Foi transmitido no dia 12 de Outubro pela RTP1 um documentário denominado Fátima na Rússia, da autoria de uma jornalista da Rádio Renascença, Aura Miguel. Este documentário inseria-se nas comemorações dos 90 anos das denominadas aparições de Fátima. Só agora tive oportunidade de o ver. Mas a indignação que me provocou foi tão grande que não resisti a escrever sobre ele.
Fátima, para os oposicionistas a Salazar, fazia parte dos três F que caracterizavam a sua política cultural e ideológica, ou seja, fazia parte do conjunto de actividades privilegiadas pelo Regímen para anestesiarem a intervenção cívica das massas. Os outros dois eram o futebol e o fado. Hoje muita gente considera que os três F estão de volta, pois o futebol, mais do que no tempo do fascismo, invade diariamente o nosso quotidiano, dominando os media e as nossas conversas diárias. Quanto ao fado, a situação melhorou, tornou-se até o exemplo de canção portuguesa que resiste contra a maré da música anglo-saxónica, cantada muitas vezes por gente de esquerda e que actualmente passa por uma louvável renovação. Fátima, apesar das diferenças de época, continua, igualmente a merecer grande atenção quer dos media quer dos poderes públicos e, pela amostra do documentário referido, continua a desempenhar o papel que foi sempre o seu durante o fascismo, ou seja, o de estar ao serviço do anticomunismo militante.
Mas comecemos pelo mais espantoso. Já era do conhecimento de todos que o chamado segundo segredo de Fátima falava da conversão da Rússia e que se isso não sucedesse esta espalharia os seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja. Ora como se sabe, e isso é dito expressamente no documentário, as chamadas aparições tiveram lugar entre Maio e Outubro de 1917, sendo a última a 13 daquele mês, com o referido milagre do Sol, e a Revolução Socialista de Outubro, contra quem aquele segredo é de facto dirigido, teve também lugar em 1917, simplesmente em 25 de Outubro, que, no calendário seguido no Ocidente, corresponde a 7 de Novembro. Apesar destas datas não baterem certas, para os católicos russos que são entrevistados no documentário isso não tem qualquer importância. O ano 1917 é que é verdadeiramente a chave dos acontecimentos. A nossa Senhora de Fátima já conhecia antecipadamente, e parece que os segredos foram todos revelados na aparição que teve lugar a 13 de Julho, os diversos passos que Lenine e os seus companheiros bolcheviques iriam dar para, segundo a expressão de um dos russos entrevistados, se atingir a fatídica noite de 25 de Outubro. Presciente conhecimento que, a 13 de Julho, antes dos próprios autores terem uma ideia clara como os acontecimentos se iriam desenrolar, já previa o que iria acontecer. É a história na sua visão mais mecanicista.
É evidente que se aquela coincidência de anos serve de explicação para russos beatos, qualquer historiador minimamente probo sabe que isso não é assim. Fátima inseriu-se inicialmente na luta do Portugal arcaico e camponês, dominado pela Igreja, contra o Portugal Republicano e de facto anti-clerical, que nesse mesmo ano tinha começado a enviar os seus filhos para a Guerra da Europa. Só muito mais tarde, e aqui as datas do documentário e alguma informação que recolhi na net não coincidem completamente, é que o segredo referente à Rússia foi revelado. Segundo o documentário ele teria sido escrito por volta de 1927, quando Lúcia, a única sobrevivente dos três jovens pastores da aparição, estava recolhida num convento em Tuy, Galiza. Foi depois revelado por Pio XII, em Outubro de 1942, ainda de acordo com o documentário, em plena batalha de Estalinegrado, mas de uma forma velada para não ofender as partes em confronto. Tudo isto mereceria um aprofundamento histórico, mas não me admiraria nada que, na mesma altura em que o mundo era de facto ameaçado pela besta nazi, que punha todo o seu empenho na derrota e destruição da União Soviética, se viesse clamar pela conversão da Rússia e mais, se pedisse a sua consagração ao Meu Imaculado Coração. Mas mesmo que presentemente se queira retirar este carácter agressivo e fascista ao segredo de Fátima, ele não poderá deixar de se inserir na Guerra Fria e servir às mil maravilhas para Salazar ter na mão um instrumento ideológico poderoso contra o comunismo e o Partido Comunista Português.
O cardeal Cerejeira, em 1953, numa daquelas manifestações guerreiras e belicistas que caracterizavam as cerimónias oficiais do salazarismo (vê-se no documentário o Exército a desfilar em Fátima), fala de Nossa Senhora de Fátima como a miraculosa anti-Rússia. É preciso ter descaramento para se vir reproduzir estas imagens que deviam envergonhar qualquer cristão, pois elas são um apoio explícito ao regímen que prendia, torturava e matava comunistas com a cumplicidade e conivência da Igreja oficial.
Mas o que é ainda mais espantoso são as bicadas que se dão ao 25 de Abril, mostrando imagens do Largo do Carmo, quando se diz que o Exército Azul levou novamente para os Estados Unidos o ícone de Kazan, uma relíquia da Igreja Ortodoxa russa, que ele tinha oferecido a Fátima, pois receava pela sua segurança. Só o tendo devolvido em 1982. O Exército Azul era uma organização reaccionária e anticomunista americana criada em 1947, nascida da Guerra Fria com a missão de converter a Rússia tal como era profetizado pelo segundo segredo e que tinha a sua sede em Fátima.
Nesta ausência de valores e de seriedade, há um católico russo que afirma, com grande candura, que leu clandestinamente na Rússia um livro onde se dizia que algures em Portugal há alguém que se interessava pela Rússia e a imagem a preto e branco, em tom contrastado forte, com música a condizer, mostra uma série de pobres peregrinos portugueses a dirigirem-se para Fátima, ficando nós com a sensação de que aquela gente iria rezar a Fátima pela conversão da Rússia. Esquece esse católico russo que em Portugal era, também, em nome de Fátima que se prendiam e torturavam comunistas.
É evidente que acompanhando estes panegíricos à contribuição de Fátima para a conversão da Rússia vem a descrição, com imagens, do que foi a política anti-clerical de Estaline, com a destruição de Igrejas, e as referências à morte de vários milhões de crentes. Mas, faz-se igualmente referências pouco abonatórias ao clero ortodoxo que colaborou com o regímen, ignorando que Estaline, para poder contar com o apoio da Igreja Ortodoxa na guerra contra os alemães, lhe concedeu certas liberdades, a que a Igreja correspondeu, contribuindo de facto para a derrota do invasor. É igualmente espantoso que faça referência à destruição de uma Igreja perto da Praça Vermelha e se diga de seguida que era para haver mais espaço para as paradas militares e a única que se mostre seja a da vitória da URSS contra os nazis, que é aquela que mais significado terá para os soviéticos. É evidente que a perseguição religiosa é desenquadrada de quaisquer perspectivas históricas, quase igualando a foi produzida nos tempos de Estaline com a que se verificou posteriormente. Esquecendo igualmente que a par de crentes, o maior massacre foi o de vários povos por razões que nada tinham ver com problemas religiosos e acima de tudo de comunistas, companheiros de Partido de Estaline, que esses provavelmente, para as almas caridosas que fazem o documentário, deveriam ser todos mortos.
O documentário termina com as afirmações de um dos entrevistados de que o caminho de Fátima não está terminado, que os que estavam antes ocupam presentemente postos de responsabilidade e que as pessoas continuam a viver sem Deus na Rússia e esperam mais de Fátima, mostrando a câmara símbolos comunistas que sobrevivem na Rússia de hoje. Está-se talvez preparar os telespectadores para a nova vaga de russofobia que a América está novamente a desencadear.
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MK BHADRAKUMAR
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Há 31 minutos
3 comentários:
Independentemente das questões de datas. Uma coisa é certa: Fátima ajudou à queda do totalitarismo soviético.
O comentário de Luís Bonifácio vai mais longe do que o próprio documentário. Este, e bem, nunca diz que Fátima contribuiu para o fim do regímen comunista na União Soviética. Só nos diz que nos "segredos" de Fátima havia uma mensagem sobre a Rússia comunista e que esta perseguiu os crentes e situa a origem dessa mensagem em Portugal. O grave é a falta de consistência cronológica e o papel que essa mensagem representou na propaganda anticomunista de Salazar e do Ocidente, facto que não preocupa a autora do documentário. Quanto à designação de “totalitarismo” do regímen soviético ela é sua e não minha, este conceito é para mim contraproducente.
Caro Jorge Nascimento Fernandes,
Muito me fascina esse seu último comentário... elucide-me, rogo-lhe, de que forma se pode considerar que um conceito historicamente comprovado possa ser contraproducente?! Não me diga que está a questionar o referido "totalitarismo"??? Aí está um conceito que não é só contraproducente, mas na minha opinião, criminoso do ponto de vista intelectual e social. Só falta vir também questionar a ocorrência ou não do Holocausto Nazi...
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