terça-feira, fevereiro 19, 2008

Mais uma vez

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1 comentário:

Anónimo disse...

Vital Moreira no Público, 19.02.2008

O "efeito Kosovo"

Não é preciso grande cedência ao realismo político para admitir que não havia outra solução para o caso do Kosovo senão a independência, formalizando a separação da Sérvia, estabelecida no terreno há quase uma década. Mas o processo que levou à independência tem uma história pouco edificante e o "efeito Kosovo" pode ter consequências muito pouco virtuosas.
Antes de mais, a independência do Kosovo é menos o resultado de um suposto "direito dos povos subjugados à secessão" do que o último avatar da luta das potências ocidentais contra a Sérvia e contra a influência russa nos Balcãs. Não satisfeitos com a desagregação da Jugoslávia, os Estados Unidos e alguns aliados europeus resolveram desintegrar a própria Sérvia, provocando a separação do Kosovo, a província de maioria albanesa. Primeiro, instigaram e apoiaram a guerrilha separatista e as suas operações violentas; depois, quando o exército enfrentou a guerrilha, clamaram por "limpeza étnica", apoiados numa gigantesca operação mediática internacional; a seguir, mobilizaram a NATO para bombardear o país e fazer ajoelhar Belgrado; obtida a separação de facto da província secessionista, instalaram um "protectorado internacional" e fecharam os olhos à perseguição e expulsão da minoria sérvia (essa, sim, uma verdadeira limpeza étnica); por último, descartaram a oferta sérvia de uma quase independência para a província e incentivaram a declaração de independência, anunciando a sua disposição para a reconhecer imediatamente.
Foi uma estratégia bem sucedida. A independência do Kosovo estava obviamente inscrita na ofensiva da NATO e no subsequente afastamento da administração sérvia do território, logo transformado em protectorado da ONU e da UE. Se os Estados Unidos orquestraram as operações e fizeram o "trabalho sujo" (primeiro, armamento e apoio à guerrilha kosovar e, depois, bombardeamento da Sérvia), a UE fez um bom papel de prestável ajudante, preparando-se agora para suportar os custos financeiros e políticos da improvável auto-sustentabilidade do novo país.
A independência do Kosovo não pode legitimar-se na base de um alegado direito de secessão unilateral, que nem a Carta das Nações Unidas nem o direito internacional geral reconhecem (salvo no entendimento de alguns autores avulsos, e sempre sob muito estritas condições). O direito à autodeterminação e à independência sempre foi reconhecido apenas aos territórios não-autónomos, ou seja, aos territoriais coloniais. Fora disso, e salvo disposição constitucional interna em contrário (o que ocorre em poucos países, como a Etiópia), o que deve prevalecer é o direito à integridade e a soberania territorial dos Estados, ressalvadas as hipóteses de separação acordada ou consentida (como sucedeu no caso de Singapura). Basta referir, nesse sentido, a profunda discussão doutrinária e jurídica respeitante à hipótese de secessão do Quebeque em relação ao Canadá.
É certo que existem Estados nascidos de secessões unilaterais, que gozam de universal reconhecimento (e mesmo assim com notórias excepções, quando a conveniência aconselha, como sucede com Taiwan). Mas uma coisa é o reconhecimento de situações de facto a posteriori, depois da sua consumação, outra coisa é a promoção e a garantia antecipada de reconhecimento de secessões anunciadas. E isso ainda é mais grave quando envolve a cumplicidade de organizações internacionais como a NATO e a UE. No caso dos Estados Unidos, aliás, a defesa da secessão unilateral não deixa de ser especialmente curiosa, tendo em conta que a guerra civil americana teve origem na recusa do direito de secessão reivindicado e exercido pelos estados do Sul, tanto mais que se tratava de uma união voluntária de estados inicialmente soberanos, onde o direito de saída da união seria até natural.
Além de não se poder prevalecer de suporte no direito internacional, o apoio à secessão do Kosovo e a promessa antecipada do seu reconhecimento constitui também uma clara violação da resolução das Nações Unidas de 1999 que, no seguimento da subjugação da Sérvia pela NATO, garantiu a integridade territorial do país e a autonomia da província. Ora essa resolução vincula todos os Estados que agora se apressam a endossar a secessão kosovar. O caso é especialmente grave por parte dos países que, no caso do Iraque, acusaram, com inteira razão, os Estados Unidos e seus aliados de uma intervenção militar à margem da autorização das Nações Unidas. Agora não se trata somente de falta de autorização, mas sim de expressa violação de uma resolução.

Se a independência do Kosovo culmina um processo politicamente comprometedor das potências ocidentais, da NATO e da UE, o seu reconhecimento pode ser prenhe de consequências para além da Sérvia e dos Balcãs. Se se reconhece a secessão unilateral Kosovo, o que é que pode justificar o não-reconhecimento de uma eventual secessão dos enclaves sérvios remanescentes no Kosovo, se eles decidirem assumir, por sua vez, a separação do novo país, no qual se reconhecem tão pouco como o Kosovo se reconhecia na Sérvia? E como rejeitar uma possível separação dos territórios sérvios da Bósnia-Herzegovina, pelos mesmos motivos, tanto mais que se trata de uma federação?
De resto, o "efeito Kosovo" não se limitará aos Balcãs, podendo irradiar para o resto da Europa e por esse mundo fora, onde existem numerosas situações de secessão consumada à espera de reconhecimento internacional ou de movimentos secessionistas que verão no Kosovo uma alavanca para os seus propósitos. De facto, depois do Kosovo, com que legitimidade é que a UE recusará reconhecer a "República turca de Chipre", bem como os demais pequenos Estados-de-facto na periferia europeia, que se separaram da Moldávia, da Geórgia, etc.? E se os kosovares tiveram êxito na secessão unilateral, o que é que impedirá outras minorias territoriais, por essa Europa fora e na sua vizinhança, de reivindicar também a sua independência e de esperar pelo seu imediato reconhecimento, desde a Escócia à Chechénia, desde o País Basco ao Curdistão? Será que a geografia política europeia vai fragmentar-se ainda mais, de acordo com o enorme mosaico étnico? E se a doutrina da secessão étnica for exportada para África, o que é que ficará do seu actual mapa político, desenhado na Conferência de Viena sem qualquer respeito pelas identidades étnicas do continente?
Na pior das hipóteses, o "efeito Kosovo" poderá abrir uma "caixa de Pandora" de conflitos étnicos e de fragmentação dos Estados pluriétnicos. Na melhor das hipóteses, abrir-se-á uma era de oportunismo casuístico, sem doutrina nem norma, em que as grandes potências decidirão quais são as secessões boas e as más. Em qualquer caso, dificilmente o "efeito Kosovo" contribuirá para a estabilidade e para a paz internacional.