sábado, setembro 29, 2007

Tempestade sobre um Campo de Milho Transgénico – Parte II




1 – Ainda a “novidade” da acção dos Verde Eufémia
Foi com algum espanto que li no blog do Miguel Portas, Sem Muros, que “até hoje o debate sobre os transgénicos em Portugal não tinha passado do parlamento e de opiniões escritas nos jornais. A partir de hoje pode começar a ser diferente”. Num comentário que fiz no seu post, Eufémia desobediente, lembrei a acção, que já referi no artigo anterior (ver Parte I), levada a cabo no Porto de Lisboa pelo Greenpeace e que, há época (Fevereiro de 1997) teve razoável importância, lançando, na altura, em nome da Quercus, hoje falando em nome da Plataforma Transgénicos Fora, a incontornável Margarida Silva. Mas gostaria de lembrar que, para além dos comunicados, manifestos, discussões públicas em fora científicos ou de esclarecimento, este tema tem sido debatido em jornais e revistas, em programas de televisão e nas Assembleias Municipais, para declarar os seus municípios livres de transgénicos ou para impedir a realização de ensaios com OGM dentro dos limites dos seus concelhos. Já foi objecto de manifestações a que os organizadores chamaram caravanas dos espantalhos ou de acções directas como aquela que eu descrevi (ver Parte I) na ex-Faculdade de Ciências ou pela Brigada de Bio-Segurança e que é relatada aqui . O tema tem sido, portanto, razoavelmente divulgado e debatido. Constou até de um dos 10 pontos da plataforma eleitoral do Bloco de Esquerda para as eleições parlamentares de 2005, que depois foi substituído por outro, que o Bloco provavelmente considerou mais prioritário. Por tudo isto, espanta-me que esta acção dos Verde Eufémia fosse considerada como demiurga de um renovado interesse por este assunto. Foi de facto, mas, penso eu, para o matar de vez.

2 - Como se estivessem sempre a nascer de novo
Fico também surpreendido quando os ambientalistas anti-OGM de cada vez que empreendem uma acção ou publicam um comunicado o fazem como se fosse a primeira vez que falam do assunto e as pessoas desconhecessem o que já tinham dito anteriormente. Há dez anos que lutam contra os OGM, mas a última declaração constitui sempre a prova definitiva de que os OGM são perigosos. Ainda muito recentemente vi na televisão a Margarida Silva numa manifestação no Porto com a mesma “candura” com que há anos vem denunciando os perigos dos OGM.
Mas, se isto é uma impressão subjectiva de alguém que não concorda com os seus pontos de vista, apreciemos este comunicado da Plataforma Transgénicos Fora que teve ampla aceitação entre a informação de esquerda, foi publicado que eu visse em resistir.info e esquerda.net, e começa assim, foi “apresentada prova científica definitiva”, que depois ameniza para “prova científica irrefutável”. O mínimo que alguém que é cientista pode afirmar é que na ciência nada é definitivo e muito menos irrefutável. O comunicado referia-se a um novo tratamento estatístico dos dados referentes ao estudo da toxicidade do milho GM, MON 863, numa população de ratinhos apresentado pela multinacional Monsanto à Autoridade Europeia de Segurança Alimentar. Aquela autoridade reafirmou que o novo tratamento de dados apresentado não alterava as conclusões do estudo da Monsanto.
É evidente, e reconhecendo que estou a ridicularizar, para estes ambientalistas já tinham sido apresentadas provas definitivas sobre os efeitos nefastos dos OGM quando se publicaram os resultados de uma experiência em que se alimentaram ratinhos com batatas GM (Pusztai, The Lancet, Outubro de 1999) ou quando se relatou que, em laboratório, um milho GM provocava perturbações numa população de larvas da borboleta Monarca (Nature, Maio de 1999). Qualquer delas, no entanto, já caiu no esquecimento.
O que quero, portanto, afirmar é que o assunto não é novo, já tem pelo menos, no nosso país, dez anos de discussão e não se pode, como se fosse a primeira vez, propor a proibição ou a aprovação de novas moratórias sobre a cultura ou comercialização de OGM, como se não houvesse ao nível europeu e mundial já uma experiência longa com as mesmas. Hoje, as intervenções dos ambientalistas terão que ser diversificadas pois é manifestamente impossível impedir que a Europa comunitária autorize, dentro de condicionalismos apertados, a realização de culturas ou a comercialização dos OGM.
Neste caso, tem-se a sensação que os ambientalistas tal como o Governo funcionam perante factos consumados. Esteve-se anos a discutir a legislação, quando ela está pronta e depois dos OGM estarem aprovados em Bruxelas e as suas variedades GM inscritas no Catálogo Comunitário (inscrição indispensável à venda de sementes de qualquer variedade agrícola, quer seja transgénica ou não), aqui D’el-rei que é preciso proibir a sua cultura. Por tudo isto os ambientalistas têm que estar atentos, actuar no momento oportuno, forçar a criação em Portugal de Comités, Comissões, ou seja o que for, onde possam participar e dar a sua opinião. É evidente que isto dá trabalho, não é espectacular e não permite criar aquele espírito de pânico, que os leva a fazer comunicados que aterrorizam os consumidores. Mas o Governo também assim procede, só se preocupa com os OGM quando eles são referidos nos media. Mas as posições do Governo ficam para uma terceira parte.

3 - Os OGM e os seus medos
Permitam-me que neste ponto recorra ao artigo, a que introduzi algumas alterações, que foi por mim escrito para Ideias à Esquerda (nº 1, 2003):
“De que falamos quando falamos de OGM. Estamos a descrever, de facto, novos organismos que, devido à engenharia genética, têm o seu genoma alterado em relação à espécie original, alteração essa que permite a quem os produz ou os utiliza obter uma vantagem comercial ou industrial e até, no futuro, medicinal. Estamos pois perante uma nova tecnologia, que desde que avaliada caso a caso, tem aspectos sociais positivos e negativos, em função de quem a domina e ao serviço de quem está
As principais críticas que se levantam em relação aos OGM podem-se agrupar em três categorias, que por vezes surgem interligadas, que são o receio do desconhecido, um produto das multinacionais ou perigosos para a saúde ou para o ambiente.
1 - Receio do desconhecido: estaríamos perante a comida Frankenstein, abriríamos novas caixas de Pandora ou armar-nos-íamos em aprendizes de feiticeiro, isto na versão mais suave do irracionalismo acientífico, porque nas versões mais místicas estaríamos a alterar aquilo que é mais sagrado que é a vida, que a Deus pertence. “Este género de modificações genéticas conduz o Homem para um reino que só pertence a Deus e unicamente a Deus.” (Príncipe Carlos, The Daily Telegraph, 8 Junho de 1998). Penso que sobre estes argumentos estamos conversados. São as novas variantes irracionalistas contra o apogeu das “luzes” na cultura ocidental.
2 - Produto das multinacionais: como esta técnica foi desenvolvida inicialmente e depois comercializada pelas multinacionais da agro-química e teve uma grande desenvolvimento nos Estados Unidos da América (várias culturas) e em países onde existe uma agricultura intensiva, principalmente Canadá (colza, milho e soja), Argentina (soja, milho e algodão) e Austrália (algodão), foi associada ao poderio económico dos EUA e das suas multinacionais. Hoje em dia, tem sido desenvolvida igualmente na Índia (algodão), na China (algodão), nas Filipinas (milho), na África do Sul (milho, soja e algodão), no Brasil (soja e algodão), no Paraguai (soja), no Uruguai (soja e milho), no México (soja e algodão) e em alguns países da Europa Comunitária, como sejam a Espanha (milho), a Roménia (soja), Portugal (milho), a França (milho), a Alemanha (milho), a República Checa (milho) e a Eslováquia (milho). Apesar de estarmos perante uma técnica que serve as multinacionais, que já eram donas dos principais produtos fito-farmacêuticos e da distribuição de sementes à escala mundial, pode igualmente ser desenvolvida por centros de investigação nacionais ao serviço da produção e da independência económica. Cuba está neste momento investindo fortemente nas biotecnologias e a China está-se virando denodadamente para a cultura das plantas transgénicas
3 - Perigosos para a saúde e para o ambiente: este é sem dúvida alguma o problema que desperta mais medos na população e nesse sentido o lançamento no mercado de novos OGM deverá ser sempre acompanhado, pelo menos a legislação europeia já o exige, de avaliações de risco, como não são feitos para mais nenhum outro alimento, sobre o seu impacto no ambiente e na saúde humana. É evidente que levado ao extremo o princípio da precaução, hoje tão caro a qualquer legislação ambientalista, seria impossível cultivar qualquer planta transgénica, mas, igualmente, muitas outras plantas, cuja inocuidade para a saúde humana não é absoluta.
Os OGM são pois produtos obtidos a partir de uma tecnologia de ponta que, posta ao serviço dos interesses nacionais e da defesa da independência económica permite obter resultados extremamente favoráveis, principalmente se se tomar em conta as possibilidades imensas que as alterações genéticas de certas plantas abrem no campo da medicina (introdução de vacinas e de vitaminas, fritos com menor absorção das gorduras, etc.), na resistência à seca ou ao frio ou na obtenção de maior produtividade.”

4 – Os OGM e a Esquerda
Os grupos ambientalistas foram os primeiros a alertarem e a lutarem contra os OGM. As suas críticas se, numa primeira ofensiva, incidiam muito sobre o aspecto irracionalista da questão, hoje são uma mistura hábil de argumentos em defesa da saúde, do ambiente e do consumidor, tudo isto debaixo da insinuação de que, por serem produzidos pelas multinacionais, os poderes públicos não nos protegem devidamente contra a sua nocividade. Propõe, em alternativa, a defesa da agricultura biológica.
A esquerda em Portugal, não vinculada ao PS, numa preocupação justa de envolver no seu discurso a defesa das preocupações ambientais, tem vindo, com as especificidades próprias de cada corrente, a manifestar-se contra os OGM, seguindo de certo modo a mesma argumentação dos ambientalistas.
Assim, para o PCP, e recorrendo a um artigo recente publicado no Avante , “até que existam provas cabais da inexistência de riscos para a saúde humana e animal e para o ambiente do uso de OGM, deve respeitar-se o princípio da precaução e recusar-se a patenteação e mercantilização da vida, não permitindo que um punhado de multinacionais, sobretudo americanas, possam controlar os agricultores e a agricultura, ou seja o controlo da alimentação.” Tal como afirmei em relação aos ambientalistas, para este Partido os problemas da saúde humana e ambientais justificam que se proíba ou suspenda a cultura dos OGM que, acrescenta o texto, são produzidos por um punhado de multinacionais americanas.
No entanto, para o comentarista do jornal Avante, a posição anteriormente defendida “não pode ser de forma alguma confundida com a rejeição da biotecnologia, o seu desenvolvimento e a sua aplicação ao serviço da humanidade através da investigação pública.” Não estaria mais de acordo com esta posição, pena é que ela não sirva para separar a luta justa contra as multinacionais no âmbito do agro-negócio dos perigos inventados que são atribuídos aos OGM já autorizados.
Quanto ao Bloco de Esquerda, uma leitura rápida do site esquerda.net permite-nos concluir por uma grande afinidade deste partido com os movimentos ambientalistas, dando a maioria das vezes voz à Plataforma Transgénicos Fora ou ao Greenpeace. No entanto, Louçã defende, em afirmações transcritas no esquerda.net, “uma agricultura livre de organismos geneticamente modificados, de acordo com a opinião da maioria da população e dos cientistas, em alternativa a uma agricultura ao serviço das grandes multinacionais do sector, que controlam a produção mundial de produtos transgénicos.” Realçando assim que, o que está em causa é a crítica a uma agricultura ao “serviço das multinacionais” e não expressamente os problemas ambientais e de saúde humana, apesar da referência um pouco deslocada da rejeição dos OGM pelos cientistas. No entanto, não encontrei naquele site, ao contrário do Avante, a defesa da biotecnologia posta ao serviço da humanidade através da investigação pública. Pode-se considerar que ele está mais próximo da visão estritamente ambientalista do Greenpeace, expressa em “12 perguntas e respostas sobre transgénicos”, do que das posições ainda dominantes no PCP de uma ciência ao serviço do povo e do progresso social.
Quanto ao PS segue a trajectória de Partido de Governo. Quando está na oposição é mais ou menos contra, quando está no Governo é mais ou menos a favor. É pois o bom exemplo das ambiguidades do Governo português sobre esta matéria. Quer dar a ideia nos media que é contra, mas no Governo nada faz para clarificar a situação. O mesmo se passa como PSD, cujo PSD/Algarve chega a declarar, a propósito dos acontecimentos de Silves, que o Ministro da Agricultura “actuou com a celeridade de um verdadeiro capataz das multinacionais dos transgénicos”. São Partidos pouco fiáveis sobre este assunto e têm sido responsáveis pela ausência na opinião pública portuguesa de uma posição séria e fundamentada sobre os OGM.

5 - Algumas ideias feitas sobre os OGM
Uma das críticas que mais tem sido realçada em relação aos OGM tem sido de que os agricultores que adquirirem sementes deste tipo ficam presos a elas para sempre, pois têm todos os anos que as comprar à multinacional que as produz. Isto é verdade, contudo a maioria do milho que hoje se produz nos campos do Sul do país (Ribatejo, Oeste e Alentejo) já está dependente das multinacionais do ramo, quer para a aquisição das próprias sementes, quer para os agro-químicos.
Hoje a maioria das sementes comercializadas são de milho híbrido, com as respectivas variedades inscritas no nosso Catálogo Nacional, ora, como o próprio nome indica, estas sementes resultam do cruzamento de diversas características, assim, de acordo com as leis da hereditariedade de Mendel, logo na segunda geração essas características separam-se, não permitindo pois que o agricultor conserve sementes de milho de um ano para o outro. É evidente que este tipo de culturas tem que ser compatível com aquilo que se passa em certas zonas do Norte do país, onde o milho é cultivado em pequenas parcelas de terreno e onde os agricultores foram seleccionando as melhores variedades e conservando as suas sementes de ano para ano. Esta imensa riqueza foi mantida em bancos de germoplasma. Não sei se presentemente, com a fúria economicista que atravessa o Ministério da Agricultura, ainda subsiste o Banco Português de Germoplasma Vegetal, com sede em Braga?
Outra das ideias feitas é aquela que considera que na Europa a maioria da população está contra os OGM, o que é verdade, não pelas razões evocadas pelos ambientalistas, mas porque as multinacionais, habitadas a tratar directamente com os agricultores, não perceberam a força do movimento dos consumidores na Europa, e introduziram inicialmente no mercado, produtos que só são vantajosos para a minoria que os cultiva e nunca para a maioria que os consome. Perguntam os ambientalistas, qual a vantagem que os consumidores retiram de um milho GM, resistente à broca do milho? Nenhum, respondem aqueles em uníssono. Penso que a segunda geração de OGM, mais virada para os interesses do consumidor, obterá de certeza maior apoio destes.
Mas voltando à resistência da Europa aos OGM. Uma das ideias feitas é que tem sido a força do movimento ambientalista e dos consumidores que tem impedido a sua libertação no espaço europeu e que os Governos, feitos com os americanos, arranjam sempre artimanhas para fazerem avaliações de risco pouco fiáveis, deixando assim entrar na fortaleza europeia o Cavalo de Tróia do imperialismo. Ora nada disto é verdade. Em Portugal, que eu tenha conhecimento, a primeira pressão que houve para que o nosso Governo não votasse favoravelmente um tomate GM, foi dos produtores de tomate portugueses, que queriam vender para o mercado inglês tomate com a garantia que não era GM. Mas mais recentemente, no Governo do PSD/CDC, houve posições diferentes em Bruxelas do Ministério da Agricultura e o do Ambiente, porque o primeiro, penso que por pressão de Associação Nacional dos Produtores de Milho e Sorgo (ANPROMIS), votava nos plenários em que estava representado contra a aprovação de OGM destinados à alimentação humana e animal, e o segundo, na base unicamente de pareceres científicos, votava favoravelmente nos comités do ambiente. Interessa também saber que se a CNA tem tomado sempre uma posição clara contra os OGM, já a CAP teve posições muito ambíguas, de esperar para ver. Dizia-me já há anos alguém do Ministério da Agricultura que no conjunto dos intervenientes na produção do milho em Portugal, os únicos que tinham interesse no milho GM era os produtores de rações para animais. E com razão, quanto mais caro compravam o produto mais caro vendiam a sua mercadoria e o milho não-GM é vendido mais caro do que o GM.
Por isso, também durante muitos anos, a França foi uma das principais opositoras a produção de milho GM, pois, como a sua produção era excedentária, estava interessada a colocá-lo no mercado mais caro, dado que o americano por ser GM não podia ser exportado para a Europa. Como em Espanha isso já não se verificava, este país virou-se para a produção de OGM, votando sempre em Bruxelas pela sua autorização.
Outros países, como a Áustria, que tinha investido fortemente na agricultura biológica, eram dos mais resistentes à sua aprovação na UE. O mesmo sucedia com o Governo de Berlusconni, em que o ministro neo-fascista da Agricultura foi sempre um dos principais opositores aos OGM, dado que, e com razão, achava que estes iriam destruir os produtos tradicionais da agricultura transalpina.
Havia também multinacionais do ramo alimentar, como a Nestlé, que garantiam que os seus produtos não continham OGM, porque os consumidores não queriam.
Todos estes exemplos tentam chamar a atenção para que a luta contra os OGM baseada unicamente nos perigos para o ambiente e a saúde humana, sendo justa, quando exige rigor na aprovação daqueles, pode muitas vezes conduzir, mesmo que isso não seja deliberado por parte dos seus promotores, a um grupo económico sair reforçado em detrimento de outro e não à verdadeira defesa de uma agricultura diferente, do ponto de vista social e económico.
Por outro lado, a difusão das culturas GM à escala mundial exige um outro rigor de apreciação, que obriga as forças progressistas a cada momento a saberem para cada país quais são as forças camponesas aliadas, quais os interesses das burguesias nacionais, que são as principais portas de entrada das multinacionais do ramo, e quais os Governos que estão ao serviço de um verdadeiro desenvolvimento das suas populações. Tudo isto exige muito mais rigor, ter uma perspectiva progressista da luta, e não nos deixarmos arrastar por meia dúzia de proclamações incendiárias, que não correspondem à verdade científica e que se podem voltar contra nós quando as forças progressistas puderem vir a ser Governo.
O post já vai longo e dado o muito que ainda queria escrever terei que partir para uma terceira parte.

Sociedade da Informação e da Flexisegurança

sexta-feira, setembro 28, 2007

Afinal também fui Funcionário Público



Mexer no baú tem destas coisas. Fui descobrir um outro EU de que já me esquecera, num verdadeiro "Dr Jekyll and Mr Hyde".

Ao raiar dos meus 20 anos, entre 1965 e 1967, servi a coisa pública como professor de Cálculo, Direito Comercial e Economia Política. Não se pode dizer que eu não era flexível e versátil (se então houvesse sindicatos não teriam permitido tal violência contra o meu bestunto para não falar na integridade do sistema de ensino).
Nunca esquecerei o manual de Economia Política, que espero reencontrar um dia destes, pois incluía a seguinte definição:

"Capital é, por exemplo, a farda de um polícia pois sem ela não teria direito a receber o seu salário"

Sabe-se lá que influência pode ter tido no meu posicionamento teórico o contacto, em idade tão tenra, com esta definição.

Aqui fica uma confissão, em especial para os meus amigos que me acusam cada vez mais de descambar para o liberalismo: eu também já pertenci ao meritório colectivo dos funcionários públicos.

Uma dúvida final: ainda há diplomas assim ou já é tudo Simplex ?







quinta-feira, setembro 27, 2007

As três meninas


Os deuses devem estar loucos.
O telejornal da RTP (e se calhar também os outros) abriu com três meninas.
A já inevitável Maddie, que afinal não estava na fotografia de Marrocos, mais a Esmeralda que vai ser devolvida ao "pai biológico" e ainda outra, cujo nome esqueci, que com dois anos de vida foi presumivelmente morta pela mãe ao pontapé.

Esta pedofilia mediática, este "lá vai água" hertziano, este refastelar nas baixezas humanas faz-me compreender aqueles que já desistiram de ver televisão, ler jornais, e outras coisas mais.

Depois disto a peixeirada do PSD não passa de mais uma brincadeira de crianças.

quarta-feira, setembro 26, 2007

Já que estamos a falar da China...



O ex-presidente da China, Jiang Zemin, foi o primeiro solista a cantar na nova casa de ópera da capital da China, Pequim.

Jiang cantou trechos de uma ópera ocidental e de um ópera chinesa para os funcionários do Grande Teatro Nacional, de acordo com o jornal South China Morning Post, de Hong Kong.

Em 2001, Jiang cantou O Sole Mio com o tenor italiano recém-falecido Luciano Pavarotti, depois da apresentação em Pequim do grupo Os Três Tenores (Pavarotti, José Carreras e Plácido Domingo).

O teatro, cuja construção foi iniciada em Dezembro 2001, fica no centro de Pequim, perto da Praça Tiananmen. É cada vez mais referido com "casca de ovo" porque tem uma suave forma semielipsóide. Tem uma sala de ópera com 2416 lugares, uma de concerto com 2017 e ainda um teatro para 1040 espectadores.




Jiang Zemin deixou a Presidência em 2003, sendo substituído por Hu Jintao.

O líder chinês cantou Love Me Tender, popularizada por Elvis Presley, depois de um jantar com o presidente filipino Fidel Ramos, na reunião de cúpula do Fórum de Cooperação Económica Ásia-Pacífico na capital das Filipinas, Manila, em 1996.

Um espanto...

terça-feira, setembro 25, 2007

O "Mundo Global" em Beja



Vai realizar-se em Beja, entre 29 de Setembro e 7 de Outubro, promovido pela Câmara Municipal, um conjunto de iniciativas destinadas a promover o conhecimento de outras culturas e a fomentar a integração de comunidades de imigrantes na nossa sociedade. Este ano é dedicado à China.(ver o programa AQUI).

Com a colaboração da Embaixada da República Popular da China e do Centro Científico e Cultural de Macau terão lugar exposições de fotografia, de cartografia e de livros bem como eventos de caligrafia, de Tai Chi e acumpuntura.
É com enorme satisfação que eu participarei nesta excelente iniciativa expondo, pela primeira vez, o conjunto das 170 fotografias feitas na China em Abril de 2006.

Todos os anos a CASA DA CULTURA de Beja promete acolher os testemunhos e documentos de uma cultura/civilização com que os portugueses, os fautores da primeira globalização, se tenham relacionado.



segunda-feira, setembro 24, 2007

A melhor da semana passada - 6





Público, 22 de Setembro 2007, clique no texto do artigo para ampliar.

domingo, setembro 23, 2007

É a concorrência (ao estilo europeu), estúpido !

(cartoon de Ben Heine)


Não é por considerá-los retardados que a União Europeia deixa de amar os seus cidadãos. Sendo louca por eles, pretende evitar que lhes aconteça algum mal. Tomando-os por estúpidos, sabe que a sua hipotética liberdade, prejudicada pelo escasso discernimento, os conduziria a trágicos desenlaces. Em consequência, a missão da UE consiste em resguardá-los da possibilidade de escolher (erradamente) e, em simultâneo, forçá-los a escolher (acertadamente). Estes tocantes cuidados reflectem-se nas instâncias políticas da UE, que em geral dispensam o voto popular, e na vida quotidiana.

Veja-se o caso Microsoft. Uma esmagadora maioria dos computadores europeus está equipada com software da empresa americana. O consumidor europeu, na sua ignorância, adquire produtos da Microsoft por achá-los incomparavelmente mais eficazes ou mais baratos que os similares. A Microsoft, para cúmulo da desvergonha, adiciona software gratuito ao Windows e ao Office, e o consumidor, na sua cegueira, recebe os brindes com satisfação.

O consumidor é uma besta. Por sorte, uma besta defendida pela vigilância da UE, que em 2004 condenou o tenebroso Bill Gates por "abuso de posição dominante" e vê agora um tribunal seu e isento confirmar a multa de 497 milhões. Trata-se de um enorme passo para libertar o europeu médio das suas decisões individuais e orientá-lo no sentido do Bem, leia-se da quinquilharia informática cara e disfuncional que ele até aqui recusava. Os competidores da Microsoft, protegidos da obrigação de agradar à clientela, agradecem. A Microsoft, que mudou o mundo, resigna-se ao rancor de ociosos sem préstimo. Os ociosos acrescentaram 497 milhões aos genéricos subsídios da prostração. E o consumidor, salvo de si mesmo, é capaz de não perceber devidamente este extraordinário triunfo em prol de uma extraordinária concepção de concorrência. O consumidor, não sei se já referi, é idiota.

in Diário de Notícias, 23 de Setembro 2007
Alberto Gonçalves, sociólogo, albertog@netcabo.pt

sexta-feira, setembro 21, 2007

Vícios privados, publicas virtudes?

No PUBLICO de ontem, a propósito da disputa “Mendes&Menezes” (que aliás não me interessa para nada), dizia Rui Tavares:
“Uma parte grande da população ressente-se mais do excesso do poder das empresas do que da acção do Estado. A ideia de que as empresas são por definição mais eficientes também tem levado uma grande sova da realidade. A empresarialização das funções municipais cheira a corrupção, e por aí adiante”.

Não há duvida de que os exemplos estão mesmo a matar...
Mas é pena que haja aqui uma “pequena” imprecisão; de facto, as empresas, por definição, têm condições para serem mais eficientes, mas isso não quer dizer que sempre e todas o sejam.
No entanto a expressão “por definição” não é apenas enfática! Significa que para serem consideradas como tais as empresas têm de ter as características e funcionarem segundo as regras do empreendedorismo.

Ora não há nada mais longe desse modelo e dessas regras do que as empresas municipais que não enfrentam concorrência, e onde os gestores estão sempre seguros e os “riscos” são sempre cobertos pela “vaca leiteira” do orçamento. As chamadas empresas municipais são apenas uma extensão do universo autárquico, criada quase sempre com o objectivo de escapar ao control do Estado, que continua no entanto a sustentá-las. Chamar-lhes “empresa” é apenas uma forma de expressão...

E quanto àquilo de que a população se ressente: nas estatísticas das organizações de defesa dos consumidores o 1º lugar das queixas é ocupado pela PT, exactamente um caso exemplar de uma empresa teóricamente privada mas que vive de exclusivos, protecções e facilidades várias que o Estado lhe proporciona.
Neste caso temos o pior dos dois mundos, trata-se de uma empresa com fins lucrativos, o que segundo a lógica do articulista seria pior para os consumidores, mas que fica “isenta” de se aperfeiçoar por pressão do mercado, o que sempre seria uma compensação para esses mesmos consumidores.
(cartoon de Ben Heine)

quinta-feira, setembro 20, 2007

Talvez na próxima reencarnação...

A visita a Portugal do Dalai Lama surpreendeu-me.
O pouco que sei do budismo tem dois pontos muito positivos: não ter a pretensão de conquistar aderentes e respeitar todas as formas de vida. Nesses aspectos particulares considero-me um budista por geração espontânea.

Dito isto não me pareceu muito católica, ou seja budista, a evidente idolatria dos nossos crentes perante um velhote simpático que gosta obviamente de dizer graças e trocadilhos, como quase todos os velhotes. Talvez os membros desta inefável intelligentzia queiram ser considerados "reencarnações" de um lama do séc. XVII como aconteceu, segundo consta, com o "actor" Steven Seagal (que doou não sei quantos milhões).

O que eu esperava era que se juntassem todos no Pavilhão Atlântico à volta de uma formiga, respeitosos, em vez de exigir às autoridades que "recebessem" o Dalai Lama.

Para o expoente máximo do budismo Cavaco não devia ser nem mais nem menos do que uma carraça, Sócrates equiparado a uma melga e a mosca tzé-tzé tão respeitada quanto Jaime Gama .

Talvez na próxima reencarnação...

quarta-feira, setembro 19, 2007

A farsa volta à cena no Parque Mayer ?


O jornal Público de ontem, pela pena de Luís Filipe Sebastião, noticiava:

"Os eleitos do PS e do Bloco de Esquerda na Câmara Municipal de Lisboa querem saber o valor que o terreno do Parque Mayer tinha na altura em que foi permutado com parte dos terrenos da antiga Feira Popular, em Entrecampos. Na proposta que amanhã vão apresentar ao executivo camarário prevê-se a criação de uma comissão para avaliar o terreno e determina-se que os serviços camarários informem sobre todos os processos com firmas do grupo Bragaparques.
Segundo um comunicado do gabinete do vereador José Sá Fernandes, na reunião camarária será apresentada uma proposta do BE e do PS para a constituição de uma comissão com a finalidade de avaliar o terreno do Parque Mayer em 5 de Julho de 2005, data da escritura pública da sua permuta com uma parte dos terrenos onde estava instalada a Feira Popular, em Entrecampos.
A avaliação deve levar em conta "os índices de construção máximos permitidos pelos instrumentos de ordenamento territorial e regras urbanísticas aplicáveis, nomeadamente as resultantes do Plano Director Municipal em vigor".
O texto propõe que a comissão seja constituída por Alfredo José de Sousa, ex-presidente do Tribunal de Contas, Issef Ahmad, antigo director-geral do Património, e António Jorge Matos Fernandes, que foi administrador da sociedade Teixeira Duarte. A comissão deverá elaborar o relatório final "no prazo máximo de três meses".

Sendo sabido que: (1) Os partidos em causa estavam na câmara à data em que a permuta aconteceu, (2) Que a actual vereação resultou de eleições em que se esgrimiram acusações de corrupção contra a vereação anterior, (3) Que há muito se noticia a acção da PJ na investigação do negócio citado, (4) Que o valor de uma propriedade imobiliária não resulta de uma tabela mas sim de julgamentos feitos, na circunstância, pelos intervenientes no mercado, pergunta-se:

a) O que impediu o PS e o BE de obter a avaliação do Parque Mayer em tempo útil como lhes competia ?

b) Se o valor do Parque Mayer é desconhecido com que fundamento acusaram a vereação anterior ?

c) Porque não serve a avaliação que a PJ certamente vai efectuar no quadro da sua investigação ?

d) Os três meses dados à comissão de avaliação proposta destinam-se a simular um rigor que o atraso com que o seu trabalho se inicia não deverá permitir ?

e) É apenas mais uma farsa que sobe à cena no Parque Mayer ?

terça-feira, setembro 18, 2007

Midwest em vez de Middle East



Os "do costume" não perderam mais uma oportunidade para trazer de volta o famigerado exame de "Inglês Técnico" do nosso primeiro-ministro só porque ele, na conferência de imprensa conjunta com Bush, falou de "Midwest" em vez de "Middle East".

Puro engano. Estamos em condições de garantir que se tratou, isso sim, de uma manobra diplomática genial que lançou uma onda (visível na imagem) de admiração.

Ainda atordoado pela Exposição "Ecompassing the Globe", o que quer que isso signifique, Sócrates quis mostrar que não devemos deixar-nos obcecar pelas questões de resolução praticamente impossível quando podemos dedicar-nos a outras bem mais pacíficas.

As posições da UE e dos EUA são totalmente coincidentes no que toca ao "Midwest" (Illinois, Indiana, Iowa, Kansas, Michigan, Minnesota, Missouri, Ohio, Nebraska, North Dakota, South Dakota e Wisconsin). Já o mesmo não poderá dizer-se do "Middle East".

Para além do mais no "Midwest" há muito menos radicais islâmicos.

Os computadores como eu os via há 20 anos

Computadores – Questão Técnica ou Questão Social ?


Tal como muitos outros produtos "tecnológicos" os computadores parecem seguir, quanto ás preocupações dominantes que suscitam, um padrão de evolução típico. Começando por ser questões científicas, na medida em que partem de uma ou mais descobertas da investigação, evoluem posteriormente para o plano tecnológico durante o processo de viabilização da produção de quantidades socialmente significativas. As questões económicas tornam-se dominantes através dos investimentos e da luta pela conquista dos mercados em consequência dos quais a massificação da utilização dos produtos tecnológicos traz para primeiro plano as preocupações de carácter social.

Esta ideia pode ser testada com produtos tecnológicos mais antigos do que os computadores como por exemplo os automóveis e os televisores.
No que diz respeito aos computadores estamos agora a chegar ao fim da "fase económica" e despontam já os sinais da "fase social".
Isto não significa que os aspectos económicos, ou mesmo tecnológicos e científicos deixem de ter importância; apenas deixarão de ser dominantes.
É claro que esta passagem leva o seu tempo e acabará por ter de ser forçada pela massificação real, quando ela se verificar, condicionada pela maior ou menor capacidade das organizações e dos indivíduos para aperceber, equacionar e perspectivar as consequências sociais dessa massificação.

O processo de massificação do uso dos computadores sofreu uma aceleração decisiva com a introdução dos microcomputadores mas o desenvolvimento completo dessa tendência está longe do esgotamento quer nos escritórios e nos serviços publicos quer na actividade produtiva.

Como a "história" dos computadores é excepcionalmente curta ela possibilita a numerosos indivíduos e grupos atravessarem mais do que uma fase e mesmo, nalguns casos, todas as fases (científica, tecnológica, económica e social).
Tal facto explicará por que é tão comum uma atitude de embevecimento técnico socialmente acrítico, bem como o atraso na abordagem das questões económicas subjacentes à produção, aquisição e utilização dos computadores.

Duas ordens de questões ilustram amplamente o que acaba de ser enunciado; as que respeitam às formas de utilização dos computadores e as que se prendem com a eventual produção nacional dos mesmos.
O lugar comum de que utilizar computadores é bestial e a "Lapalissada" de que devíamos produzir, nós próprios, os nossos computadores (e porque não os carros e aviões, etc) compuseram o caldo de cultura para o florescimento da "modernização".
Os políticos em voga acotovelaram-se no afã de "modernizar" a sociedade, a economia, a indústria, as fábricas e mesmo os pobres dos trabalhadores (muitas vezes vítimas de cursos sem sentido).
Evitam o trabalho de explicar o significado do termo “modernização” fazendo de conta que a coisa é evidente, que o problema nem sequer se põe. Entusiasmados, dezenas de analistas e outros escreventes igualmente ignorantes, pegam-lhes na palavra e ao fim de pouco tempo os pacatos telespectadores e os circunspectos leitores já são furiosos defensores dos robots, antenas parabólicas, supercondutores e outras maravilhas da era tecnológica.

Isto até nem faria mal nenhum se não resultasse num entupimento da capacidade crítica que deveria sempre aferir, pela bitola das necessidades humanas, os "prodígios" que para alguns são apenas um negócio.
Não se nega, e seria absurdo negar, as virtualidades imensas contidas nas tecnologias da informação (e nas outras). Nem é isso que está em causa.
O que é aberrante é a ausência de diferenciação no que respeita às potenciais utilizações dessas tecnologias.
Será indiferente informatizar balcões de bancos ou guichets de hospitais ?
É igual automatizar uma fábrica para produzir o dobro com as mesmas pessoas ou automatizar para produzir o mesmo com metade das pessoas ?
É igual pôr um computador a contabilizar as propinas escolares ou a apoiar pedagogicamente o ensino ?
É igual usar os computadores para animação de gráficos publicitários ou de diagnóstico médico ?
(Note-se que perguntámos "é igual ?" e não "é melhor ?").
Todos sabemos que não. Só não sabemos por que nunca se discute isto.

Pelo que se sabe os japoneses foram exigentes compradores e eficientes utilizadores antes de se tornarem os maiores produtores de robots. Deveríamos meditar nisto antes de embarcarmos em ilusões "industriais" no domínio da informática.
Mas voltemos de novo à "modernização". Alguns, mais estruturados ou mais sinceros, explicitam minimamente o seu entendimento do termo.
É mais ou menos isto: Modernização = Iniciativa privada + produtividade + inovação

A esses diremos que chamam "modernização" a uma receita antiga.
Os acréscimos de produtividade, sem dúvida desejáveis, são para distribuir pelo maior numero de intervenientes já que a revolução científica e técnica é, ela própria, produto da sociedade como um todo.
A inovação, o trabalho criativo, são processos que ocorrem no cérebro humano o que implica, irremediavelmente, que os trabalhadores serão os exclusivos proprietários de tais meios de produção.

Publicado em "o diário" a 7 de Novembro de 1987

segunda-feira, setembro 17, 2007

A melhor da semana passada - 5




O cão pisteiro português

Meu caro Ministro da Justiça

Como sabe, a PJ contratou um cão pisteiro para detectar mais facilmente o odor a cadáver. E, na primeira semana, a contratação foi totalmente bem sucedida. O Bóbi conseguiu não só encontrar 27 cheiros a cadáver em criminosos diversos, como 31 cheiros a cadáver político na beca doutoral do prof. Marcelo, 457 indícios na estátua do Marquês de Pombal e, pelo menos, um falecido de tédio, que terá passado à condição de cadáver adiado depois de ter contactado o ministro Nunes Correia e um cadáver exquisito, cuja complexidade cultural é demasiada para lhe explicar o que é.
Na segunda semana, o cão pisteiro afirmou que estava farto de viver na sede da PJ, na Gomes Freire, como se fosse um detido nos calabouços e exigiu um pequeno apartamento com ar condicionado, televisão de plasma e uma aparelhagem mp3. Apesar de tudo ainda farejou vagamente um ou dois cadáveres bancários na farpela do eng.º Jardim Gonçalves, 100 mortos de indignação num discurso do dr. Alberto João Jardim e resolveu seis crimes considerados insolúveis, além de passear com insistência olfactiva entre as redacções do «24 Horas», do «Correio da Manhã» e do «Diário de Notícias», onde o cheiro de cadáver tem sido intenso esta época.
Na terceira semana, o Bóbi confessou que não tinha condições e aderiu a uma jornada de protesto da CGTP. Não obteve mais do que um ou dois cheirinhos e num deles nem soube dizer se era cadáver ou bagaço do mau.
Na quarta semana, o cão pisteiro português ameaçou fazer greve, disse que o Governo era incompetente e responsabilizou o ministro da Administração Interna pelo fracasso da política de segurança (além de ter contado uma anedota cifrada sobre o senhor primeiro-ministro, a qual foi devidamente anotada e está neste momento a ser descodificada).
Na quinta semana, o Bóbi passou a entrar, não às nove, como era seu hábito, mas por volta das 10h30 e passava a manhã toda a ler a imprensa, nomeadamente a gratuita, que aproveitava depois para as suas necessidades fisiológicas. Na hora do almoço demorava uma eternidade e quando voltava queixava-se de não ter uma viatura com ar condicionado à disposição. Não farejou um único cadáver de jeito, ainda que tenha descoberto as ossadas de Luís de Camões num local de que já nem o professor José Hermano Saraiva se lembrava.
Na sexta semana, o cão meteu baixa de três dias e decidiu faltar outros dois por assistência à família, embora ninguém saiba (e ele faça disso mistério) se tem família. Farejou um cadáver, mas quando o seguiram, os agentes verificaram que estavam no Cemitério dos Prazeres.
Na sétima semana, o director da PJ decidiu colocá-lo no quadro de supranumerários, facto a que ele resistiu dizendo que com 60 por cento do salário não pode comer o salmão indispensável ao seu apurado faro.
Parece que agora é comentador de uma televisão.
Aqui fica o relatório que me pediu.
Receba um abraço do seu

Comendador Marques de Correia
Expresso, 15 Setembro 2007

domingo, setembro 16, 2007

Os novos Códigos e o Absurdo


A discussão sobre os códigos Penal e do Processo Penal ameaça tomar foros de paixão.
De facto, aspectos como o das novas regras da prisão preventiva e as confissões de impotência das policias e agentes de combate à criminalidade mexem com os nossos medos colectivos e com as nossas necessidades mais básicas de segurança de vida e bens.
Receio por isso que se vá gritar muito e compreender pouco.

Não me interessa entrar na discussão de códigos e processos, e tentarei não me deixar levar para os aspectos emotivos. Mas como cidadã que considera que a lei e a justiça são assuntos que dizem respeito a todos, chamo a atenção para isto: o que essencialmente está em causa é mais uma vez o péssimo funcionamento da justiça em Portugal e o desfasamento entre a letra das leis e a vida real.
A limitação dos casos de aplicação da prisão preventiva e da sua duração não teria como consequência a libertação de criminosos provados (e até já condenados, mas ao abrigo de recurso), se houvesse prazos realistas para as várias diligências judiciais (antes e durante a fase de tribunal), e se os agentes envolvidos, incluindo os juízes, fossem responsabilizados pelo seu cumprimento.

Esta questão dos prazos e da irresponsabilidade é das maiores mazelas da justiça portuguesa e está na base da desconfiança que nela têm os cidadãos comuns e do aproveitamento que dela fazem os transgressores da lei.

Abraçando o Mundo




Encerra hoje, em Washington, a Exposição "Encompassing the Globe:
Portugal and the World in the 16th and 17th Centuries" já em tempos referida aqui no DOTeCOMe Blog.

A exposição fora inaugurada Cavaco Silva no dia 20 de Junho 2007.

Na hora da despedida, com uma pontinha de orgulho nacionalista, aqui ficam dois links interessantes sobre este tema:

ARTCYCLOPEDIA

Arthur M. Sackler Gallery,Smithsonian Institution


sábado, setembro 15, 2007

Os fantasmas de Goya

No último filme de Milos Forman, já tratado neste blog, há uma linha que me parece muito interessante.

Começa a esboçar-se logo no principio, quando os padres da inquisição se interrogam perante as gravuras de Goya: “É então assim que somos vistos em todo o mundo?” , e quando Lorenzo Casamares, para proteger o pintor ou melhor, o seu retrato que ele estava a produzir, desencadeia o processo que está na origem da trama emocional do filme.

Goya não é ali simplesmente Francisco de Goya y Lucientes, pintor.
É aquele que detém o temível poder de revelar a natureza profunda do mundo e da alma dos homens. Melhor dizendo, de propôr uma "interpretação" dessa natureza.
Veja-se o temor quase reverencial com que o inquisidor e a rainha se aproximam pela primeira vez dos seus retratos; eles vão descobrir como é que são na realidade, ou seja, para os outros. E agradados ou não, não se atrevem a contestar a sua imagem.

Talvez por isto, Milos Forman não chamou a este seu filme “Goya”, como chamou “Amadeus” ao outro, que alguns críticos insistem em colocar em comparação para se declararem desiludidos com a falta de peso e consistência do personagem...

Para mim este filme não é obviamente sobre Goya. O pintor é um instrumento, um símbolo do poder da imagem, que consiste em nos apresentar a realidade em conjunto com uma proposta de interpretação. Ou seja, a realidade como objecto questionável.

sexta-feira, setembro 14, 2007

Tempestade sobre um campo de milho transgénico: parte I

Apesar de atrasado, aqui vai este artigo sobre os acontecimentos de Silves:

Sobre a recente polémica relativa à destruição (17/8/07) de cerca de um hectare de milho transgénico, em Silves, por um grupo de ambientalistas de uma organização até aí desconhecida denominada Verde Eufémia, publicou recentemente o historiador de direita Rui Ramos um artigo de opinião no Público, de 12/9/07. Diz ele, em resumo, que os ambientalistas, a que ele chama activistas, estão a abrir portas já abertas dado que o mundo se converteu à “onda verde”. Assim, diz o autor: “a causa “verde” ganhou o debate público. Isto quer dizer que pode, crescentemente, contar com a lei e a força da lei. Ora, para uma causa nesta situação, não convém dar cobertura à “acção directa”, isto é declarar a lei irrelevante.” É evidente que todo o artigo visa diminuir este tipo de acções, ridicularizando-as até ao limite. No entanto, não deixa de ter alguma razão quando considera que, do ponto de vista da ideologia dominante (esta afirmação é minha), o ambientalismo pode ser defendido, dentro de certos limites – digo eu –, “por poderosos interesses comerciais, como sejam os da indústria das energias alternativas”. Não é Carlos Pimenta, do PSD, um dos rostos mais visíveis da energia eólica?
Nesta perspectiva, a luta contra os OGM é igualmente assumida por diversas correntes políticas e ideológicas, quer em Portugal, onde este fenómeno é muito menos visível, quer na União Europeia, podendo a mesma, variando consoante a prática política dos diversos agrupamentos, ir da extrema-direita, dos neofascista italianos, até à extrema-esquerda. Por esse motivo, é normal haver referências favoráveis nos media dominantes a acções, posições e manifestações públicas dos diferentes grupos ambientalistas contra os OGM.
Acções semelhantes a esta já se tinham verificado em Portugal, estou a lembrar-me daquela que foi desencadeada pelo Greenpeace contra o desembarque de milho transgénico no Porto de Lisboa (1997), que contou com o apoio activo da Quercus, e são normais em Inglaterra e em França, onde se destacou Joseph Bové, que foi recentemente candidato presidencial naquele país. A que foi realizada no estuário do Tejo teve até imprensa favorável, não concitando, como esta, a condenação política e opinativa.
Nesta perspectiva, poder-se-ia pensar que os Verde Eufémia, grupo pelo vistos criado unicamente para esta iniciativa, acompanhando o normal evoluir da opinião pública e dos media se deixaram arrastar para esta iniciativa, sem terem previsto a tempestade que iriam provocar. Pensando eu que os próprios, ou pelo menos os que em espírito os apoiariam, não previram todas consequências políticas do seu acto, ou seja, que ele teria muito mais consequências negativas do que positivas: doravante quando se falar em Portugal em lutar contra os OGM todos se lembrarão dos encapuçado de Silves. A verdade, é que este grupo sabia ao que vinha e já não era a primeira vez que actuava assim.
Provavelmente Rui Ramos tem razão quando no seu artigo afirma que os “activistas podem argumentar que os legalistas do movimento se renderam ao “sistema”, ou que é preciso abandonar pragmatismos e cautelas e ir mais longe”. Esse passo já tinha sido dado. Ainda recentemente, num colóquio organizado na antiga Faculdade de Ciências, à rua da Escola Politécnica, um grupo, penso eu, ligado ao GAIA – que parece ter estado ligado a esta acção de Silves –, irrompeu de abrupto na sessão, primeiro filmando tudo, como para intimidar os presentes, depois desfraldando cartazes e por último, perante a enorme paciência do presidente da mesa, interrompendo quando bem entendia qualquer intervenção da assistência. Disseram-me na altura que uma acção deste tipo já tinha sido realizada num debate efectuado no Alto Alentejo. Ou seja, estamos perante um caso em que estes ambientalistas abandonam o respeito pela legalidade, eu diria, pelas regras do “sistema”, e enveredam deliberadamente pela provocação ou “acção directa”.
Estamos pois confrontados com acções anarquizantes, cujos mentores visam desmascarar o poder reinante ou provocar a repressão, que já deram origem a algumas arruaças e manifestação “espontâneas”, cujo último exemplo foi a marcação de uma manifestação para o dia 25 de Abril, na Praça da Figueira, paralela às comemorações populares do mesmo e a outra, organizada pelo Movimento Não Apaguem a Memória, que decorreu em frente da antiga sede PIDE, e que não obedecia a qualquer convocatória legal, que provocou, neste caso, grande repressão policial e profundas divisões na esquerda, que não soube, como é seu costume, lidar com este caso. Manifestações deste tipo são o pão-nosso de cada dia no estrangeiro, permitindo sempre que as manifestações anti-globalização se transformem em fonte de destruição e de vandalismo, quer pela acção da polícia, quer pelos manifestantes. Têm sido estas imagens que têm permitido a cabos de esquadra como o Sr. Pacheco Pereira lançar os seus anátemas sobre os “filhos de família” que se manifestam contra a globalização e que mais uma vez serviram para a direita e os comentadores do costume exercerem a sua vocação policial.
Pensando eu que esta acção ultrapassou largamente os objectivos dos seus organizadores e, acima de tudo, de todos aqueles que neste país têm empreendido a luta contra os OGM, como seja a Plataforma Transgénicos Fora, que se demarcou parcialmnte da iniciativa, a verdade é que a sua repercussão pública foi extremamente negativa e, nem os media, que foram chamados ao local para assistir ao evento, conseguiram posteriormente transmitir a ideia de uma saudável manifestação de irrequietismo juvenil contra as “sementes do diabo”.
É evidente que estou contra as conclusões do articulista citado inicialmente que considera que, como esta causa já é dominante na opinião pública, este tipo de acções não tem qualquer apoio mediático e político. Penso, pelo contrário, que foi a posição inicial do Miguel Portas, do Bloco de Esquerda, corrigida posteriormente por ele, e a actuação benevolente da GNR, que permitiu imediatamente à direita desencadear todas as baterias pesadas sobre o acontecimento, inclusive o sempre parco Cavaco Silva. CDS e PSD, na sua luta contra o Governo, manifestaram-se contra a “passividade” e “complacência” da GNR e a actuação do Ministério da Administração Interna, associando esta acção aos assaltos e à falta de segurança nas ruas. O Ministro da Agricultura atacando o Bloco de Esquerda, em resposta às críticas que este tem feito ao Governo e tornando claro que o PS de Sócrates, não alinha pelo de António Costa, não fazendo acordos com tal gente. Toda a direita e os seus comentadores contra PS e Bloco de Esquerda, quer pela raiva que o recente acordo de Lisboa provocou nas suas hostes, quer para poderem zurzir nos manifestantes encapuçados, os tais “betinhos” e “filhos de família”, sem ter o odioso de apoiar a repressão policial, como recentemente sucedeu na já referida manifestação da Baixa lisboeta. O PCP é o único que permaneceu calado, nem tugindo nem mugindo.
Os que são contra o “sistema” foram vítimas da mais descarada demagogia do “sistema”. Sobre os OGM, propriamente ditos, é que pouco se falou, mas isso fica para artigo posterior.

quinta-feira, setembro 13, 2007

Os Fantasmas da Humanidade

O filme de Milos Forman "Os fantasmas de Goya" faz todo o sentido nos tempos de transição em que vivemos. Tenho a certeza de que vai ser incompreendido por todos aqueles que fizerem uma leitura superficial. Para mais o filme põe em causa tanto o fanatismo religioso como o fundamentalismo libertário.

A principal "lição" do filme é que devemos distinguir sempre os diferentes níveis dos fenómenos sociais: as grandes teorias/ideologias, por um lado, as formas de alcançar o poder e de o exercer, por outro, o tecido económico e as suas lógicas, outro, e a moral vigente no cidadão comum, ainda por outro.

Os vários níveis influenciam-se mutuamente mas podem ter, no tempo e no espaço, evoluções assíncronas; por exemplo uma ideologia libertária, sem deixar de o ser, pode ser o alibi para um sistema político opressor e uma crença religiosa arcaica pode ser a base de uma justa luta de libertação nacional. Os exemplos não faltam na história.

O filme consegue ser original na forma como mostra as violências de sinal contrário e tem mesmo algumas cenas de antologia. A sequência da saída da prisioneira do santo ofício que é libertada para cair em plena violência jacobina é uma delas.

O filme tem momentos em que tenta lançar pontes para o presente. É chocante ver um general Napoleónico dizer aos seus soldados que os espanhóis os vão receber de braços abertos quando, pela invasão, os libertarem do odiado rei. Exactamente o que foi dito aos soldados americanos que invadiram o Iraque.
E com os mesmos resultados.

quarta-feira, setembro 12, 2007

Música Galante

Jean-Philippe Rameau morreu a 12 de Setembro, em 1764.

Aqui fica, em sua homenagem, o "Rondeau des Indes Galantes" interpretado por Magali Léger e Laurent Naouri e os Musiciens du Louvres sob a direcção de Marc Minkowski.
Uma música plena de energia e de optimismo.

terça-feira, setembro 11, 2007

MANUEL VIEIRA


segunda-feira, setembro 10, 2007

A melhor da semana passada - 4




SUECA PROIBIDA DE FUMAR NO SEU JARDIM

Um tribunal da Suécia proibiu uma mãe de 49 anos, que fumava no jardim para não expor os seus filhos ao fumo passivo, de fumar qualquer cigarro na sua propriedade.
O fundamentalísmo do vizinho, que pôs a acção em tribunal, ditou que apenas numa área mínima do seu jardim, marcada com um x, a mulher possa de facto fumar...


Expresso, 7 Agosto 2007

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Os novos cruzados estão por toda a parte; nos cigarros, nos transgénicos e nos radares que vigiam o trânsito. Deixam-se obcecar por uma ideia válida que depois exageram até se tornar absurda.
Estão convencidos de que a sua missão é salvar os infiéis, mesmo contra a sua vontade.

sábado, setembro 08, 2007

A Globalização em S. Teotónio

Fotografia de Carlos Monteiro


Há dias precisei de contactar alguém que vive na zona de S. Teotónio, a sul de Odemira e a uns meros 20 quilómetros do mar.
Sofri as agruras de "curva e contra-curva" e tive a sensação de me afastar irremediavelmente da sociedade da informação. As indicações muito vagas que me tinham sido dadas não se conseguiam materializar e eu pedia socorro pelo telemóvel, de vez em quando, por entre os barrancos secos.
Uma ou outra casa que se encostara às costas dos velhotes não me servia de consolo pois aqueles que eu procurava, sabia-o pela pronuncia, eram estrageiros.

Ao fim de muitas voltas e quando a "estrada" mostrava vontade de se esvair topei com uma vivenda com um carro alemão à porta. Julguei que a minha saga havia terminado.

Bati à porta e esperei o normal quando se chega a uma casa no meio do campo, feliz por não ouvir nenhum ladrar. Abriu-se a porta e atrás dela um sorriso acolhedor.
Eu expliquei ao que vinha; primeiro em português e depois, já em crise, no meu inglês. Não fui compreendido e tive que passar ao gestual.

A senhora de meia-idade vinda de Kassel, soube eu mais tarde, não era a alemã que eu procurava. No meio daquele deserto onde ela mora vá-se lá saber porquê mostrou uma enorme simpatia e vontade de ajudar.

Pegou num papel onde eu escrevera o número do telefone do meu pretendido destino e lá foi telefonar para, em alemão, perceber quem eu era, ao que vinha e quem por mim esperava. E não se ficou por aí, vestiu um casaco e acompanhou-me para que eu não me perdesse. Posso garantir-vos que me perderia já que a certo passo, mesmo de jeep, hesitei em prosseguir pois me parecia que a estrada me estava a acabar debaixo das rodas, substituída por um precipício.

Mas lá chegámos. À nossa espera uma família de alemães com dois filhos quase adolescentes. Do alpendre só se viam quilómetros de barrancos ásperos.

Não interessa explicar-vos o motivo da minha viagem mas achei que vos devia contar o meu espanto neste novo Alentejo profundo.

sexta-feira, setembro 07, 2007

Um percurso surpreendente

Conheci o Carlos Quintas em 1993 e convivi profissionalmente com ele durante sete anos. As nossas empresas estavam ligadas por participações no capital e funcionámos no mesmo edifíco, em andares adjacentes, durante alguns anos.
As nossas relações foram sempre cordiais e amistosas e eu pensava que o conhecia bem. O Carlos Quintas, que eu admirava como empresário, era dotado de uma objectividade impiedosa, uma auto-estima que roçava a arrogância e uma voracidade que levara a sua empresa a “conquistar terreno” desde a Austrália até ao Brasil, passando pelo Japão.
Se alguém me dissesse no princípio do ano 2000 que o Carlos Quintas iria mergulhar durante anos num retiro budista de meditação eu talvez largasse uma gargalhada.
No entanto foi exactamente isso que aconteceu.
Vejam o que ele disse sobre essa experiência nas páginas da Visão de ontem. Quando o encontrar vou ver se percebo melhor...

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Chegou de fato e gravata, num BMW azul escuro e com uma pasta na mão.
Carlos Quintas, 47 anos, regressou, recentemente, de um retiro budista no Sul de França, onde esteve em isolamento durante quatro anos. Mas, assim, à primeira vista, parece que nunca deixou de ser o presidente executivo da Altitude Software, uma empresa de novas tecnologias (criadora de software inovador para call centers) que se tornou num caso de sucesso internacional. A entrevista decorre no edifício Mozart, uma das torres junto do zoo de Lisboa, de entrada ampla e porteiro de serviço, onde vive, com a mulher e os dois filhos. No interior do apartamento, com vista sobre o eixo Norte-Sul, poucas manifestações existem da sua fé budista. As excepções são o colchão usado para meditar, enrolado no chão, e a estátua de uma divindade, numa das prateleiras da sala, a um canto.

Longe vai 8 de Novembro de 2,000, dia em que a Altitude Software estava prestes a ser cotada na bolsa de Amesterdão e Carlos Quintas a dois passos de se tornar multibi-lionário.
A Oferta Pública Inicial da promissora start-up realizava-se com perspectivas de valorização até 460 milhões de euros e, passado um ano, de 2 mil milhões. Só que, no dia da estreia no mercado de capitais, rebentou a bolha especulativa da era da Internet – a bolsa de Amesterdão caiu 5 por cento. Por essa altura, já os investidores institucionais tinham desistido da operação.

«Não me afectou grande coisa - sabia que a empresa ia ficar bem. Mas não era multibilionário, como previa», diz Carlos Quintas. A empresa, muito inovadora mas com contas desequilibradas, acabaria por ser vendida a Gastão Taveira, em 2003. «As pessoas julgam que o meu retiro se deveu às dificuldades da empresa. Na verdade, foram processos independentes mas paralelos. Já antes estava a tentar livrar-me da gestão diária da companhia, queria deixar de ser tão executivo. A venda acabou por me libertar.»

0 MOMENTO DA VIRAGEM

Á vida confortável que levava não conseguiu apaziguar as inquietações filosófico-religiosas que lhe inundavam o espírito. «Nunca fui do tipo de trabalhar 24horas por dia, não andava sempre estressado, fazia coisas de que gostava.» Esqui na neve e na água eram actividades a que dedicava bastante do seu tempo. Foi várias vezes campeão nacional de esqui aquático, na sua categoria, e atingiu um segundo lugar num campeonato do mundo. «Não é nada de especial, somos muito poucos, nesta modalidade», desvaloriza.

Qual o sentido da vida? O catolicismo com que cresceu não oferecia respostas satisfatórias. «Desenvolvi um espírito científico, era materialista.» Todavia, também a ciência acabou por se esgotar. «Há coisas que não se conseguem explicar por esse modelo, como a mecânica quântica», diz o antigo gestor, nascido em Olhão, no Algarve, mas criado em Setúbal.
«Tinha tudo o que queria. Mas, mesmo que não quisesse mais, podia sempre perder o que já conseguira. Tudo é temporário.

Perguntava-me: é inevitável ou há solução? Quanto mais temos, mais sofremos. Aprendi que a felicidade e o sofrimento são estados de espírito, percepções. Uma mente livre contribui para se atingir o estado de felicidade. Toda a gente pode chegar lá.»
O primeiro contacto com o budismo surgiu quando o director da filial dos EUA da companhia que geria lhe ofereceu o livro The Ari of Happiness, da autoria do Dalai Lama. Mas o grande momento de viragem aconteceu quando viu, pela primeira vez, em pessoa, o líder budista. Foi em Lisboa, em 2001 numa conferência realizada pela reitoria da Universidade de Lisboa.

...

O ex-gestor, formado em Engenharia Electrotécnica pelo Instituto Superior Técnico, com 18 valores, ainda não sabe o que vai fazer profissionalmente. Mas desmistifica a ideia de estar afastado do mundo. «Não vou ser um alien, um eremita...», esclarece. As capacidades que, entretanto, desenvolveu, de concentração e, até, de melhor aproveitamento do tempo, tornam-no, diz, «mais eficiente». A prioridade, porém, é cultivar a generosidade e fazer bem aos outros. E não porque se considere especialmente bom em comparação com os restantes mortais - aliás, o budismo ensina que só pensando na felicidade dos outros se alcança a felicidade própria. É um «facto inegável», corroborado pela experiência: «Os egoístas inteligentes são os mais altruístas...»
Os princípios budistas têm sido aplicados àgestão de empresas. Um dos casos públicos de sucesso é o do americano Michael Roach, da Andin International Diamond Company, uma companhia de comércio de pedras preciosas, Michael escreveu The Diamond Cut-ter, no qual relata como a adopção dos princípios budistas conduz à prosperidade.
Carlos Quintas ocupa, agora, parte do seu tempo a organizar a visita do Dalai Lama a Portugal. Para os seguidores de Buda (que não é uma pessoa, mas um estado da mente) será sempre um desafio equilibrar actividade e meditação. Mas mesmo esta, ao que parece, consegue conjugar-se com outras ocupações. Carlos Quintas diz que, ao longo desta entrevista, esteve sempre a meditar. Não vale a pena queimar neurónios a pensar em como isso é possível. São coisas para budista entender.


Carla Alves Ribeiro, Visão, 6 de Setembro 2007

terça-feira, setembro 04, 2007

A Utopia e as malas Vuitton (2) - a minha dissidência privada

“Eu dissidi, tu dissidiste, ele dissidiu, nós dissidimos, vós dissidistes, eles dissidiram“.

Aqui está um verbo que bem podia ter nascido nos anos oitenta do século XX.
A leitura dos livros da Zita Seabra e do Raimundo Narciso desencadeou em mim uma série de memórias dos “anos Gorbatchev” que sumariamente caracterizei em texto anterior, o primeiro desta série.

Como disse então gostaria de vir a compreender, e não apenas descrever, a sucessão de factos e de transformações que levou tantos milhares à dissidência, activa ou passiva.
Em minha opinião as dissidências só podem surgir quando desaparece um elevado grau de confiança nos líderes. Enquanto isso não acontece os militantes como que se dispensam de pensar, tão convencidos estão de que alguém o faz, melhor, por eles.

No meu caso, que julgo ser similar a muitos outros, o “25 de Novembro” foi o primeiro momento que abriu a porta à dúvida sobre dirigentes até aí considerados quase infalíveis. O curso dos acontecimentos, claramente mal previstos e mal geridos, legitimava a pergunta: “devo confiar cegamente nos dirigentes partidários quando está em causa o futuro do país, a eventualidade de uma guerra civil e, no limite, a minha própria sobrevivência ?”.

Deixemos para outra ocasião Novembro de 1975, assim como todas as coisas mal explicadas que então aconteceram, e voltemos a meados dos anos oitenta quando surgiram Gorbatchev e Cavaco, provocando novas quebras de confiança que redundaram nas dissidências do PCP.
Eu já militava no PCP há 20 anos e, sendo embora amigo de muitos dissidentes “notáveis”, tinha feito um percurso muito diferente. Continuava na célula da minha empresa, o maior potentado nas tecnologias da informação, longe portanto do “sector intelectual” onde as dissidências tiveram quase sempre a sua génese ou o seu principal eco.

Fui sucessivamente eleito, de 1981 a 1993, para a Comissão de Trabalhadores e também, de 1989 a 1993, para a Direcção do CESL, Sindicato do Comércio e Serviços de Lisboa. Paralelamente pertenci ao organismo intermédio do PCP responsável pelos militantes do comércio e serviços da cidade de Lisboa e orientei o grupo de células das empresas multinacionais de informática.
Apesar desses cargos, que desempenhei em paralelo com a actividade profissional, penso que continuei sempre a ser, no essencial, um militante da célula de empresa.

Como qualquer militante “dedicado” fiz de tudo um pouco; passei muitas noites a vigiar as sedes do partido, quando as ameaças de bomba ainda eram para levar a sério, colei muitos cartazes e vendi centenas de entradas para a Festa do Avante. Gastei parte das minhas férias em campanhas eleitorais e até escrevi artigos para jornal oficioso “O Diário”.
Por vezes interrogo-me acerca do efeito que teve sobre a minha evolução política a coexistência da militância no PCP com a minha actividade profissional como consultor num sector tecnológico de ponta. Aconteceu-me, com frequência, reunir com a administração de uma grande empresa industrial durante o dia e partir para uma colagem de cartazes do PCP, contra a exploração, à noite. Ou então chegar de um curso avançado de gestão em Bruxelas e engrenar, de martelo em punho, nas construções da festa do Avante. Há nisto, sem dúvida, algo de esquizofrénico.

Conheci a classe operária de um ponto de vista profissional pois era especialista em aplicações informáticas para a indústria. Isso obrigou-me a estudar in loco o modo de funcionamento de inúmeras fábricas e a contactar não com a classe operária do mito mas com aquela que realmente produz, nas fábricas concretas dos verdadeiros capitalistas.
Parece-me inquestionável que fiquei marcado pela actividade política e sindical num microcosmo empresarial, a minha empresa, onde apenas uma pequeníssima minoria perfilhava as minhas ideias e onde o salário médio era várias vezes múltiplo do salário médio nacional. Liderar reivindicações em tal contexto ensina a evitar o primarismo das mensagens, a nunca desrespeitar o sentimento colectivo sob pena de destituição e a concluir que se pode sempre reivindicar mesmo quando não se está, do ponto de vista económico, no “grau zero” da sociedade.

Tratando-se de uma empresa de tecnologia também se aprendia a importância do desenvolvimento tecnológico para a economia e para a sociedade. Mas acontecia, à medida que os anos iam passando, que havia um fosso cada vez maior entre as experiências profissionais e sindicais, na empresa, e o estilo de trabalho de um “colectivo” tão peculiar como era o PCP. Coisas tão comezinhas como a projecção de transparências para suporte do discurso ou o pagamento das quotas por transferência bancária, por exemplo, eram impensáveis no partido nessa época.
Os funcionários destacados para controlar a nossa célula tinham cada vez menos capacidade, ou paciência, para lidar com as nossas questões que para eles, sem dúvida, soavam a “chinesices de quem ganhava um balúrdio”. Era frequente convidarem “camaradas mais responsáveis” para virem, com a sua aura, pôr um pouco de água nossa fervura. A partir de certa altura tive a sensação de sermos polidamente tolerados.

A profissão obrigava-nos a múltiplas viagens pela Europa. No plano sindical da empresa, através da “IWIS - IBM Workers International Solidarity”, acabei por contactar com modos mais espontâneos de funcionar como nos sindicatos dos EUA, da Coreia, e do Japão ou mais calculistas, como no caso dos alemães dos franceses ou dos italianos, por exemplo. As reuniões da IWIS em Paris (1989) e Estugarda (1992) ajudaram-me a relativizar os “tabus” que ainda nos condicionavam localmente.
Também fui tomando contacto cada vez mais imediato com os “países de leste”.
A minha estreia ocorrera em 1979 na Hungria e depois em 1980, quando as nuvens ainda não toldavam o horizonte, em Moscovo, no Cazaquistão e na Sibéria.
Meses depois da ascensão de Gorbatchev, em 1985, percorri de automóvel durante um mês, e em campismo com os meus filhos, a RDA, a Checoslováquia e a Hungria.
No ano seguinte, 1986, aproveitando uma viagem profissional a Berlim, usei a estação de metro em Friedrichstrasse como porta de passagem para Berlim Leste e, em 1987, fiz parte de uma delegação sindical numa visita de estudo do desenvolvimento informático da Bulgária.
Finalmente, mas não menos importante, visitei a parte ocidental da URSS (Leninegrado, Kiev e Moscovo) no Verão de 1988, em plena abertura política lançada por Gorbatchev e com as ruas cheias de discussões e manifestações.



Este conjunto de viagens permitiria, só por si, um longo texto que não cabe neste concreto discorrer.
Em síntese pode dizer-se que fui interiorizando uma compreensão cada vez mais vivida das limitações e desafios que se punham ao “socialismo real”, sem nunca isso ter chegado a por em causa as minhas convicções mais profundas. O impacto das viagens ao leste europeu deu-se a um outro nível que espero vir a esclarecer mais à frente.


Assim nos aproximámos paulatinamente do fim dos anos oitenta e constatámos que as nossas esperanças na abertura da URSS, e num novo curso que relançasse os nossos ideais nesse imenso país, se iam transformando em desilusões, desmembramento e caos. Por cá Cavaco reinava, numa aparência de impunidade, contra todos os vaticínios do PCP.

É altura de voltarmos à questão da perda de confiança nos dirigentes.

Os Congressos do PCP, em 1988 no Porto e em 1990 em Loures, revelaram uma enorme incapacidade para explicar a evolução da URSS, por um lado, e para dar resposta aos avanços da economia liberal, por outro. Eu creio mesmo que uma e outra coisa se confundem e são as duas faces da mesma moeda.

Como delegado ao XII Congresso, no Porto, eu estava ainda numa atitude expectante mas no XIII Congresso, já depois da queda do muro, vi-me forçado a reagir. Foi uma decisão meramente individual, obedecendo a um imperativo de consciência, sem cobertura mediática e sem a procurar (para minha surpresa o Público de 19 de Maio acabou por fazer uma descrição bastante fidedigna da minha intervenção no XIII Congresso).

Em Agosto de 1989, poucos meses depois do XII Congresso do PCP mas antes da queda do muro de Berlim, apresentei em S. Francisco, ao 11º Congresso Mundial da IFIP (International Federation for Information Processing), uma comunicação que revelava, em embrião, as teses que tenho vindo a desenvolver até hoje. Sucintamente: a transformação tecnológica actual está a tornar obsoleta a relação social de assalariamento e, por tabela, a forçar o capitalismo a uma transição que resultará num novo modo de produção. A experiência do “socialismo real” foi prematura pois não havia ainda, quando ocorreu, a base técnica onde escorar um novo sistema de relações de produção.
Esta tomada de posição feita em inglês e a milhares de quilómetros de Lisboa ficou no conhecimento de um círculo restrito de amigos.

No princípio de 1990, já em plena preparação do XIII Congresso, elaborei um texto intitulado “Do Socialismo Prematuro para o Socialismo do Futuro” que desenvolvia as ideias apresentadas em S. Francisco. A minha principal preocupação era conceber um conjunto de argumentos e raciocínios que permitissem a qualquer militante lidar racionalmente com o descalabro do sistema político do leste europeu. Essa preocupação resultava de me sentir politicamente responsável por tantos militantes que recrutara, ou dirigira, no decurso da minha actividade política.

O texto referido foi discutido na célula de empresa mas não foi encontrada uma fórmula para o usar no quadro dos “contributos” para as Teses do Congresso, tal era a distância que o separava do texto “oficial” proposto. Basta dizer que, nas Teses que vieram a ser aprovadas em Congresso, ainda se admitia a inversão da derrocada do "socialismo real" como, por exemplo, neste excerto:
“A situação é ainda instável e em alguns aspectos indefinida. Os povos destes países dentro em breve avaliarão melhor o que o socialismo lhes deu. O processo pode ainda trazer surpresas. O desmatelamento das realidades objectivas do sistema socialista e a sua substituição por relações capitalistas não serão um processo fácil. A vida já mostrou que não é fácil a passagem do capitalismo para o socialismo. Esperamos que demonstrará que a inversa também é verdadeira. Ainda mais porque contraria o sentido da história.”

É então que acontece um episódio curioso. Fernanda Barroso, então nossa "controleira" e companheira de Álvaro Cunhal, ofereceu-se para mostrar informalmente “ao Camarada” o incómodo texto que eu escrevera. Algumas semanas mais tarde trouxe de volta um papel manuscrito em que alguém tinha escrito qualquer coisa do tipo “revela um grande trabalho de reflexão”. E assim ficámos.
Do Socialismo Prematuro para o Socialismo do Futuro” acabaria por ser publicado na revista Vértice em Julho de 1990.

Quando se realizaram as reuniões de militantes preparatórias do XIII Congresso, que teve lugar em Maio de 1990, eu fui indigitado como delegado. Antes que se procedesse à eleição comuniquei às dezenas de militantes presentes quais eram as minhas opiniões e deixei claro que, se me elegessem, eu faria uma intervenção no Congresso na linha do que antes explicara. Apesar destes avisos fui eleito delegado. Ao contrário de tantos outros não posso portanto queixar-me de ter sido impedido de expressar a minha opinião em pleno Congresso. Poder-se-á talvez argumentar que, não sendo figura mediática, ninguém receou as consequências de tal liberalidade.

Assim, quando me dirigi à tribuna do Pavilhão Multiusos de Loures para falar ao Congresso eu não o fazia por inerência, ou aproveitando um qualquer subterfúgio formal. O meu discurso tinha sido aprovado, ou pelo menos aceite como pertinente, por dezenas de militantes em assembleia convocada para o efeito.
O ruído de fundo, que as intervenções convencionais sempre propiciam, foi desaparecendo à medida que eu ia falando até se transformar em absoluto silêncio à medida que os delegados se apercebiam de que eu estava a dizer coisas que claramente escapavam às “normas” tácitas.
Comecei assim:
“O objectivo desta intervenção é transmitir-vos o meu contributo para a questão mais candente que nós,comunistas, temos de enfrentar: como tomar o socialismo, de novo, uma perspectiva capaz de entusiasmar os povos. (Porque nós não somos daqueles que acreditam que o capitalismo seja eterno).
Tal implica, antes de mais, fornecer uma explicação para o que se tem estado a passar no Leste; tal explicação tem que ser rigorosa e credível, tem que conter pistas para o caminho que trilharemos no futuro; tal explicação, sendo produzida por nós, tem de basear-se no marxismo.
Tal explicação não a consegui encontrar nas Teses propostas pelo Comité Central. Tentarei explicar porquê. Em primeiro lugar penso que as Teses do CC deixam perpassar uma esperança, compreensível mas infundada, de que possa vir a ser estancado o decalabro no Leste. Pelo caminho que as coisas tomaram parece-me mais prudente partir do princípio de que haverá um retorno generalizado a formas de organização social e económica de tipo capitalista.”



E depois, entre outras coisas disse:
“Sustento que nos países de Leste nunca se implantou o socialismo, que não se implantou um novo modo de produção. Assim como o capitalismo não se construiu sobre a base material do feudalismo, também o socialismo não se podia edificar, e não se edificou, sobre a base material do capitalismo, a grande indústria mecanizada.”...
...“O socialismo chegará, estou seguro, tanto pela luta dos explorados como pelo desenvolvimento da tecnologia. Não posso concordar com um lugar-comum também incluído nas Teses do CC, que considera estar a ser «artificialmente» adiado o fim do capitalismo em consequência da revolução científica e técnica. Os sistemas sociais caducos dão-se mal com revoluções, mesmo tecnológicas; ou então não estariam tão caducos como estão.”


Quando eu acabei houve uma hesitação de silêncio e depois uma parte dos delegados aplaudiu. O que é mais espantoso é que nenhum dos oradores que me sucederam fez qualquer referência às “enormidades” por mim proferidas.
Mais do que a discordância relativamente às minhas opiniões, que ninguém expressou, considerei significativo o manto de silêncio que sobre elas foi lançado. Mais do que o desprezo pelas minhas opiniões o que me impressionou foi o menosprezo das questões incontornáveis que eu levantava. Foi muito duro para mim compreender que ninguém se preocupava com a angústia dos milhares de militantes que nesse momento viam o edifício das suas convicções abalado até aos alicerces.



Para ser justo devo acrescentar que esta atitude de fuga à responsabilidade se repetiu quando tentei sensibilizar os dissidentes do PCP, ao longo das diversas vagas que se sucederam e que eu fui acompanhando como a “Terceira Via”, o lançamento do INES em 1990, ou a reunião do Hotel Roma em 1991. O mesmo veio a suceder com a Renovação Comunista já no século XXI.
Apesar de as iniciativas dissidentes terem sido para mim uma fonte de esperança acabei por sentir que havia um certo “fulanismo”, como se a exibição dos cargos na academia ou nas autarquias e do currículo intelectual garantissem, sem mais, o sucesso do empreendimento. Ninguém se dispôs a assumir a responsabilidade de encontrar respostas para as questões que eu colocara. Até hoje.

No princípio dos anos noventa decidi auto-suspender a minha actividade partidária. Não me demiti nem fui, que eu saiba, expulso do PCP. Simplesmente deixei de militar. Nunca encarei a hipótese de aderir a qualquer outro partido.
Em 2003 publiquei o livro “Do Capitalismo para o Digitalismo” para dizer que a queda do “socialismo real” não tornou o capitalismo insuperável. É esse o pântano ideológico em que a esquerda se tem atolado nos últimos anos.

Não se trata de inventar, à pressa, novos “amanhãs que cantam”. Os amanhãs cantarão inevitavelmente façamos nós o que fizermos; trata-se de saber se ainda queremos participar na escolha da melodia e do poema.

No próximo capítulo vou tentar explicar por que é essencial ter sempre uma utopia pós-capitalista no horizonte e também por que é que isso só será possível quando fizermos o “luto racional” da experiência soviética.

segunda-feira, setembro 03, 2007

Dez que não adiantaram nem atrasaram

desenho da autoria de Ziraldo







Correspondendo ao convite da Joana Lopes, aqui vai uma lista de dez livros que não adiantaram nem atrasaram a minha vida, ou que foram mesmo grandes flops.

Por razões práticas restrinjo a lista ao domínio das minhas preocupações "tecnologias/transição".





- Jonathan Wolff, Porquê ler Marx hoje ?, (2002), Livros Cotovia, (comida requentada apresentada como acabada de fazer)
- Marta Harnecker, Tornar possível o impossível, (2000), Campo das Letras, (muita parra e pouca uva)
- Bob Seidensticker, Choque do Futuro, (2006), Centro Atlântico
- Boaventura Sousa Santos, Conhecimento Prudente para uma Vida Decente, (2003), Edições Afrontamento
- Anselm Jappe, As Aventuras da Mercadoria, (2006), Antígona
- McLuhan, Understanding Media, (1964), Routledge
- Pierre-Michel Menger, Retrato do Artista enquanto trabalhador, (2005), Roma Editora, (passa ao lado do essencial)
- Thomas L. Friedman, O Mundo é Plano, (2005), Editora Actual, (o costumeiro aproveitamento, muito americano, de uma ideia/título apelativo)
- Michael Hardt, Antonio Negri, IMPÉRIO, (2000), Livros do Brasil
- Francisco Jaime Quesado, O Novo Capital, (2007), RÉSXXI, (um caso sério de irresponsablidade)


Indico mais cinco, diversificados, para alargar a roda: Inês Ramos, Miguel Poiares Maduro, António Vilarigues, Geraldes Lino e Mário Redondo