.
Inspirado pelo filme "Adeus Lenine", João Cardoso Rosas escreveu no Diário Económico um artigo intitulado "Adeus Socialismo" que conclui desta maneira:
"Mais cedo ou mais tarde, os socialistas terão de reconhecer, em nome da honestidade intelectual, que o projecto de uma sociedade socialista caducou. No tempo que passa, o ataque às liberdades económicas e ao mercado e a defesa da socialização dos meios de produção – e o que é o socialismo, senão isso? – apenas conduziriam ao isolamento, ao empobrecimento e à entropia social. Por isso seria bastante melhor para todos, incluindo para os próprios, que os socialistas permitissem que a sua matriz ideológica se confrontasse com a realidade, sem terceiras vias nem outros subterfúgios. Essa confrontação deixaria claro que, ao contrário do que dizem alguns dos seus adversários, não é verdade que os socialistas tenham traído a sua causa. A causa é que acabou. Ou seja, ela deixou de fazer sentido face à evolução do mundo."
Vital Moreira, em respostas no Causa Nossa e no Público de hoje, discorda nestes termos:
"Segundo, apesar desse abandono da "economia socialista", não é ilegítimo que os partidos socialistas conservem a antiga denominação, dado que continuam a lutar pelas suas principais bandeiras na esfera social, designadamente direitos sociais, inclusão social, coesão social, Estado social, enfim, justiça social. Em suma, os partidos socialistas há muito disseram adeus ao "socialismo económico", mas os ideiais socialistas nunca se limitaram a isso. Por isso, dizer "adeus ao socialismo", como quer JCR, é por um lado redundante e por outro lado indevido."
Apetece-me responder aos dois de uma só vez.
Concordo que a situação é de esquizofrenia, no sentido em que se fala muito em socialismo sem se saber o que tal possa hoje significar, mas não está demonstrado que tenha necessariamente que ser assim.
Quanto a mim "sociedade de mercado", aquela que para existir depende das trocas económicas entre os seus membros, é onde vivemos há milhares de anos e onde vamos provavelmente continuar a viver. Coisa distinta é a "sociedade capitalista", ou seja aquela em que a relação de produção predominante é o assalariamento, o trabalho medido por tempo e retribuído com salário. Esta só existe há umas centenas de anos e, pela ordem natural das coisas, terá certamente um fim. Os dois autores em análise parecem argumentar como se ambas fossem não só a mesma coisa mas também realidades eternas. Vital e Rosas confundem mercado com capitalismo para poderem vender a perenidade do segundo com base na necessidade óbvia do primeiro.
Onde Cardoso Rosas e Vital Moreira divergem é na definição de Socialismo: para o primeiro ele pode resumir-se à "socialização dos meios de produção" enquanto que para o segundo basta manter de pé umas quantas "bandeiras na esfera social" para ter direito ao franchising.
Aquilo que virá depois da "sociedade capitalista", na acepção indicada mais acima, podemos chamar-lhe várias coisas. Se calhar, em homenagem aos percursores, vamos chamar-lhe socialismo. Porém essa sociedade pouco terá a ver com as experiências prematuras ocorridas na URSS e seus anexos em que, por manifesta incipiência tecnológica e científica, era impossível aceder a um novo patamar na organização social da produção. Será certamente uma "sociedade de mercado", no sentido que lhe dei mais acima, mas não será uma sociedade baseada no assalariamento mesmo que "adocicado" com umas quantas "bandeiras na esfera social".
Seja como fôr a ideia socialista esteve sempre ligada à criação de uma sociedade de novo tipo, com relações económicas que se desenrolam em bases qualitativamente novas e mais justas. A "socialização dos meios de produção" é uma expressão ambígua onde cabe quase tudo. As tecnologias actuais, só por si, parecem estar a produzir esse tipo de resultado.
O que os socialistas, ou que se reclamam como tal, deviam era tentar perceber como o "novo trabalho", criativo, descontínuo e de duração irrelevante, está a tornar o assalariamento inviável pois esse é o processo que, paulatinamente, obrigará a sociedade a inventar o pós-capitalismo, seja ele qual for.
4 comentários:
Caro Fernando
Apesar de puxares a rasa à tua sardinha, ou seja ao digitalismo – há um trabalho de um pensador dos Balcãs no El Pais que fala disso (ver post de Rui Bebiano) – o teu texto já tem pernas para andar e no essencial até posso estar de acordo.
Abraços
Eu sei que os "santos de casa" nunca fazem milagres mas talvez devesses tentar perceber se este teu amigo, por hipotese, anda a pensar nestas coisas há muito mais tempo do que o "pensador" dos Balcãs.
Claro que também podes estar convencido que nos Balcãs, por causa da atmosfera local, se raciocina muito melhor do que em Portugal.
Isso não será provincianismo ?
Estás sempre com o pé atrás. Queria ser simpático contigo, não só dizendo bem do post, como dando-te mais informações sobre as tuas preocupações. E a resposta é esta. Paciência.
O Senhor referido é um filósofo bem conhecido chamado Slavoj Zizek, que por acaso acho que ensina numa Universidade americana e é originário da antiga Jugoslávia. O artigo em questão chama-se “Maio de 68 visto pelos olhos de hoje” e a parte que eu destacaria, que me parece ter interesse para ti é a seguinte: “Como dicen Luc Boltanski y Eve Chiapello en The New Spirit of Capitalism, a partir de 1970 apareció gradualmente una nueva forma de capitalismo, que abandonó la estructura jerárquica del proceso de producción al estilo de Ford y desarrolló una organización en red, basada en la iniciativa de los empleados y la autonomía en el lugar de trabajo. En vez de una cadena de mando centralizada y jerárquica, tenemos redes con una multitud de participantes que organizan el trabajo en equipos o proyectos, buscan la satisfacción del cliente y el bienestar público, se preocupan por la ecología, etcétera. Es decir, el capitalismo usurpó la retórica izquierdista de la autogestión de los trabajadores, hizo que dejara de ser un lema anticapitalista para convertirse en capitalista. El socialismo, empezó a decirse, no valía porque era conservador, jerárquico, administrativo, y la verdadera revolución era la del capitalismo digital.”. Em espanhol e tudo
Não sei se percebeste que o tom era jocoso e não zangado.
Estou um bocado farto de ver tipos dizerem coisas de certa forma banais, que eu já disse muito antes, e que são saudados como inovadores só porque são estrangeiros (dos Balcãs ou de outro lado qualquer).
Eu comecei a falar disto em 1990 quando muitos destes tipos nem sabiam o que era um computador.
De qualquer forma agradeço as tuas indicações que vou investigar.
Enviar um comentário