O meu amigo Jorge Nascimento Fernandes teve paciência, como é habitual, para escrever no Trix-Nitrix uma extensa apreciação do Congresso Internacional Karl Marx que intitulou "Um marxista perdido num Congresso sobre Marx ". Recomendo a sua leitura.
Com isso motivou-me para dar ao que ele escreveu algumas achegas de ordem pessoal. Aqui vão.
Penso que não foi surpresa para ninguém que "por trás" do Congresso havia uma grande influência do BE e não me parece que isso fosse um problema. É de saudar que o BE tenha tido capacidade e visão para realizar uma iniciativa de indiscutível interesse e que captou as atenções muito para além do seu raio de acção habitual.
Pessoalmente considero a minha participação como uma experiência bastante interessante e estimulante embora em certos momentos, especialmente no primeiro dia, eu tenha duvidado de que tal acontecesse. Porquê ?
1. Algumas sessões decorriam em ambientes inadequados, com as pessoas sentadas pelo chão, que me faziam rejuvenescer até aos meus já longínquos tempos de universidade de meados dos anos 60. Não creio que isso ajude a ser mais marxista embora pareça haver quem tal pensa.
2. Formalmente as comunicações eram quase todas lidas em tom mais ou menos monocórdico, agravado em muitos casos pelo fraco domínio da língua utilizada. Quase não houve recurso à projecção de imagens ou tópicos o que obrigava os participantes a um esforço enorme de atenção.
3. No plano dos conteúdos havia uma larga maioria de comunicações que consistiam em trabalhos académicos, num plano de mera especulação teórica, que abordavam questões bastante laterais ou remotas relativamente ao plano da transformação da realidade. Comparações entre filósofos eram a modalidade mais comum.
4. Os debates no fim de cada painel cosntituíram uma extraordinária montra sobre a diversidade existente no terreno e sobre os inenarráveis anacronismos que teimam em não desaparecer (por exemplo, ouvi um participante, com um ar saudavel e instruído, dizer que o socialismo se teria realizado em Portugal se os operários da construção que cercaram a Assembleia da República durante o PREC a tivessem tomado de assalto).
5. Muitos dos temas dos painéis obedeciam à agenda fracturante que está na moda e só com muito boa vontade se conseguia estabelecer uma ligação com Karl Marx. Em contrapartida o tema "Transição" não existia o que não deixa de ser revelador.
Concluindo: mesmo com todos os seus defeitos o Congresso foi importante e constitui uma novidade no nosso panorama político, tão dado a concentrar o esforço teórico na análise da última gaffe da Dra. Manuela, que importa continuar.
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4 comentários:
Um pequeno grupo da esquerda (académicos, políticos, militantes) resolveu organizar agora um "Colóquio Internacional Karl Marx". O objectivo do exercício é, evidentemente, demonstrar que o "marxismo" (qual?) não está morto, nem o "liberalismo" destinado a durar "mil anos". Porquê? Porque a presente crise económica e financeira, por razões mais do que obscuras, prova, ou anuncia, a morte imediata ou futura do "capitalismo"; e porque vários governos tomaram medidas (discutivelmente) "socialistas" de nacionalização ou fortalecimento dos bancos com o dinheiro do contribuinte. Há por aqui muita confusão e muita vontade de reabilitar em proveito próprio uma teoria (ou, se preferirem, uma ideologia), que antigamente inspirou um programa persuasivo e marcou uma clara divisão com a direita.
Para os crentes, nunca houve "crise" que não fosse o princípio do apocalipse. E a "crise" de hoje, à superfície global, parece prometedora. Só que nem na origem, nem no desenvolvimento, nem nas medidas que se tomaram para a limitar, ela se conforma com as previsões de Marx, em qualquer das suas variantes. Marx escreveu fundamentalmente sobre a sociedade inglesa de meados do século XIX (e mesmo assim falsificou e distorceu informação para confirmar a sua filosófica tese). Em 2008, nenhum dos pressupostos de que partiu continua a existir no Ocidente, na Ásia ou no Brasil. O "Colóquio Internacional" esqueceu este pequeno pormenor, que o torna fatalmente uma reunião um pouco saudosista e patética. Não admira que o Bloco, de Louçã e Rosas, por lá andasse entusiasmado e beato.
Marx acreditava numa ilusória e putativa "luta de classes" como "motor" da História e no proletariado como o agente introdutor do milénio. O proletariado, no sentido que ele dava à palavra, quase desapareceu e, onde não desapareceu de todo, não passa de um "estrato" (coisa muito distinta de uma "classe") minoritário e sem força. Não se percebe onde, nesta crise, o "Colóquio Internacional" viu o mais leve indício de uma "luta de classes", susceptível de arrasar o capitalismo. Ou como confunde (se confunde) os trabalhadores da China (uma potência formalmente comunista) com os trabalhadores de Manchester em 1880 ou da América ou da França em 2008. O "Colóquio Internacional" finge que discute Marx. O que ele discute, na verdade, é a extensão do poder do Estado: uma tendência comum a intelectuais da classe média.
Público, 16.11.2008
Terra de escravos
1. Foi na SIC, assinada pela jornalista Miriam Alves e por Jorge Pelicano (imagem), uma dessas reportagens com que de há uns tempos para cá as estações parecem querer demonstrar que poderíamos ter bom telejornalismo em horário acessível se elas, as estações, quisessem. O tema deste trabalho foi, sob o título de «O Contrato», a escandalosa e indignante enxurrada de trabalho precário que praticamente tomou conta do mercado de trabalho sob o implícito argumento de que é assim que a modernidade exige e a explícita alegação de que o patronato, coitado, não pode suportar essa forma particular de direito humano que é a estabilidade mínima do emprego. Muitos foram os dados concretos e altamente significativos que a reportagem alinhou ao longo dos minutos da sua duração. Três casos concretos avultaram: o de Maria João de Sousa, arqueóloga, o de Vítor Monteiro, que não pareceu ter outra especialidade além do facto de trabalhar desde os cinco anos de idade sem conseguir a sonhada estabilidade laboral, e o de João Pacheco, jornalista galardoado com o Prémio Gazeta mas nunca, pelos vistos, com um contrato de trabalho. Estes três casos, como aliás os de muitos outros referidos pela reportagem com menos vagar, englobados numa situação generalizada que consubstancia de facto uma realidade desumana, socialmente monstruosa, caracterizavam-se por aspectos que se tornaram vulgares: privação do direito a férias, a subsídios, a outros chamados «benefícios». E isto tanto no sector privado (João Pacheco foi identificado como jornalista do «Público», ao serviço do qual terá merecido o prémio que lhe foi atribuído) quer no sector público, caso de Maria João de Sousa. Quanto a João Pacheco, vimo-lo sentado diante de um televisor que o ajudaria a passar as horas, já em tempo que seria o de jantar, à espera de um telefonema que viria dizer-lhe se na manhã seguinte teria ou não trabalho. Neste caso, como decerto em milhares de situações idênticas, talvez se possa imaginar o desgaste produzido na saúde mental e física de um trabalhador em tais condições. Mas é claro que esse aspecto é apenas um entre os muitos que esta específica forma de alegada modernidade provoca. Como bem entende quem o queira entender, trata-se de um estado de coisas que desarticula completamente o tecido social, que impede formas elementares de realização pessoal dos cidadãos, que configura uma permanente agressão contra o fundamental direito a existir em mínima paz psicológica.
Uma forma peculiar
Como se vai sabendo, o argumento invocado de modo expresso ou implícito para supostamente justificar esta forma de barbárie é o de que não haverá outra maneira de permitir a sobrevivência das empresas empregadoras. Perante isto, é natural e quase inevitável lembrar os que em tempos, em certos lugares do mundo, sustentavam que a manutenção da escravatura era indispensável para permitir a sobrevivência de certas formas de actividade agrícola e, complementarmente, da organização «civilizacional» dela decorrente. Ora, o que já está praticamente implantado e instituído nas sociedades como a portuguesa, com enorme parte da actividade económica assente na utilização de mão-de-obra espoliada do direito a uma mínima segurança no emprego, é uma forma peculiar de escravatura que tem sobre a tradicional a desvantagem de o patronato, forma actual do antigo dono, nem sequer ser obrigado a alimentar e alojar o escravo nos períodos em que não precise dele. Dizê-lo talvez sirva para iluminar o carácter inadmissível da situação actual, consentida por sucessivos governos que, contudo, reagem escandalizados perante quem diga que estão ao serviço de uma classe que parcialmente é de facto uma classe esclavagista. O caso é que este nosso País, embora se saiba que não apenas ele, tem vindo a tornar-se uma verdadeira terra de escravos «modernos». E, perante isto, faz talvez inconscientemente figura de hipócrita quem venha lamentar que os casais portugueses não tenham filhos e a demografia acuse uma constante regressão. Como se um estranho sentido de dever patriótico mandasse aos jovens casais que tenham filhos mesmo não sabendo se no dia seguinte terão o emprego que permita alimentá-los. Como se um prévio dever, esse sim patriótico e situado ao nível da governação, não mande providenciar para que nenhum Vítor Monteiro tenha de estar noite após noite à espera de um telefonema que lhe diga ter no dia seguinte, mas talvez só nesse dia seguinte, direito ao trabalho.
Correia da Fonseca Avante!
Obrigado pela referência.
Queria sublinhar que na tua apreciação há algumas coisas com que concordo e outras de que discordo.
Estou absolutamente de acordo com o que dizes sobre alguns ambientes em que decorreu o Congresso. Este facto, que eu não refiro, passou-se em algumas das sessões que tiveram lugar na sala 2, que era manifestamente pequena para o número de participantes. Por outro lado, se as sessões em mesa redonda são engraçadas quando os presentes são uma dúzia, tornam-se claustrófóbicas, quando mesa e participantes se misturam, não se sabendo quem intervém, nem quem dirige a sessão. Um horror a corrigir.
Quanto ao segundo ponto, sendo verdade aquilo que dizes, a minha experiência indica que intervenções que recorrem ao hoje tão divulgado Power Point demoram muito mais tempo do que os 20 minutos atribuídos a cada intervenção, tornando assim impossível a sua aplicação. Tu beneficiaste do orador anterior ter comprido o tempo que lhe estava atribuído e ter faltado um dos intervenientes. Pudeste espraiar-te muito mais, recorrendo a meios informáticos. Por outro lado, em todas as sessões onde eu vi os oradores recorrerem a eles, havia sempre um problema técnico irresolúvel. Tu próprio no início da tua sessão foste vítima disto. Assunto, de facto, a melhorar.
Quanto ao carácter académico das intervenções, era inevitável. Numa academia, organizado por alguns académicos, num Congresso Internacional, não poderíamos esperar outra coisa. Não foi, do ponto de vista formal, um partido a organizar tal iniciativa, nem um grupo de activistas políticos. Como eu já escrevi num post pensava que fosse muito pior, de tal modo nunca pensei em apresentar qualquer comunicação. Só depois, quando vi o programa, é que verifiquei que uma comunicação minha não estava deslocada. Nisto penso que não tens razão.
Quanto ao ponto quatro, ainda bem que lembraste aquela afirmação, que eu acho que se produziu na discussão da comunicação do António Louçã. É um espanto, mas isso não é culpa dos organizadores. Eu chamo a atenção para isso e considero que é um exemplo das coisas ainda não resolvidas entre as diversas esquerdas.
Quanto ao teu último ponto, estando de certo modo de acordo, acho que num país onde certos militantes de esquerda, e mesmo alguns partidos, ainda a continuam a raciocinar de forma cavernícola, é sempre bom chamar-se a atenção para novos desenvolvimentos do marxismo, que tu chamas fracturantes.
Um abraço, e desculpa o espaço. Quando começo a escrever nunca mais paro.
PS.:Não se percebe o significado do último comentário. Alguém saberá.
«Há uma guerra de classes, é um facto,
mas é a minha classe, a dos ricos, que a
conduz, e estamos em vias de a ganhar»
- Warren Buffett
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