Vital Moreira dedicou-se recentemente (Público, 26.02.2008) a um exercício teórico ambicioso: sanar a contradição entre os “valores da esquerda” e a “visão tecnocrática” no seio da política de “modernização” empreendida pelo governo de José Sócrates.
A definição da “modernização” é, já de si, complicada. VM coloca a questão nestes termos:
“Para os portugueses, um país moderno é desde sempre um país tão desenvolvido, tão próspero, tão culto, em suma, tão civilizado como os países europeus de referência.”
Parece legítimo concluir que os portugueses, ou VM por eles, consideram a Europa uma coisa moderna. Mas há quem pense, com alguma razoabilidade, que esse adjectivo não será o que melhor assenta à Europa. É o caso de Paulo Varela Gomes (Público, 27.02.2008):
“A Europa é o sítio mais civil do mundo, mas já saiu fora do tempo e está completamente virada para o seu património histórico e o seu azedume quotidiano. Na Europa não acontece nada de verdadeiramente significativo para o futuro da humanidade. Na Ásia, pelo contrário, numa atmosfera agitada e sangrenta, sente-se em quase tudo o prenúncio daquilo que pode vir a acontecer. Na Ásia, quase não se ouvem as lamentações sobre o mal-estar presente. São abafadas pelo ensurdecedor barulho dos amanhãs que cantam, choram e gemem”.
Deixemo-nos então de definições, terreno sempre traiçoeiro, e guiemo-nos pelos resultados da modernização. VM adianta:
“Ainda que a modernização seja em geral positiva em si mesma, a modernização não é necessariamente de esquerda, nem sequer política ou ideologicamente neutra”.
Aqui a questão complica-se muito. Temos dificuldade em seguir o seu raciocínio; o que é a “modernização em si mesma” senão algo “ideologicamente neutro” ? Se a modernização não é necessariamente de esquerda e não é ideológicamente neutra resulta então que também pode ser de direita ? Poderá a modernização, “em geral positiva”, ser positiva e de direita ao mesmo tempo ? Ou a modernização é “em geral positiva” porque é em geral de esquerda ? E se a modernização for positiva e de direita devemos ou não aceitá-la ?
Segundo Vital Moreira: “Ao adoptar um discurso e um programa modernizador, que também implica uma modernização de si mesma, a esquerda corre o risco de autodescaracterização e de ser acusada de "deriva de direita".
Esta é uma asserção pouco esclarecedora já que o risco de autodescaracterização parece poder ser facilmente evitado; se como vimos mais acima as medidas de modernização tanto podem ser de esquerda como de direita então, para não correr os tais riscos de deriva, bastaria aplicar só aquelas que são de esquerda.
E Vital continua: “Acresce que a emergência do movimento neoliberal de desintervenção do Estado na economia e de desmontagem do Estado social colocou a esquerda na defensiva, que é o ambiente menos propício para qualquer discurso modernizador”.
Apetece perguntar em que país vive Vital Moreira. Como pode falar de “desintervenção do Estado na Economia” num país em que quase todos os dias há notícias da interpenetração entre o governo, os partidos e as maiores empresas da banca, das telecomunicações, da construção. Falar de neoliberalismo num país em que os sectores chave apresentam situações de quase monopólio apadrinhado pelo Estado e vivem de encomendas públicas constitui pelo menos uma originalidade.
VM diz depois: “A modernização da economia não pode visar somente aumentar a produtividade e competitividade internacional, não podendo deixar de ser caracterizada pela luta pelo emprego e pela sua qualidade, pela justiça nas relações laborais, pela garantia das "obrigações de serviços público" nos "serviços de interesse económico geral".
Desta afirmação depreende-se que a modernização proposta na área das relações de produção é muito reduzida. Lutar pelo emprego e pela justiça, num quadro que se presume de continuação do assalariamento actual, é moderno há pelo menos duzentos anos.
Finalmente desembocamos no tema que constitui quase sempre a "piéce de resistance". Uma esquerda, mesmo moderna, quando não sabe o que fazer ao futuro agarra-se ao “Estado Social”.
“Mas onde não é possível perder uma perspectiva de esquerda é na modernização do Estado social. Em nenhuma outra área é tão necessário manter viva a identidade de esquerda e demarcar a diferença com a perspectiva da direita”.
Sejamos justos e admitamos que VM não está só neste pecadilho, muito boa gente que se julga radical embarca na mesma nave da retórica do “Estado Social”. Partem todos de uma abordagem abstracta em que o estado tem sempre dinheiro para pagar; dinheiro recolhido no bolso dos mais ricos e entregue aos realmente mais pobres sem desperdícios ou perversões.
Esta imagem idílica já todos sabemos que não corresponde à realidade. Quem paga o “Estado Social” são os trabalhadores de rendimentos médios que não têm acesso a off-shores. Só uma parte dos recursos do Estado, que muitos consideram pequena demais, chega aos realmente necessitados pois o resto serve para alimentar as burocracias, as empreitadas dos amigos e as corporações mais aguerridas.
A tentativa do governo Sócrates de aumentar a “sustentabilidade” do sistema significa apenas uma coisa: as classes médias que têm pago a factura estão a ficar de tal forma depauperadas que será cada vez mais difícil extrair-lhes recursos.
Não tenhamos ilusões; a única verdadeira solução para o “Estado Social” passa pela modernização, não do sistema económico vigente, mas das propostas da esquerda para uma nova organização social da produção.
Se assim não for, se tentarmos lutar de igual para igual no processo de globalização, iremos decaindo inexoravelmente para níveis convergentes com os praticados nos países asiáticos que estão em vias de se tornar económicamente preponderantes.
Este é que é o verdadeiro desafio de modernização para a esquerda.
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4 comentários:
«Les grands esprits»... Tinha comentado a mesma citação do PVGomes umas has antes. Quanto ao Vital Moreira, já nem o leio!
Bjs
Já a noite ia alta, e este texto quase acabado, quando fui ao teu blog e constatei que também citaras o Paulo Varela Gomes.
Não é apenas uma coincidência...
Alexandre Herculano, o maior "intelectual" do liberalismo, que passara pelo exílio e combatera no cerco do Porto, deixou, já em agonia, um último juízo sobre a Pátria: "Isto dá vontade de morrer." D. Carlos, que foi de facto o último rei e o último reformador da Monarquia, achava Portugal uma "piolheira" e os portugueses, fatalmente, uma "choldra". Os republicanos não estimavam nem o país, nem a República e acabaram, quase sem excepção, "desiludidos". Basta ler uma dúzia de páginas dos Discursos para constatar o infinito desprezo que Salazar tinha por nós. Do PREC ficou o absurdo cadáver do PC. E esta democracia anda agora a chorar abjectamente o seu fracasso. Verdade que a famosa frase de Herculano é apócrifa (inventada por Bulhão Pato) e que D. Carlos só em privado se alargava sobre o seu reino. De qualquer maneira, não há dúvida de que Portugal sempre gostou muito pouco de si próprio.
Com uma certa razão, convém admitir. Desde o princípio do século XVIII que Portugal quis ser "como a Europa" e até hoje infelizmente não conseguiu. A cada revolução, a cada guerra civil, a cada regime, o indígena prestável, alfabeto e "modernizante" supunha que chegara "o dia". E "o dia" invariavelmente não chegava. A sociedade ia, como é óbvio, mudando: devagar, com dificuldade, aos sacões. Só que a distância que nos separava da Europa não diminuía. Os modelos não faltavam: ou modelo universal da França (até à República); ou os mais modestos modelos de países pequenos como a Bélgica no século XIX e a Suécia a seguir. O português copiava com devoção o que via "lá fora". Mas não saía da sua inferioridade e do seu atraso.
No meio desta persistente desgraça, Portugal julgou três vezes que se aproximava da Europa: durante os primeiros tempos da "Regeneração", durante o "fontismo" e durante o "cavaquismo". Ao todo, trinta e tal anos de uma ordem política "civilizada" e de um crescimento económico razoável. Mesmo assim, os fundamentos destes raríssimos milagres não eram sólidos. Nos três casos (embora com um ligeiro atraso), uma crise financeira pôs fim à festa e voltou a velha angústia nacional, a que por aí se convencionou chamar "mal-estar difuso". O "mal-estar difuso" é simplesmente o regresso à realidade. Portugal não tem meios para o Estado-providência e a espécie de vida que os portugueses reclamam. E, como não tem, toda a gente se agita e ninguém faz nada com sentido. Esta fase também é conhecida.
Na investigação da irregularidades no BCP uma das questões que se podem colocar tem a ver com o facto de o Banco de Portugal ter de restringir o seu âmbito de investigação à denúncia apresentada por Joe Berardo relativamente a 17 «offshores» ou alargar às inúmeras sociedades sediadas em paraísos fiscais criadas para os clientes de Private Bank do BCP - e que podem ascender a centenas. Uma análise que poderá estar a ser equacionada pelo BdP, e dar lugar à abertura de outros processos.
Ontem o ‘Diário Económico’ noticiava que o BdP está prestes a concluir um dos primeiros processos de contra-ordenação contra o BCP, no âmbito das investigações que conduziu sobre os créditos concedidos pelo banco a um dos filhos de Jardim Gonçalves, Filipe Jardim Gonçalves, que o banco depois considerou incobráveis, no valor de 12,5 milhões de euros. O jornal refere mesmo que pode estar em causa uma coima entre os 600 e os 700 mil euros.
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