quinta-feira, agosto 07, 2008

Leituras de Verão

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"É verdade que o historiador das ideias, quando olha com a sensibilidade contemporânea para os textos funda­mentais das narrativas filosóficas e para as exegeses clássicas do mundo his­toricamente em movimento, tem forçosamente a impressão de se haver com uma massa de exageros rapsódicos. Aquilo que até hoje se chamou filosofia da história eram sem excepção sistemas ilusórios da precipitação. Conduziam sempre a montagens apressadas dos materiais sobre linhas rectas traçadas à força, como se os pensadores estivessem atingidos por uma síndrome de hi-peractividade, que os levava para falsas metas. Felizmente, estão ultrapassa­dos os tempos em que podiam surgir como atraentes as doutrinas cujos adep­tos, por meio de meia dúzia de conceitos simplificados, prometiam dar acesso à casa das máquinas da história mundial — ou até ao andar administrativo da Torre de Babel. A vanitas de todos os precedentes constructos da filosofia da história salta hoje à vista dos leigos; hoje em dia, qualquer caloiro, qual­quer galerista tem uma compreensão suficiente desses artefactos para soltar uma gargalhada ante expressões como espírito do mundo, objectivo da histó­ria, progresso geral.

A satisfação suscitada por estas clarificações não dura muito tempo — pois o discurso corrente sobre o fim das grandes narrativas exorbita dos seus ob­jectivos, visto não se contentar com rechaçar as simplificações inaceitáveis. Não desembocou ele, por sua vez, numa meta-grande-narrativa? Este novo mito intelectual não estará inegavelmente associado a uma acrimoniosa inér­cia que na grande escala vê apenas o importuno e na grandeza apenas a sus­peita da mania? No decurso dos últimos decénios, aos cépticos pós-dialécticos e pós-estruturalistas não sucedeu uma paralisia parcial do pensamento, da qual a especialização na história de pormenores retirados de arquivos obscuros, hostil às ideias, tão em voga nas ciências humanas, mais não representa do que a forma mais suave?

As grandes narrativas que até hoje conhecemos — a cristã, a liberal-pro-gressiva, a hegeliana, a marxista, a fascista — podem muito bem revelar-se como tentativas inadequadas para nos apropriarmos da complexidade do mundo, mas tal conhecimento crítico não deslegitima nem a narração das coi­sas que se passaram nem dispensa o pensamento de buscar uma perspectiva luminosa para esclarecer as singularidades apreensíveis de um todo fugidio. O pensamento, não significará ele, desde sempre, aceitar os reptos que o des­medido objectivamente nos põe diante dos olhos? E este desmedido que nos insta a um relacionamento conceptual, não é ele por si próprio incompatívelcom a natureza tranquilizadora do comedido? A miséria das grandes narrati­vas de feitura tradicional não reside de maneira nenhuma em serem demasia­do grandes, mas, sim, em não serem suficientemente grandes. O significado de «grande» está sujeito, certamente, a controvérsia. Para nós «suficiente­mente grande» quer dizer perto do pólo do desmedido: «... e que seria pensar, se não se medisse incessantemente ao caos?»

Peter Sloterdijk, em Palácio de Cristal, Relógio de Água, 2008
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