quinta-feira, outubro 02, 2008

A crise explicada às crianças

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Quase toda a gente fala da crise de Wall Street como se se tratasse apenas de um acesso de ganância concretizado através de malabarismos à beira da vigarice.
Se assim fosse estaríamos nós bem. Castigava-se os tarados e repunha-se a ordem dos mercados.

O problema é que , por trás dos exageros na concessão do crédito, existe uma crise económica profunda. Não há um equilíbrio sustentável entre a procura, essa sim em crise, e a oferta que cresce exponencialmente.

O trabalho é cada vez menos incorporado durante a produção, que se automatiza constantemente, e torna-se cada vez mais um componente não-repetitivo que se esgota antes (concepção, planeamento...) ou depois (marketing, distribuição..) do acto produtivo.

Nos tempos de Marx os operários eram explorados porque quando chegavam às quatro da tarde já tinham produzido o equivalente ao seu salário e, apesar disso, continuavam a laborar até às sete. Hoje, os "trabalhadores do conhecimento" recebem o ordenado do mês em troca de "software" ou "ideias" ou "imagens" que ficam a facturar para os seu patrões durante anos, mesmo até depois de eles terem sido despedidos da empresa que ficou com as suas criações.

Esta diferença levou à emergência de uma sociedade que tem muita dificuldade em encontrar compradores para as quantidades brutais de mercadorias, físicas e virtuais, que disputam entre si os salários dos trabalhadores.

É por esta razão que o sistema gera constantemente novas formas de ampliar a capacidade de aquisição, a procura, através de esquemas cada vez mais delirantes de concessão de crédito.

Em vez de pagar a quem trabalha, a quem cria valor, de acordo com o que rendeu o que se faz é tentar convencer os cidadãos a gastar já hoje aquilo que se supõe que vão ganhar no futuro.

Enquanto esta contradição não for superada continuaremos a ter "crises financeiras" que não são mais do que sintomas epidérmicos da doença.

Quando esta contradição for superada já não estaremos provavelmente a viver em capitalismo.
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2 comentários:

antónio m p disse...

Este artigo parece-me ser um excelente ponto de partida para analisar a diferença entre os actuais mecanismos de formação da mais-valia, e aqueles que vigoravam no final do séc. XIX.

As relações de trabalho, a formação dos preços e dos salários vêm por arrasto, naturalmente.

Pede-se mais, que continue, porque já se viu que em Economia, como em tantas coisas, o que é preciso é que nos expliquem as ideias como se fossemos crianças. Ok, falo por mim.

F. Penim Redondo disse...

caro antónio m p,

na sequência do seu comentário adianto um resumo da minha opinião no que toca à formação da mais-valia (se estiver interessado pode ver o desenvolvimento destas ideias no bloguelivro
http://digital-ismo.blogspot.com/)

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A escolha de Marx ao referir a mais-valia a um período de tempo determinado, o dia, teve certamente a ver não só com o tipo de produção na sua época mas também com as práticas contabilísticas e os meios disponíveis para as realizar.

A prática hoje corrente da contabilidade por produto, em paralelo com a contabilidade por períodos de tempo, permite conclusões sobre o custeio e a rentabilidade de cada produto que não estariam certamente disponíveis no tempo de Marx.

A primeira grande consequência nefasta desta escolha foi perder-se a visão de conjunto sobre a vida económica útil do produto e o escamotear da análise da mais-valia do conjunto de actividades que ocorrem a montante e a jusante da produção propriamente dita. Baseado numa produção mecânica ainda muito simples, Marx passa ao lado do carácter multifacetado e distribuído da produção actual, em que a mercadoria final é o resultado de múltiplas fases, em locais por vezes muito distantes, em que os contributos de cada interveniente são fulcrais para o valor gerado pelos outros.

Mas o aspecto fulcral deste anacronismo reside na incapacidade para incluir na mais-valia as consequências futuras do trabalho aplicado nas mercadorias durante um determinado período de tempo.
No tempo de Marx, um tecelão tecia num dia X metros de tecido e pronto; X metros de tecido eram sempre X metros de tecido. Como já vimos, hoje um trabalhador produz algo, por exemplo um programa de computador, e nem ele nem o seu patrão sabem à partida quantas unidades acabarão por ser produzidas e vendidas de tal produto.

Como já explicámos será a aceitação pelo mercado que acabará por determinar se são feitas 500 ou 10.000 cópias a partir do produto obtido de “um dia de trabalho” do programador.
Assim, o valor do que foi produzido não é passível de ser determinado no fim da jornada de trabalho; e se se aplicar a formulação de Marx quanto à mais-valia, pode chegar-se a valores muito abaixo daqueles que verdadeiramente ocorrem.
Dificilmente um trabalhador considerará válido o cálculo da mais-valia com base no valor correspondente a um dia do seu trabalho quando a mercadoria produzida proporcionou enormes lucros, ao longo de anos consecutivos, ao seu patrão.