segunda-feira, setembro 15, 2008

O ponto em que devemos retomar Marx

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Depois da derrocada do “socialismo real”, uma vez e outra Marx regressa, quase sempre como uma moda.
Faz sentido tentar perceber o que se mantém válido e o que está ultrapassado nas teses de Marx. Mas não faz muito sentido discutir Marx na base dos “erros de previsão”, tratando-o como um mago cujo objectivo fosse adivinhar o futuro.

A única coisa que ele previu foi que os homens lutariam contra a exploração, como sempre fizeram, mas nos moldes próprios da nova era industrial cuja adolescência ele presenciou. Nessa previsão acertou em cheio e, se o resultado obtido não nos satizfaz, não é a Marx que devemos culpar.

O nó górdio do marxismo está na relação, mal conseguida, entre a noção de “modo de produção” e a luta política e partidária pelo acesso ao poder. Como se a tomada do poder fosse suficiente para a emergência de uma "sociedade sem exploração".
Na esquerda marxista é comum tomar-se como bastante a luta política e sindical do dia a dia sem curar de compreender e integrar o ciclo mais longo da transição para um novo paradigma de organização social e económica. Dessa forma legitima-se, sem ter consciência disso, a famosa tese de Thatcher “there is no alternative”.

Sem dúvida que “a história de toda a sociedade até hoje é a história da luta de classes”, no sentido em que esse combate perpassa toda a evolução da humanidade. Mas convém perceber em que circunstâncias e em que condições a luta de classes deixa de ser uma mera questão de auto-defesa e se converte no motor da transição profunda nas formas de produzir e distribuir em sociedade.
Esta falta de clareza estende-se também à questão de saber qual é o papel e quais são as limitações do voluntarismo na transição do modo de produção. Com esta questão prende-se uma outra que é a de saber quando e onde se pode, ou deve, exercer tal voluntarismo. Seja qual for, em abstracto, a eficácia do voluntarismo ela efectivar-se-á em qualquer momento e em qualquer lugar ou estes têm que ser ponderados e escolhidos de acordo com determinados critérios ?

O primeiro a cometer o erro de escamotear as condições prévias para o desabrochar de um novo modo de produção foi curiosamente o próprio Marx. Em 1850 convenceu-se de que o capitalismo estava a chegar ao fim. Eis como em 1895 Engels conta o sucedido na introdução a “As lutas de classes em França de 1848 a 1850”:
“A nós e a todos quantos pensávamos de modo semelhante a história não deu razão. Mostrou claramente que nessa altura o nível de desenvolvimento económico de modo algum estava amadurecido para a eliminação da produção capitalista. Demonstrou isto por meio da revolução económica que alastrava por todo o continente desde 1848 e fizera a grande industria ganhar pela primeira vez foros de cidadania em França, na Áustria, na Hungria, na Polónia e ultimamente na Rússia, e, além disso, tornara a Alemanha num país industrial de primeira categoria. E tudo isto sobre fundamentos capitalistas que, em 1848, ainda tinham grande capacidade de expansão”.
(Marx e Engels – Obras Escolhidas, Trad. Portuguesa, Edições Avante, 1982, Tomo I, pag. 195).

Vejamos como Marx formalizou no prefácio de “Para a crítica da Economia Política”, 1859, os ensinamentos retirados do erro cometido:
“Uma formação social nunca decai antes de estarem desenvolvidas todas as suas forças produtivas para as quais é suficientemente ampla, e nunca surgem relações de produção novas e superiores antes de as condições materiais de existência das mesmas terem sido chocadas no seio da própria sociedade velha. Por isso a humanidade coloca sempre a si mesma apenas as tarefas que pode resolver, pois que, a uma consideração mais rigorosa, se achará sempre que a própria tarefa só aparece aonde já existem, ou pelo menos estão no processo de se formar, as condições materiais da sua resolução”
(Marx e Engels, Obras Escolhidas, Trad. Portuguesa, Edições Avante, 1982, Tomo I, pag. 531).

É neste ponto que, quanto a mim, devemos retomar Marx.

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5 comentários:

antónio m p disse...

Eu não sei se ele quiz ser mago ou se outros quizeram (ou querem) que ele tenha sido, mas dizer que «A única coisa que ele previu foi que os homens lutariam contra a exploração» parece-me muito curto. Talvez o seu maior erro, isso sim, fosse querer abarcar todas as matérias num corpo ideológico onde não cabe tudo, por mais que, como ele dizia «tudo se relacione».

Há manifestamente nas previsões de Marx, que as fez, demasiada ambição de conhecimentos que sendo ditada pelo entusiasmo da sua generosidade, extravasavam as possibilidades de visionar o futuro.

Mas o que é realmente grave é que hoje, comprovadas as debilidades em algumas das suas teses, haja quem pretenda escondê-las ou fazê-las passar por acertadas.

Anónimo disse...

É por estas e por outras que o "kota barbas" continua a incomodar e a dar água pela barba a muito boa gente.

Bom post Fernando!

nelson anjos

F. Penim Redondo disse...

Caro antonio m p,

em minha opinião as referências de Marx ao mundo do futuro são muito escassas, genéricas e não datadas.

O seu percurso pessoal mostra que ele queria essencialmente dissecar o capitalismo, por um lado, e motivar os trabalhadores para o destruir, por outro.

JOSÉ MANUEL CORREIA disse...

Redondo.

O ponto onde devemos retomar o Marx é no princípio. E o que devemos aproveitar do Marx é o método que ele usou na sua investigação, o método crítico, sujeitando as explicações do Marx ao fogo da crítica. Se quisermos produzir algo de novo, teremos de passar de apologetas a críticos.

Por um lado, porque as questões que ele abordou ainda são as essenciais; por outro lado, porque as suas explicações sobre a revolução social, sobre o valor das mercadorias, sobre a mais-valia, sobre a tendência para a queda da taxa de lucro, por exemplo, estão erradas (isto para ser brando).

A sua faceta de mago, de adivinhador do futuro, como bem diz, é a que menos interessa. Embora, paradoxalmente, para alguns comentadores modernos seja o mais importante. Tanto assim é que a cada crise do capitalismo trazem o nome do Marx à baila, como se ele tivesse sido o descobridor das crises cíclicas do sistema. Fundamentalmente, estes comentadores ainda não compreenderam que para qualquer excesso, como numa simples bebedeira, por exemplo, o remédio mais expedito é o de "carga ao mar".

Uma última observação. Os modos de produção não se destróem, esgotam as suas capacidades de desenvolver as forças produtivas sociais e são substituídos por outros que vão mostrando capacidade de continuar esse desenvolvimento, melhorando as condições da existência dos seres humanos. O que se destrói são os aparelhos ideológicos, jurídicos e políticos correspondentes à superstrutura do modo de produção que entra em decadência, de modo a facilitar o desenvolvimento do modo de produção emergente.

O apelo ao voluntarismo para a substituição do capitalismo como modo de produção dominante, que se depreende do Marx político, é mais uma sua contradição, que contraria o materialismo do marxismo de ser a realidade uma construção social independente da vontade dos homens.

Proximamente, vai realizar-se, entre nós, mais um dos muitos simpósiuns e debates académicos sobre a obra do Marx e sobre o marxismo. Como tem sido hábito, irá ser mais um fórum apologético à procura de pistas para prolongar uma explicação da realidade social que há muito está falida. Também como tem sido hábito, a academia, em vez de lugar de ciência, confirmará a sua condição de igreja, que em vez da produção do conhecimento busca o desenvolvimento da teologia.

JMC.

F. Penim Redondo disse...

jmc,

concordo genéricamente com o que diz.

Mas estou convencido de que há sempre uma margem para a acção humana por muito condicionada que esteja pelas circunstâncias.

No caso da transição de um modo de produção a outro, apesar das pesadas condicionantes tecnológicas e outras, o papel dos humanos vejo-o na busca de soluções alternativas (por tentativa e erro) e na disseminação das alternativas que se mostrem adequadas.