domingo, janeiro 04, 2009

O Estatudo


"O que é grave e preocupante, no caso actual, não é a luta em si, mas os problemas em causa. A forma é emocionante, mas o conteúdo é sério e as consequências inquietantes. O Estatuto dos Açores, uma questão menor, foi aproveitado para pretexto de afrontamento. A deslealdade governamental e parlamentar é um facto grave e, nas suas consequências, irreparável. Foi feita, legal e furtivamente, uma espécie de revisão constitucional, como é apanágio dos países ditatoriais. Alteraram-se equilíbrios fundamentais de poderes e competências sem respeitar as formas adequadas. O partido maioritário manipulou o Parlamento. Os partidos parlamentares usaram o Parlamento para funções menos nobres. O exame sucessivo da constitucionalidade é a única maneira possível de evitar que esta ilegitimidade sirva de precedente para o futuro.
A posição do Presidente da República, por definição o garante da unidade nacional e do Estado, deveria ter prevalecido sobre a decisão do Parlamento, por natureza o representante da diversidade do Estado. Neste caso, em que estavam em discussão as relações entre partes do Estado, ou antes, entre o todo e uma das suas partes, ainda mais se justificaria que a posição do Presidente fosse respeitada e que o equilíbrio existente não fosse alterado. O Parlamento e o Governo entenderam sobrepor-se. A normalidade constitucional e a clareza dos processos políticos ficaram a perder.
Os órgãos de poder regional passam a ter uma posição política, processual e protocolar capaz de condicionar os órgãos de poder nacional. Merecem uma deferência e uma consideração (e aqui trata-se de poder político, não de cerimónia) que a Assembleia da República não merece. Adquiriram, a partir de agora, uma força única na República: nenhum órgão nacional, presidente, parlamento ou governo, pode legislar livremente sobre a região dos Açores (imagina-se que a Madeira virá a seguir).
É de lamentar o comportamento do Governo. Não se sabe por que razão Sócrates e o PS quiseram alterar o estatuto naqueles pontos controversos. As razões óbvias parecem evidentes. Por um lado, os socialistas pretendem delimitar os seus territórios pré-eleitorais e acham que lhes convém um confronto com o Presidente. Por outro, nada mais fizeram do que manter a tradição: são reféns das regiões autónomas e dos seus dirigentes, no que, aliás, são acompanhados por todos os restantes partidos. Mas estas razões, por demasiado óbvias e mesquinhas, não chegam para perceber os seus pontos de vista. O primeiro-ministro e o Parlamento devem aos cidadãos uma explicação. Não basta dizer que têm pontos de vista diferentes do Presidente, como afirmam os seus porta-vozes subalternos, têm de explicar os fundamentos da sua decisão e as vantagens de tão tosco estatuto.
Confrangedor, neste processo, foi o Parlamento. E, com ele, evidentemente, os grupos parlamentares e os partidos. Foram incompetentes e fizeram tolices. Foi possível, por exemplo, aprovar uma lei que continha oito disposições inconstitucionais! Mostraram um comportamento contraditório e arrogante: vários partidos diziam uma coisa na televisão e votavam de modo diferente. Foram covardes e cederam à chantagem regionalista. Finalmente, cometeram acto impensável: automutilaram-se, isto é, abdicaram de competências e desistiram de funções de Estado."

António Barreto, Público 04.01.2009


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