécie de comissário político que teria vindo fazer o seu trabalho de recrutamento e organização da resistência armada.
Num outro compartimento, encharcado, surgiu um livro: "Filosofia Marxista - Compêndio Popular", V. G. Afanassiev, Editorial Vitória, Rio de Janeiro. Nada mais nada menos que o último livro que o tenente andara a ler antes de embarcar para a guerra.
Um livro que ficara na sua casa de Lisboa. Um livro que ainda está na sua casa de Lisboa.
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sexta-feira, março 16, 2018
Foi neste mesmo cais do Cacheu
que se passou a história que eu vou contar.
Logo por azar fomos encontrar o cais sobrecarregado de lanchas e batelões. Tivemos que atracar ao último, que chegara antes de nós, e para ir a terra era preciso saltitar de embarcação em embarcação.
Lá fomos, receosos, soltámos amarras e atirámos a lancha contra o lodo da margem uns cem metros mais para juzante. As chamas iam alteando e não tínhamos com que apagar.
A chapa queimava-nos os pés, mesmo calçados com sola, e não sabíamos quanto tempo teríamos antes que o combustível ou as munições provocassem alguma explosão.
Mas não podíamos sossegar pois os cunhetes fixos de munições, em ferro, tinham sido sujeitos a enormes temperaturas.
Enchíamos um caixote com granadas, passávamos o caixote para um bote de borracha e íamos despejá-lo no meio do rio. Uma vez e outra.
Confiando na sorte.
À cabra-cega com a morte.
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domingo, março 11, 2018
Um violino no Cacheu
Um violino no Cacheu
Era uma daquelas intermináveis subidas do Cacheu. As lanchas ronronavam rio acima, quase paradas quando a corrente da maré era vazante.
Uma outra parte do combóio de batelões ainda não nos alcançara e foi decidido fazer uma paragem e pernoitar, fundeando, onde pudessem mais tarde encontrar-nos.
Escolhemos uma curva do rio onde o tarrafo era alto e denso; as margens despidas das clareiras eram locais de emboscadas e tiroteios. Só suicidas se atreveriam a fazer um ataque a partir da precariedade das raízes inclinadas do tarrafo. Ou quem nunca as tivesse experimentado.
Lançámos então o ferro e a corrente virou-nos a proa para a foz. Assim ficámos no silêncio que só as aves cortavam e sem acender gambiarras. Uma vez desligados os motores, sinal que dávamos a contra gosto, a nossa presença devia ser ocultada por todas as formas. Até tínhamos o cuidado de esconder as pontas dos cigarros.
O Cacheu é um rio avantajado e o mar sobe por ele quando a maré enche, como era o caso. Sentíamos um grande volume de águas passar por nós, rio acima, pondo à prova a firmeza do ferro no leito do rio.
A mais de cem metros estava a Canopus, que era comandada pelo meu amigo Henrique. Eramos ambos daquela geração de 60 que partiu muitos tabús e que fazia frente à ditadura. Quizera o acaso que a guerra nos fizesse reencontrar no Cacheu depois de nos termos conhecido nos convívios universitários de Lisboa.
Estava eu com os meus pensamentos quando percebi que a Canopus lançara um bote à água. Fiquei alertado, pelo inusitado, e vi o bote aproximar-se com o grumete a acenar e a dizer “o senhor comandante manda perguntar se o senhor tenente quer ir beber um café à Canopus”.
A Canopus era um navio de maior envergadura e, apesar de tudo, com mais habitabilidade e espaço do que a lancha em que eu viajava. Por isso, e especialmente pela conversa saborosa que me esperava, não demorei a aceitar o convite e a saltar para o bote de borracha.
O Henrique recebeu-me com bonomia, como era do seu natural, e instalámo-nos num compartimento da proa a beber um café e a conversar. O navio oscilava docemente e parecia que estávamos numa bolha, muito longe de um teatro de guerra.
A certa altura o Henrique propôs que víssemos um filme feito por ele. Lá montou um pequeno ecran e as imagens surgiram. O que elas mostravam eram apenas as águas de um rio, paradas como um espelho, e as margens deslizando, à esquerda e à direita, interminávelmente.
As imagens, belíssimas, eram quase hipnotizantes. Foi então que reparei que para tal contribuía também a maravilhosa música de violino que as acompanhava.
Foi assim que descobri o concerto do Tchaikovsky.
Ainda hoje, passados cinquenta anos, sempre que encontro o Henrique nunca deixo de lhe agradecer.
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domingo, fevereiro 25, 2018
Escrito no avião
Escrito no avião
de regresso à Guiné 50 anos depois
O avião levantou ao fim da tarde, com frio e núvens magníficas em Lisboa.
A maioria dos passageiros aparenta ser guineense e transporta incontáveis volumes como quem regressa a casa atulhado de presentes.
Há 50 anos tive alguns dias no mar para me adaptar ao calor de Bissau; agora vou ser despejado ao fim de quatro horas numa temperatura que deve ser o triplo da que sofria no ponto de partida.
Não sei bem como vou reagir a este reencontro.
As imagens que me chegam da internet desmentem a memória, que fixou uma cidade quase aldeia, com ritmos suaves e sem multidões.
Aos "ajuntamentos" festivos chamavam-lhes "ronco" e os batuques voavam da tabanca até aos bairros de vivendas dos brancos. Algumas vezes saí de casa, com a câmara na mão, por não resistir ao chamamento.
Pergunto-me se tal coisa ainda hoje acontece.
Eu morava numa transversal da avenida principal, numa casinha modesta para os padrões de Lisboa. Sem televisão, ou internet, os dias corriam naturais e coleccionávamos bicharada; como se não bastassem os que andavam à solta.
Tivemos cães, gatos, periquitos, camaleões, tartarugas e sei lá que mais.
O camaleão até serviu para decorar uma improvisada árvore de Natal. Depois o gato Rom-Rom trespassou-o com os seus temíveis caninos.
O Rom-Rom também caçava grandes lagartos, que trazia para debaixo da nossa cama, e até morcegos.
O pior eram os pombos que o vizinho tanto estimava. O vizinho já andava de olho no Rom-Rom e dizia-se que treinava com uma pressão de ar.
O Rom-Rom, uma autêntica fera, foi o nosso primeiro gato de uma longa série. E o mais dócil de todos apesar da sua costela selvagem. Trouxemo-lo para Lisboa onde nunca se adaptou e acabou por desaparecer.
Pergunto-me se ainda haverá gatos daqueles, e tantas outras coisas tão autênticas que nos encantavam, a nós que íamos de um país subdesenvolvido e pobre.
Será que o plástico invadiu a Guiné como aconteceu com as nossas feiras da província?
Vou de espírito aberto, à procura não sei bem de quê. Talvez daquela juventude que não tinha a consciência de o ser, que se limitava a usufruir da sua robustez intacta, do desplante da sua saúde sem mácula.
Ou então vou à procura daquele espírito ainda tão próximo da poesia e da utopia, que nenhum desgosto ou núvem conseguia perturbar.
Preciso de voltar a pisar aquela terra onde passei, psicológicamente incólume, os perigos da guerra e as tortuosidades do colonialismo.
A Guiné é uma terra avermelhada onde rareiam as pedras mas onde os bichos proliferam. Quantidades inimagináveis de caranguejos, mosquitos, ostras, sapos e escaravelhos.
Os varredores lançavam-nos contra os muros, onde faziam pilhas que davam pelo joelho. Louva-a-Deus e baratas voadoras atingiam-nos por vezes mal abríamos a porta da rua.
Com os sapos cheguei a fazer corridas no tampo da mesa de oficial de serviço, em longas noites de modorra sem zaragatas.
Ao dealbar, no silêncio da parada os jagodis, abutres locais de nariz adunco e andar pomposo, procuravam algo que se comesse e disputavam entre eles qualquer achado.
Nem de propósito estalou um bru-á-á no avião quando os passageiros descobriram que teriam direito, como jantar, apenas a uma sandes.
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quinta-feira, fevereiro 01, 2018
Em vez de balas
Ver o programa Fotobox aqui:
https://vimeo.com/253468657?ref=fb-share&1
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quinta-feira, julho 02, 2015
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quarta-feira, abril 09, 2014
APACHE
APACHE
- Despacha-te. Já estamos a ficar atrasados…
O tenente tentava apressar a sua jovem esposa que se alongava à frente do espelho.
O quarto tinha chão de cerâmica e mobiliário rudimentar, em grande parte desencantado nos armazéns do quartel. O que não se encontrara tinha sido inventado com caixotes de munições, primorosamente pintados, e garrafas grandes de Perrier atafulhadas de flores.
Uma esteira na parede exibia Che Guevara, fixado com dois punaises, de charuto entre os dedos e sorriso largo, ao lado da imagem icónica do vietcong, de mãos atadas, a ser alvejado na cabeça por um polícia. O tenente e a mulher tinham vindo directamente dos meios progressistas da universidade para a guerra na Guiné.
Enquanto ele comandava um pelotão de fuzileiros ela tentava garbosamente explicar os feitos de Afonso Henriques aos jovens mandingas e balantas que frequentavam o liceu.
As janelas da casa eram guarnecidas por mosquiteiros e davam para um esboço de alpendre.
Na sala acantonavam-se os livros que a bagagem militar tinha permitido e o gira discos de plástico com os seus long playings. Um recanto de cultura com que tentavam resistir aos dois anos de desterro.
- Despacha-te!
A sessão no cinema dedicada ao pessoal da Armada era sempre ao Domingo de manhã e estava prestes a começar.
Da casa do tenente numa transversal até à Avenida da República, onde se situava o cinema, não se demorava mais de dez minutos.
Saíram à pressa e seguiram, rua fora, contornando os montes de insectos que os varredores tinham arrumado contra os muros das casas, naquela zona quase toda habitada por brancos.
Quando chegaram à Avenida da República em vez de virarem para a esquerda, na direcção do palácio cor de rosa do Governador, giraram em sentido oposto e atravessaram para o lado de lá, onde se erguia o cinema.
Foi então que notaram algo inusitado. O tenente que, dado o seu atraso, esperava chegar já com a projecção a decorrer avistava magotes de fardas brancas agitando-se nas escadarias de acesso à sala.
Depois começou também a ouvir-se a algazarra.
Quando viram o primeiro tipo conhecido perguntaram-lhe o que se passava.
- Os marinheiros e grumetes querem levar também as mulheres para o balcão, como fazem os sargentos e os oficiais.
Não eram muito numerosos aqueles que estavam em comissão acompanhados pela mulher mas, até por causa disso, não se sentiam à vontade numa plateia cheia de homens sempre prontos para dixotes e calduços.
O balcão, onde assistiam circunspectos os oficiais, sobrevoava aquela balburdia como se ela não existisse.
Era então por causa disso que o átrio do cinema fervilhava; a arraia miúda recusava-se a ocupar os lugares na plateia enquanto os seus colegas casados não tivessem permissão para se sentar no balcão com as caras metade.
- A mulher de um oficial não é mais nem menos do que a mulher de um marinheiro
Gritava o enorme cabo João, barbudo como um apóstolo, para o capitão-de-fragata, segundo comandante da Guiné, que lhe segurara o braço e que, no minuto seguinte, sacudido pelo João, se estatelava nos degraus.
Foi nesse instante que o tenente percebeu que as coisas estavam fora de controle.
As tensões tinham vindo a acumular-se nos úlimos meses.
Não havia talheres suficientes no refeitório nem ventoinhas nas casernas.
No quartel, junto ao Geba, os protestos tinham vindo a suceder-se sem que o Comando Naval tomasse medidas para os obviar.
O cinema tinha sido o rastilho para soltar todos os ressentimentos.
Entretanto o capitão-de-fragata recompôs-se da queda e deu ordem ao cabo da guarda, em serviço de patrulha, que detivesse o cabo João.
O que se passou a seguir foi confrangedor, ou seja, não se passou nada. O cabo da guarda fez de conta que não tinha ouvido qualquer ordem e desandou no jipe sob as invectivas do superior.
De um momento para o outro, sem se perceber como, centenas de fuzileiros começaram a descer a avenida da República, a mais importante da cidade, como uma onda branca ululante que nenhuma força se atreveria a deter.
Alguns subordinados do tenente, com quem privava mais frequentemente, aconselharam-no a regressar a casa e a passar o Domingo calmamente em família.
Lá mais para a tarde o tenente soube pelos colegas que beberam lá em casa umas cervejas que no quartel, tomado nessa manhã pelos fuzileiros, a hierarquia deixara de vigorar e que o oficial de serviço, mais recalcitrante, tivera que deixar o seu posto correndo à frente das garrafas de Cuca que os marinheiros lhe atiravam.
O capitão-de-mar-e-guerra, a maior autoridade do comando naval, vira-se forçado a visitar o quartel e a contemporizar com a rapaziada. No essencial atendera todos os seus pedidos.
O tenente soube de todos estes desenvolvimentos com visível satisfação já que se tratava da coisa mais parecida com uma insurreição que lhe fora dado observar nos vinte e dois anos que levava de vida. E não sabia ele então para o que estava guardado.
Para comemorar tomaram a decisão de ir ao cinema, em grupo, depois do jantar.
O filme em exibição era o “Apache” do Robert Aldrich, coisa que o tenente nunca mais esqueceu.
Como de costume, no espaço que medeia entre a primeiras cadeiras da plateia e o écran, tinham sido colocados uns bancos corridos, de madeira, para a ganapagem que se dedicava a transportar as marmitas da messe e outros pequenos serviços ao domicílio.
Os garotos negros, em grande algazarra, aplaudiram todas as flechas e machadadas com que os índios brindaram a cavalaria durante aquela hora e meia.
O índio Burt Lancaster deve ter povoado os seus sonhos infantis quando, já noite alta, regressaram à tabanca.
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