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Jacques Attali, que foi conselheiro de Estado de Miterrand durante dez anos, publicou em 2006 "Une Brève Histoire de l'Avenir", traduzido pela Dom Quixote e publicado em 2007 como "Breve História do Futuro".
Sou sempre seduzido por esta ambição de divisar o amanhã em especial, como é o caso de Attali, quando tem o desplante de afirmar que o estudo do passado permite predizer o futuro.
Como diz Soros (e outros), sendo nós simultaneamente sujeito e objecto das previsões, ao prevermos estamos já a modificar o que pensávamos ter previsto; então é legítimo encarar as previsões como manobras para produzir o futuro.
Do meu ponto de vista as previsões não devem ser avaliadas pelo grau da sua concretização futura, que quando se constata não passa de uma curiosidade, mas sim pela influência que exerceram na sociedade enquanto o futuro estava a ser forjado.
A recente leitura de Attali vem curiosamente retomar o curso dos pensamentos que eu tinha iniciado com os artigos "A Utopia e as malas Vuitton" e "Não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe". Em qualquer dos casos a mesma preocupação: o défice do pensamento de esquerda relativamente ao futuro ou, se quisermos, do pensamento utópico. Pelo meio ficou uma outra leitura, "A Pobreza do Historicismo" de Karl Popper, que ainda não comentei mas que, avanço desde já, não me convenceu por razões que este texto ajudará a perceber.
Attali dedica os primeiros capítulos à revisão e interpretação do percurso histórico. Primeiro em termos bastante vagos:
"... podemos considerar a história da Humanidade como a sucessão de três grandes ordens políticas: a Ordem Ritual, em que a autoridade é essencialmente religiosa; a Ordem Imperial em que o poder é sobretudo militar; e a Ordem Mercantil, em que o grupo dominante é aquele que controla a economia."
Depois Attali analisa com algum detalhe as nove formas que a Ordem Mercantil assumiu ao longo da história e que ele associa a cada uma das cidades-coração que se sucederam: Bruges, Veneza, Antuérpia, Génova, Amesterdão, Londres, Boston, Nova Iorque e Los Angeles.
Segundo Attali, em cada caso houve sucessivamente:
"...um serviço que foi progressivamente transformado em produto de consumo de massa (os alimentos, o vestuário, os livros, as finanças, os meios de transporte, o equipamento doméstico, os instrumentos de comunicação e de distracção), pela tecnologia que permite alargar o alcance do produto (o leme de cadaste, a caravela, a imprensa, a contabilidade, a charrua, a máquina a vapor, o motor de explosão, o motor eléctrico, o microprocessador)..."
Esta fase do texto é dominada pela busca das regularidades da história o que, mesmo quando não é convincente, acaba por ser uma fonte de divertimento estimulante pela multiplicidade dos factos e pela teia dos relacionamentos mais ou menos originais.
"Uma forma comercial dura enquanto o «coração» consegue reunir riqueza suficiente para dominar o «meio» e a «periferia»; entra em declínio quando o «coração» tem de investir demasiados recursos na manutenção da paz interna ou na defesa face a um ou mais inimigos externos".
Ao chegar a este ponto acabaram-se as "revisões da matéria dada" e o autor tem que iniciar o melindroso processo das previsões.
A "Breve História do Futuro" faz duas coisas que são de certa forma habituais nestas andanças;
(1) a regularidade histórica tão engenhosamente concebida quebra-se a partir de agora (no caso vertente a Ordem Mercantil deixa de ter um coração)
(2) num dado momento futuro o homem, que sempre foi joguete das forças naturais ou económicas, através de uma nova consciência, assume pleno controle do seu destino (tal como em Marx).
O que Attali faz quando tenta imaginar o mundo após a decadência da nona forma da Ordem Mercantil, com o coração em Los Angeles, é uma longa extrapolação linear de todos os fenómenos já hoje observáveis por qualquer leitor atento dos jornais.
Essa projecção por exagero conduz, ao longo do século XXI, com larga cópia de detalhes, sucessivamente a um Hiperimpério e a um Hiperconflito dignos das mais espectaculares super-produções catastrofistas de Hollywwood.
É então, quando o leitor já está aterrorizado, que Attali apresenta uma evolução alternativa ao Hiperimpério e ao Hiperconflito, a Hiperdemocracia.
"...algumas catástrofes´anunciadas demonstrarão aos mais cépticos, da forma mais crua, que o nosso modo de vida actual não pode perdurar: as alterações climáticas, o fosso cada vez mais profundo entre os mais ricos e os mais pobres, o aumento da obesidade e do consumo de drogas, a crescente violência da vida quotidiana, os actos terroristas cada vez mais assustadores, a impossível defesa dos ricos, a mediocridade do espectáculo, a ditadura das seguradoras, a invasão do tempo pelos bens de consumo, a falta de ar e de petróleo, o aumento da delinquência urbana, as crises financeiras cada vez mais frequentes, as vagas de imigração a chegarem às nossas praias, primeiro de mãos estendidas, depois de punhos erguidos, as tecnologias cada vez mais mortíferas e selectivas, as guerras cada vez mais loucas, a miséria moral dos mais ricos, a vertigem da autovigilância e da clonagem virão um dia despertar aqueles que dormem profundamente. Os desastres serão, cada vez mais, os melhores advogados da mudança."
De repente o historicismo é lançado às urtigas e regressamos a uma espécie de redenção pela tomada de consciência por parte de um "homem novo". Nem sequer falta, para completar a sensação do déjà vu, uma vanguarda esclarecida:
"No futuro, uma parte desta classe, composta por indivíduos particularmente sensíveis a esta história do futuro, compreenderá que a sua felicidade depende da felicidade dos outros, que a espécie humana apenas poderá sobreviver unida e pacífica. Estes indivíduos deixarão de pertencer à classe criativa mercantil e recusar-se-ão a estar ao serviço dos piratas. Tornar-se-ão aquilo que aqui designo por transumanos"
Para chegar a estas conclusões/desejos não era preciso ter discorrido sobre os mecanismos do processo histórico. O sonho de um acordar redentor da espécie humana sempre deve ter existido.
A questão que se coloca é: sempre que se trata do futuro tem que se descambar para previsões que não passam de desejos mesmo que legítimos ?
À partida só sabemos uma coisa segura sobre o futuro; ele será diferente do passado. A discussão passa então por tentar determinar o grau dessa diferença vencendo a dificuldade de distinguir o que pode ser considerado uma mudança radical, qualitativa.
Nos capítulos de análise histórica Attali associa as causas da transição às tecnologias e às rentabilidades mas pouco refere as relações de produção. Já no capítulo em que descreve o advento da Hiperdemocracia parece atribuir a tomada de consciência redentora às injustiças e atropelos.
Seria talvez mais avisado admitir que os anseios de liberdade e de justiça têm históricamente vingado se e quando surgem associados a saltos tecnológicos e de produtividade.
A Hiperdemocracia de Attali é demasiado voluntarista para ser convincente pois não se baseia num novo paradigma produtivo.
Jacques Attali, que foi conselheiro de Estado de Miterrand durante dez anos, publicou em 2006 "Une Brève Histoire de l'Avenir", traduzido pela Dom Quixote e publicado em 2007 como "Breve História do Futuro".
Sou sempre seduzido por esta ambição de divisar o amanhã em especial, como é o caso de Attali, quando tem o desplante de afirmar que o estudo do passado permite predizer o futuro.
Como diz Soros (e outros), sendo nós simultaneamente sujeito e objecto das previsões, ao prevermos estamos já a modificar o que pensávamos ter previsto; então é legítimo encarar as previsões como manobras para produzir o futuro.
Do meu ponto de vista as previsões não devem ser avaliadas pelo grau da sua concretização futura, que quando se constata não passa de uma curiosidade, mas sim pela influência que exerceram na sociedade enquanto o futuro estava a ser forjado.
A recente leitura de Attali vem curiosamente retomar o curso dos pensamentos que eu tinha iniciado com os artigos "A Utopia e as malas Vuitton" e "Não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe". Em qualquer dos casos a mesma preocupação: o défice do pensamento de esquerda relativamente ao futuro ou, se quisermos, do pensamento utópico. Pelo meio ficou uma outra leitura, "A Pobreza do Historicismo" de Karl Popper, que ainda não comentei mas que, avanço desde já, não me convenceu por razões que este texto ajudará a perceber.
Attali dedica os primeiros capítulos à revisão e interpretação do percurso histórico. Primeiro em termos bastante vagos:
"... podemos considerar a história da Humanidade como a sucessão de três grandes ordens políticas: a Ordem Ritual, em que a autoridade é essencialmente religiosa; a Ordem Imperial em que o poder é sobretudo militar; e a Ordem Mercantil, em que o grupo dominante é aquele que controla a economia."
Depois Attali analisa com algum detalhe as nove formas que a Ordem Mercantil assumiu ao longo da história e que ele associa a cada uma das cidades-coração que se sucederam: Bruges, Veneza, Antuérpia, Génova, Amesterdão, Londres, Boston, Nova Iorque e Los Angeles.
Segundo Attali, em cada caso houve sucessivamente:
"...um serviço que foi progressivamente transformado em produto de consumo de massa (os alimentos, o vestuário, os livros, as finanças, os meios de transporte, o equipamento doméstico, os instrumentos de comunicação e de distracção), pela tecnologia que permite alargar o alcance do produto (o leme de cadaste, a caravela, a imprensa, a contabilidade, a charrua, a máquina a vapor, o motor de explosão, o motor eléctrico, o microprocessador)..."
Esta fase do texto é dominada pela busca das regularidades da história o que, mesmo quando não é convincente, acaba por ser uma fonte de divertimento estimulante pela multiplicidade dos factos e pela teia dos relacionamentos mais ou menos originais.
"Uma forma comercial dura enquanto o «coração» consegue reunir riqueza suficiente para dominar o «meio» e a «periferia»; entra em declínio quando o «coração» tem de investir demasiados recursos na manutenção da paz interna ou na defesa face a um ou mais inimigos externos".
Ao chegar a este ponto acabaram-se as "revisões da matéria dada" e o autor tem que iniciar o melindroso processo das previsões.
A "Breve História do Futuro" faz duas coisas que são de certa forma habituais nestas andanças;
(1) a regularidade histórica tão engenhosamente concebida quebra-se a partir de agora (no caso vertente a Ordem Mercantil deixa de ter um coração)
(2) num dado momento futuro o homem, que sempre foi joguete das forças naturais ou económicas, através de uma nova consciência, assume pleno controle do seu destino (tal como em Marx).
O que Attali faz quando tenta imaginar o mundo após a decadência da nona forma da Ordem Mercantil, com o coração em Los Angeles, é uma longa extrapolação linear de todos os fenómenos já hoje observáveis por qualquer leitor atento dos jornais.
Essa projecção por exagero conduz, ao longo do século XXI, com larga cópia de detalhes, sucessivamente a um Hiperimpério e a um Hiperconflito dignos das mais espectaculares super-produções catastrofistas de Hollywwood.
É então, quando o leitor já está aterrorizado, que Attali apresenta uma evolução alternativa ao Hiperimpério e ao Hiperconflito, a Hiperdemocracia.
"...algumas catástrofes´anunciadas demonstrarão aos mais cépticos, da forma mais crua, que o nosso modo de vida actual não pode perdurar: as alterações climáticas, o fosso cada vez mais profundo entre os mais ricos e os mais pobres, o aumento da obesidade e do consumo de drogas, a crescente violência da vida quotidiana, os actos terroristas cada vez mais assustadores, a impossível defesa dos ricos, a mediocridade do espectáculo, a ditadura das seguradoras, a invasão do tempo pelos bens de consumo, a falta de ar e de petróleo, o aumento da delinquência urbana, as crises financeiras cada vez mais frequentes, as vagas de imigração a chegarem às nossas praias, primeiro de mãos estendidas, depois de punhos erguidos, as tecnologias cada vez mais mortíferas e selectivas, as guerras cada vez mais loucas, a miséria moral dos mais ricos, a vertigem da autovigilância e da clonagem virão um dia despertar aqueles que dormem profundamente. Os desastres serão, cada vez mais, os melhores advogados da mudança."
De repente o historicismo é lançado às urtigas e regressamos a uma espécie de redenção pela tomada de consciência por parte de um "homem novo". Nem sequer falta, para completar a sensação do déjà vu, uma vanguarda esclarecida:
"No futuro, uma parte desta classe, composta por indivíduos particularmente sensíveis a esta história do futuro, compreenderá que a sua felicidade depende da felicidade dos outros, que a espécie humana apenas poderá sobreviver unida e pacífica. Estes indivíduos deixarão de pertencer à classe criativa mercantil e recusar-se-ão a estar ao serviço dos piratas. Tornar-se-ão aquilo que aqui designo por transumanos"
Para chegar a estas conclusões/desejos não era preciso ter discorrido sobre os mecanismos do processo histórico. O sonho de um acordar redentor da espécie humana sempre deve ter existido.
A questão que se coloca é: sempre que se trata do futuro tem que se descambar para previsões que não passam de desejos mesmo que legítimos ?
À partida só sabemos uma coisa segura sobre o futuro; ele será diferente do passado. A discussão passa então por tentar determinar o grau dessa diferença vencendo a dificuldade de distinguir o que pode ser considerado uma mudança radical, qualitativa.
Nos capítulos de análise histórica Attali associa as causas da transição às tecnologias e às rentabilidades mas pouco refere as relações de produção. Já no capítulo em que descreve o advento da Hiperdemocracia parece atribuir a tomada de consciência redentora às injustiças e atropelos.
Seria talvez mais avisado admitir que os anseios de liberdade e de justiça têm históricamente vingado se e quando surgem associados a saltos tecnológicos e de produtividade.
A Hiperdemocracia de Attali é demasiado voluntarista para ser convincente pois não se baseia num novo paradigma produtivo.
3 comentários:
Não poderia estar mais de acordo com a análise.
Os meus parabéns pelo que me parece uma evolução do seu pensamento.
Cumprimentos.
JMC.
Talvez a "evolução do meu pensamento" seja apenas uma forma nova de me expressar com o pretexto que me foi dado pelo Attali.
Para Jacques Attali (antigo conselheiro de Estado de Mitterrand, actual conselheiro para o Desenvolvimento junto de Sarkozy, economista, historiador, ensaísta e romancista), «a liberdade, comercial e política é, mais do que nunca, o motor da História». Porque «mercado e democracia assentam ambos na organização da competição, fomentando a exigência do novo e a selecção de uma elite». E recorda, no que respeita ao Ocidente, o velho ideal greco-judaico: «A liberdade é um fim a atingir; o respeito por um código moral, uma condição para a sobrevivência; a riqueza um dom do céu e a pobreza uma ameaça. Liberdade individual e Ordem Mercantil são desde então indissociáveis, progridem de mãos dadas até aos nossos dias».
Mas, Attali diz igualmente que, apesar de constituir uma forma da liberdade, o mercado também pode conduzir ao fim dessa mesma liberdade - na medida em que a sua crescente necessidade de eficácia e segurança leva à utilização de mecanismos de vigilância cada vez mais sofisticados e generalizados. «De século a século, esta Ordem (a Ordem Mercantil) depura todas as suas instituições, até que acabará por atingir o seu paroxismo» - incluindo o possível desaparecimento da própria raça humana, talvez daqui a meio século, estima o autor.
Breve História do Futuro é, portanto, uma antevisão dos próximos 50 anos, com base em dados históricos, sociológicos e nas expectativas da evolução tecnológica e científica. Analisa as relações internacionais, os terrorismos, os conflitos militares, os choques civilizacionais, as mudanças climáticas, as demografias galopantes do Terceiro Mundo, as grandes migrações para os países mais desenvolvidos, o agravamento dos fossos sociais - numa perspectiva bastante sombria, seja dito. Admite o declínio da hegemonia americana, a queda da Europa até ao nível do «não-desenvolvimento» africano, a hipótese de grandes conflitos globais susceptíveis, inclusive, de levar ao fim da raça humana.
Mas o livro não é tão pessimista quanto este rápido resumo pode fazer crer. O futuro não está escrito, a História não é uma fatalidade e, para Attali, é possível influenciar o seu decurso desde que se entenda o passado e as potencialidades do presente. Mostra como os progressos científicos podem beneficiar formidavelmente as formas de produção, a educação, a saúde, os sistemas políticos e as relações internacionais. E como será possível evoluir no sentido da abundância, da eliminação da pobreza, da distribuição equitativa dos produtos da tecnologia e da imaginação mercantil. Uma visão utópica? Possivelmente, mas bastante bem sustentada pela análise da história daquilo a que chama de Ordem Mercantil (o Capitalismo, se preferirmos) de há milénios até aos nossos dias) que ocupa os três primeiros capítulos. E que constitui, talvez, a parte mais fascinante da obra.
Tal como sucede com todos os outros países onde é publicado, Breve História do Futuro termina com um breve capítulo consagrado a Portugal - nada risonho, diga-se. Segundo Attali, Portugal nunca se tornou numa potência dominante na Europa - o que poderia ter sido no século XVI - por três razões: sempre privilegiou os rendimentos da terra e dos interesses burocráticos associados, em detrimento da indústria do lucro, da mobilidade e da inovação; viveu na nostalgia de um passado idealizado; perseguiu as elites comerciais. Nunca conseguiu formar, promover, nem acolher uma classe criativa. E, tal como em Espanha, num momento-chave da sua História e da História da Europa, os seus dirigentes expulsaram judeus e muçulmanos - instrumentos, então, da modernidade do mercado.
Quanto ao futuro, recomenda que Portugal aposte nas profissões de maior valor acrescentado e consagre um considerável esforço de investimento em matéria de inovação, de ensino superior e formação profissional.
Em conclusão, Breve História do Futuro é uma obra polémica, em muitos pontos discutível, mas sem dúvida original e extremamente fascinante.
Expresso, 26.01.2007
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