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Os Jogos de Pequim terminaram e, apesar dos maus augúrios, não houve nenhuma hecatombe a não ser a do bom-senso de uma certa blogoesfera e de certos jornalistas.
Comparou-se os Jogos de Pequim aos de Berlim, com Hitler em fundo, e publicou-se imagens propagandisticas contra a China tão desadequadas e tão violentas que a própria Amnistia Internacional teve que as desautorizar.
Nem a óbvia evolução positiva que qualquer pessoa detecta na complexa sociedade chinesa nem o facto de a generalidade dos chineses se mostrarem orgulhosos com a realização dos Jogos conseguiu demover os novos cruzados de os tentar salvar da opressão mesmo utilizando os pretextos mais– literalmente- infantis.
Sou levado a interrogar-me sobre as razões por que um número considerável de pessoas, que noutras circunstâncias procedem com equilibrio e racionalidade, consideram a realidade chinesa tão insuportável que rejeitam ou apoucam aquilo que se mete pelos olhos dentro, que os JO foram uma realização notável.
Sem subestimar a questão dos “direitos humanos” na China parece-me que concentrar as atenções nisso, quando a nova realidade social e económica da China é tão anormal e tem consequências potenciais tão grandes a nível planetário, não pode deixar de me soar a escapismo. Foi por este caminho, por pensar que deve haver uma explicação para este absurdo, que cheguei aos “sacrilégios” cometidos pela China.
Como se sabe a morte de Mao em 1976 abriu caminho, sob a influência de Deng Xiaoping, a uma série de transformações gigantescas cujos resultados estão hoje patentes ao mundo:
1. O Partido Comunista da China abandonou uma das mais marcantes bandeiras da esquerda, a comparação entre pobres e ricos e a rejeição das desigualdades económicas como um mal em si mesmo, com o qual não é possível conviver pacificamente. O PCC assumiu sem rebuço que não se importava com o enriquecimento de alguns desde que muitos melhorassem a sua condição económica e qualidade de vida.
Resolveu tornar a China um verdadeiro e apetecível mercado, começando com o engodo de vender mão-de-obra barata quer embutida em produtos exportáveis quer através da exploração no próprio país por empresários estrangeiros.
À medida que milhões e milhões de chineses iam acedendo a salários, ainda que muito baixos, o apetite das empresas estrangeiras por esse novo mercado foi crescendo e levando à implantação de mais e mais produção no país que se converteu na “fábrica do mundo”.
Qualquer pessoa percebe hoje, e pode constatar por notícias constantes, que esse mecanismo a partir de certo ponto se autoalimenta e está em vias de criar uma “classe consumidora” que não tem paralelo no mundo.
2. É absolutamente extraordinário que o PCC, um partido tão marcado pela sua ideologia e pela sua história revolucionária, tenha conseguido esta proeza do pragmatismo. Podemos tentar imaginar as discussões no círculo íntimo de Deng Xiaoping acerca das experiências anteriores do regime que sempre se tinham mostrado incapazes de tirar o povo chinês da extrema penúria.
Um dia esses dirigentes do PCC concluiram, com uma coragem notável, que não sabiam como liderar mais de mil milhões de pessoas no caminho do progresso, usando o quadro ideológico que sempre os norteara. Este momento dramático é insuportável para a esquerda porque representa o reconhecimento da sua incapacidade, ainda não ultrapassada, de conceber um novo modo de produção praticável.
É ainda mais dramático pelo facto de a China ter sido, provavelmente, o cenário onde uma “nova economia” teria mais “condições subjectivas” para se realizar: um país imenso, com centenas de milhões que não tinham nada para perder, com hábitos de disciplina e frugalidade, com tradições de poder central forte, com fraca probabilidade de interferências ideológicas externas dadas as diferenças culturais e de idioma, etc, etc.
3. A China, irritantemente, não se projecta no mundo através de qualquer proselitismo ou, sequer, da força militar. Ao propagar o seu poder meramente no plano económico e dos negócios neutraliza qualquer abordagem contestatária no plano tradicional da ideologia.
A política internacional chinesa parece obedecer ao mesmo infatigável pragmatismo declarando-se incompetente para classificar os comportamentos dos seus parceiros comerciais quaisquer que eles sejam.
Há por isso uma enorme confusão acerca do carácter de esquerda ou de direita do regime chinês o que é sobremaneira desconfortável para a esquerda que cultiva melhor do que ninguém esse tipo de clivagens.
4. Aquilo que os dirigentes chineses propõem ao seu povo não é uma qualquer forma de privação actual em nome de um futuro radioso como acontecia nas experiências históricas do “socialismo real”. Pelo contrário, o PCC obtem o seu crescente apoio popular demostrando que está a tentar viabilizar, agora, padrões de consumo e de qualidade de vida elevados para o maior número possível de chineses. Os apelos de sereia que as televisões da Alemanha, com os seus BMW, exerciam sobre os cidadãos da RDA e os seus Trabant não funcionam na China.
É como se os chineses tivessem feito da maior arma dos seus adversários a sua principal alavanca para o progresso e a sustentação do regime.
__________________________
Tudo isto é bastante perturbante e de resultados imprevisíveis mas é a esta luz que a questão das liberdades políticas na China tem que ser analisada. Se o exercício político tem por objectivo supremo alcançar um “bom governo”, que leve à prática o “interesse público”, talvez muitos chineses, pela experiência vivida, pensem que esse objectivo já foi alcançado.
Claro que a nós, ocidentais, nos sensibiliza também o lado do respeito pelo indivíduo mas ainda estou para saber se os chineses têm um conceito de indivíduo similar ao nosso.
Em democracia as eleições parecem-se cada vez mais com os mercados e, inversamente, as escolhas do consumo perante a variedade dos produtos nos mercados parecem-se cada vez mais com as votações políticas.
Para já a centenas de milhões de chineses está a ser dada, pelo Partido Comunista, a liberdade de escolha das mercadorias que as suas necessidades, ou fantasias, lhes pedem.
Pode parecer pouca liberdade a quem sempre a teve mas aos chineses, que nunca a tiveram, pode bastar-lhes ainda durante algum tempo.
Depois veremos...
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Os Jogos de Pequim terminaram e, apesar dos maus augúrios, não houve nenhuma hecatombe a não ser a do bom-senso de uma certa blogoesfera e de certos jornalistas.
Comparou-se os Jogos de Pequim aos de Berlim, com Hitler em fundo, e publicou-se imagens propagandisticas contra a China tão desadequadas e tão violentas que a própria Amnistia Internacional teve que as desautorizar.
Nem a óbvia evolução positiva que qualquer pessoa detecta na complexa sociedade chinesa nem o facto de a generalidade dos chineses se mostrarem orgulhosos com a realização dos Jogos conseguiu demover os novos cruzados de os tentar salvar da opressão mesmo utilizando os pretextos mais– literalmente- infantis.
Sou levado a interrogar-me sobre as razões por que um número considerável de pessoas, que noutras circunstâncias procedem com equilibrio e racionalidade, consideram a realidade chinesa tão insuportável que rejeitam ou apoucam aquilo que se mete pelos olhos dentro, que os JO foram uma realização notável.
Sem subestimar a questão dos “direitos humanos” na China parece-me que concentrar as atenções nisso, quando a nova realidade social e económica da China é tão anormal e tem consequências potenciais tão grandes a nível planetário, não pode deixar de me soar a escapismo. Foi por este caminho, por pensar que deve haver uma explicação para este absurdo, que cheguei aos “sacrilégios” cometidos pela China.
Como se sabe a morte de Mao em 1976 abriu caminho, sob a influência de Deng Xiaoping, a uma série de transformações gigantescas cujos resultados estão hoje patentes ao mundo:
1. O Partido Comunista da China abandonou uma das mais marcantes bandeiras da esquerda, a comparação entre pobres e ricos e a rejeição das desigualdades económicas como um mal em si mesmo, com o qual não é possível conviver pacificamente. O PCC assumiu sem rebuço que não se importava com o enriquecimento de alguns desde que muitos melhorassem a sua condição económica e qualidade de vida.
Resolveu tornar a China um verdadeiro e apetecível mercado, começando com o engodo de vender mão-de-obra barata quer embutida em produtos exportáveis quer através da exploração no próprio país por empresários estrangeiros.
À medida que milhões e milhões de chineses iam acedendo a salários, ainda que muito baixos, o apetite das empresas estrangeiras por esse novo mercado foi crescendo e levando à implantação de mais e mais produção no país que se converteu na “fábrica do mundo”.
Qualquer pessoa percebe hoje, e pode constatar por notícias constantes, que esse mecanismo a partir de certo ponto se autoalimenta e está em vias de criar uma “classe consumidora” que não tem paralelo no mundo.
2. É absolutamente extraordinário que o PCC, um partido tão marcado pela sua ideologia e pela sua história revolucionária, tenha conseguido esta proeza do pragmatismo. Podemos tentar imaginar as discussões no círculo íntimo de Deng Xiaoping acerca das experiências anteriores do regime que sempre se tinham mostrado incapazes de tirar o povo chinês da extrema penúria.
Um dia esses dirigentes do PCC concluiram, com uma coragem notável, que não sabiam como liderar mais de mil milhões de pessoas no caminho do progresso, usando o quadro ideológico que sempre os norteara. Este momento dramático é insuportável para a esquerda porque representa o reconhecimento da sua incapacidade, ainda não ultrapassada, de conceber um novo modo de produção praticável.
É ainda mais dramático pelo facto de a China ter sido, provavelmente, o cenário onde uma “nova economia” teria mais “condições subjectivas” para se realizar: um país imenso, com centenas de milhões que não tinham nada para perder, com hábitos de disciplina e frugalidade, com tradições de poder central forte, com fraca probabilidade de interferências ideológicas externas dadas as diferenças culturais e de idioma, etc, etc.
3. A China, irritantemente, não se projecta no mundo através de qualquer proselitismo ou, sequer, da força militar. Ao propagar o seu poder meramente no plano económico e dos negócios neutraliza qualquer abordagem contestatária no plano tradicional da ideologia.
A política internacional chinesa parece obedecer ao mesmo infatigável pragmatismo declarando-se incompetente para classificar os comportamentos dos seus parceiros comerciais quaisquer que eles sejam.
Há por isso uma enorme confusão acerca do carácter de esquerda ou de direita do regime chinês o que é sobremaneira desconfortável para a esquerda que cultiva melhor do que ninguém esse tipo de clivagens.
4. Aquilo que os dirigentes chineses propõem ao seu povo não é uma qualquer forma de privação actual em nome de um futuro radioso como acontecia nas experiências históricas do “socialismo real”. Pelo contrário, o PCC obtem o seu crescente apoio popular demostrando que está a tentar viabilizar, agora, padrões de consumo e de qualidade de vida elevados para o maior número possível de chineses. Os apelos de sereia que as televisões da Alemanha, com os seus BMW, exerciam sobre os cidadãos da RDA e os seus Trabant não funcionam na China.
É como se os chineses tivessem feito da maior arma dos seus adversários a sua principal alavanca para o progresso e a sustentação do regime.
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Tudo isto é bastante perturbante e de resultados imprevisíveis mas é a esta luz que a questão das liberdades políticas na China tem que ser analisada. Se o exercício político tem por objectivo supremo alcançar um “bom governo”, que leve à prática o “interesse público”, talvez muitos chineses, pela experiência vivida, pensem que esse objectivo já foi alcançado.
Claro que a nós, ocidentais, nos sensibiliza também o lado do respeito pelo indivíduo mas ainda estou para saber se os chineses têm um conceito de indivíduo similar ao nosso.
Em democracia as eleições parecem-se cada vez mais com os mercados e, inversamente, as escolhas do consumo perante a variedade dos produtos nos mercados parecem-se cada vez mais com as votações políticas.
Para já a centenas de milhões de chineses está a ser dada, pelo Partido Comunista, a liberdade de escolha das mercadorias que as suas necessidades, ou fantasias, lhes pedem.
Pode parecer pouca liberdade a quem sempre a teve mas aos chineses, que nunca a tiveram, pode bastar-lhes ainda durante algum tempo.
Depois veremos...
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3 comentários:
Ora aqui está uma bela síntese!
Pequim, 26 ago (EFE).- O consumo chinês cresceu 20% nos últimos oito meses e continua acelerando a um ritmo suficiente para manter o crescimento econômico do país acima dos 9,5% para este ano, informa um relatório do Hong Kong Shanghai Banking Corporation (HSBC) publicado hoje.
Segundo o documento "China Economic Spotlight", a despesa em consumo se mantém forte no país asiático apesar do esfriamento econômico, do devastador terremoto de maio no sudoeste do país e do cancelamento das férias no mesmo mês.
Em julho o aumento das vendas no varejo bateu o recorde de uma década ao alcançar 15,4% anualizados até os US$ 100 bilhões (68 bilhões de euros).
O crescimento de junho foi de 14,8%, um dado que supera também a média mensal de 2007, que foi de 12,4%.
A desigualdade entre as zonas rurais, as mais pobres do país, e as urbanas são mantidas também neste indicador, com um aumento de 14% nas primeiras até US$ 41 bilhões, e 17% nas segundas com uma despesa que duplicou às segundas, com US$ 88 bilhões.
O relatório do HSBC atribui a forte despesa em consumo a um aumento dos gastos no setor hoteleiro, que cresceu 26,5% em julho, ao crescimento das vendas no atacado e no varejo, e dos salários chineses.
Entre os produtos que lideram o consumo estão o petróleo, a joalheria, os cosméticos, o setor têxtil e os automóveis.
As vendas de petróleo e derivados subiram de 55,2% em julho, em comparação ao 44,4% em todo o primeiro semestre do ano, o que indica uma forte demanda apesar da crise global e do aumento de preços em junho.
No entanto, o setor imobiliário foi prejudicado pelo consumo, com uma queda de 3,4% em julho, mais acentuada que o decréscimo de 1,8% nas vendas registrado entre janeiro e junho, comparado com o aumento de 41% registrado no primeiro semestre de 2007.
Segundo o HSBC, o aumento de salários beneficiou o do consumo, com um crescimento anual acima de 10% nos últimos três anos que situou em US$ 1.900 a renda per capita anual nas áreas urbanas e em US$ 700 nas zonas rurais.
Entre janeiro e junho, os salários urbanos cresceram 6,3% e os rurais, 10,3%. EFE
O Presidente do Comité Olímpico Internacional sintetizou em duas frases muito do que se poderia dizer destes Jogos Olímpicos. Afirmou Jacques Rogge que «Com estes Jogos, o mundo conheceu melhor a China e a China conheceu melhor o mundo» concluindo que «Estes foram verdadeiramente uns Jogos excepcionais».
De facto Pequim 2008 foi um sucesso. E isso incomoda alguns. No momento de fazer o balanço e de saudar o governo e o povo da China pelo sucesso dos Jogos é importante recordar toda a campanha que pelos mais variados meios se desenvolveu contra este país e contra os Jogos e que agora se transforma numa tentativa de tentar ocultar ao máximo o seu óbvio sucesso. É altura de recordar a ridícula chegada da comitiva dos EUA a Pequim ostentando máscaras para não respirar a «poluição» de Pequim; a desesperada tentativa de desmontar a grandiosidade da cerimónia de abertura com propaganda sobre pormenores no mínimo ridículos quando se fala de uma super-produção daquela envergadura; do anúncio mil vezes repetido de chuva, tempestades e até sismos na cerimónia de abertura; da fabricação de factos e provocações políticas como a manifestação de quatro cidadãos estrangeiros em torno do tema Tibete; da propagação da ideia de «censura» quando simultaneamente todas as televisões do mundo transmitiam manifestações de chineses em torno de problemas como a habitação ou ainda de atentados terroristas que a comunicação social dominante apelidou hipocritamente de «ataques de forças separatistas».
Mas tal campanha, que em Portugal teve eco desde a direita mais trauliteira até à social-democracia envergonhada só teve um resultado. É que hoje pode-se dizer que a China organizou uns jogos exemplares, apesar de toda essa campanha! E hoje há muita gente que olha a China de maneira diferente. Com dúvidas e até inquietações, mas de outra maneira, sem preconceitos.
Avante,28.08.2008
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