domingo, fevereiro 07, 2010

Julgamentos na praça pública

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Sempre que uma pessoa importante se vê envolvida num escândalo surge logo quem declare enfáticamente que são inadmissíveis os "julgamentos na praça pública" (JPP). Essas declarações solenes não são habitualmente aplicadas aos casos que envolvem cidadãos comuns o que me leva a pensar que esses podem ser julgados em qualquer lugar.

Mais grave do que o elitismo desta teoria dos JPP é o facto de ela assentar num sofisma. Subrepticiamente induz a ideia de que tais julgamentos substituem os julgamentos dos tribunais. Como se alguém julgasse "na praça pública" aquilo que devia ser julgado nos tribunais. Como se alguém julgasse "na praça pública" em vez de julgar nos tribunais.

Tal ideia não tem qualquer fundamento. Os famigerados JPP não impedem nem se substituem aos julgamentos dos tribunais. Coexistem e são complementares mas obedecem a regras diferentes. É quando não se compreende a especificidade destes dois tipos de julgamento, e se pretende importar as regras de um para aplicar no outro, que começam as dificuldades e a confusão.

Os JPP acontecem inexoravelmente, constantemente, com base na informação de que cada um de nós dispõe. Quando eu desço no elevador em companhia do vizinho do quarto esquerdo, ou me esqueço de pagar o condomínio, ou atiro uma beata pela janela estou a ser objecto de um julgamento na "praça pública" do meu prédio. Os políticos, numa outra escala, vivem e sobrevivem dos "julgamentos na praça pública" ocupando uma boa parte da sua agenda a tentar melhorar a sentença que lhes será aplicada nas próximas eleições.

Quer nós queiramos quer não formam-se constantemente na nossa cabeça opiniões sobre coisas, factos e pessoas com base na informação a que vamos tendo acesso. Sobre os políticos também, claro, já que nos são servidos regularmente nos meios de comunicação (a propósito e a despropósito). É por isso que os escândalos com vertente judicial acabam por ser apenas mais um dado que juntamos a tantos outros já coleccionados sobre uma determinada figura pública, numa espécie de conta-corrente ou "julgamento" em curso. Portanto, ao contrário do que pretendem certos notáveis, estes "julgamentos" não os podemos evitar pela simples razão de que são inevitáveis.

Vejamos então em que medida as regras dos "julgamentos na praça pública" (JPP) diferem daquelas que vigoram num tribunal.
Nos tribunais os cidadãos, presume-se, são todos iguais. Nos nossos JPP diferenciamos o vizinho do empregado e o padre do político. Não esperamos o mesmo de todos eles e sabemos que todos eles têm capacidades diferentes de influenciar as nossas "sentenças".
Os tribunais lidam com informação categorizada e padronizada e só admitem os documentos que passam o crivo de apertados critérios. Nós, nos JPP, lidamos com informação não estruturada, avulsa e caótica cujo fluxo não controlamos.
Os tribunais são geridos por profissionais e com base em regras extremamente rígidas e complexas. Nós improvisamos conforme podemos as nossas próprias regras e temos que fazer os JPP enquanto tentamos equilibrar a nossa própria vida.

Resumindo: se é verdade que não podemos deixar de concluir coisas a partir da informação que nos chega também é verdade que não podemos transformar a nossa vida num tribunal nem ouvir o telejornal com um código processual nas mãos.
Mal estariam os habitantes de Chicago se tivessem que esperar por uma decisão judicial antes de mudar de passeio quando se cruzavam com Al Capone. Os tribunais demoraram muitos anos até conseguir condená-lo.

De tudo o que ficou dito resulta que os objectivos e missões dos tribunais são diferentes daqueles que estão ao alcance dos cidadãos comuns e dos seus JPP.
Os tribunais, com os seus métodos rigorosos, pretendem alcançar a certeza da culpa antes de condenar mesmo que isso demore muitos anos; nós, pobres mortais dos JPP, temos que lidar com a incerteza e a probabilidade para poder chegar a conclusões em tempo útil. Também por causa disso os tribunais aplicam sanções pesadas, que em certos países chegam a custar a vida aos condenados, enquanto que nós, juizes caseiros dos JPP, nos limitamos a venerar ou a embirar com os nossos sentenciados.

O problema das figuras públicas é que, como são conhecidas por muita gente, podem ser objecto de muitos julgamentos simultâneos de que resulte, por exemplo, perder uma eleição. Que lhes sirva ao menos de consolação que os milhões de juízes JPP só influenciaram o resultado das eleições na medida em que chegaram todos às mesmas conclusões e às mesmas sentenças.

Se os "julgamentos na praça pública" são constantes e inevitáveis, se os juízes que aí actuam não podem de modo algum ser considerados profissionais e se se regem por códigos caóticos, como evitar então que daí venham maiores males ao mundo ?

A regra básica deverá ser a de proporcionar a todos os interessados os meios de se expressarem, tendencialmente em igualdade de circunstâncias. Sonegar informação é uma forma de condicionar os "julgamentos na praça pública" tão eficaz como distribuir informação. Por isso a sonegação da informação só deverá acontecer quando estiverem em causa consequências muito graves. Só opiniões diferentes, múltiplas, contrastantes, em confronto, permitirão ao povo, que não é tão estúpido como alguns pensam, separar o trigo do joio.
Todas as tentativas para reduzir a pluralidade das opiniões expressas no espaço público (como por exemplo comprar estações de televisão para correr com vozes críticas) devem portanto ser repudiadas.
Aqueles que enchem o peito para invectivar os "julgamentos na praça pública", mesmo quando bem intencionados, não estão a defender nenhum elevado princípio mas apenas a tentar influenciar também a nossa opinião.

7 comentários:

Vitor M. Trigo disse...

Olá Fernando,
Muito interessante a tua exposição sobre Julgamentos na Praça Pública (JPP) e Julgamentos em Tribunais (JT). Em ambos podem ocorrer injustiças, mas a grande diferença, para mim, é que nos JT o acusado tem oportunidade para se defender e nos JPP não. Nestes, as “acusações sem dono” inviabilizam, na prática, qualquer defesa – a técnica do desgaste do presumível acusado levam-no, por exaustão, à derrota. Peço-te que encares isto em abstracto, embora, obviamente, na actual conjuntura seja difícil não pensar, de imediato, nas acusações que, de forma sistemática, vêm recaindo sobre o PM.
Por isso, não retiro da tua exposição as mesmas conclusões.
Por exemplo:
1. Porque razão se continua a insistir que foi o PM que determinou que a PT tinha de gastar tanto dinheiro para afastar JEM quando afinal, como se verificou, bastava uma indemnização para que ele saísse? Serão os homens do PM assim tão inaptos?
2. Quanto a MMG – não parece normal que uma jornalista (com fortíssimas ligações de interesses com o director da estação, não podemos ignorar), que transforma o que deveria ser um noticiário num tribunal sumário das suas vítimas, sem qualquer hipótese de defesa para estas? Lembras-te da patética reacção de MMG quando Marinho Pinto contestou os impropérios de que estava a ser alvo sem qualquer justificação? E aquelas farsas de conversa com o insuportável VPV, em que ambos se riam do que o outro dizia? Não parece legítimo que a estação interfira quando tamanhas obscenidades vinham ocorrendo de forma sistemática?
3. Ainda sobre MMG – conheces alguma organização que admita que um seu funcionário dê entrevistas acusando o seu próprio conselho de administração de tontos, incapazes, e desconhecedores do negócio onde operam?
4. Porque é que se imputa ao PM o afastamento do JMF do Público, quando é tão pouco claro o que se passou com as alegadas escutas ao PR? E o envolvimento do PR (ou dos seus homens) no caso, porventura ficou esclarecido?
5. A classe dos jornalistas, e seus apoiantes de ocasião, acha normal que um colunista de opinião, aproveite o estatuto por que foi contratado para, em vez de opinar, fazer notícia sobre um “mail que lhe foi endereçado por um senhora, por sinal culta” que diz ter ouvido uma conversa do PM numa mesa ao lado sobre si próprio? Sou do tempo em que se dizia que “senhoras sérias não têm ouvidos”, por isso concluo que a dita senhora pode ser culta mas de séria deve ter pouco.
6. Sempre me habituei a chamar ao CM o Correio da Manha (sem til). Muita gente assim o designava tal a falta de factualidade dos seus conteúdos. Não achas que, mais tarde ou mais cedo, algo teria de mudar?
O PM tem alguma implicação nesta tramóia? Não sei. Mas se tem, então que se julguem os factos, e que se afastem as insinuações e os boatos. Quaisquer que sejam as consequências.
É importantíssimo, indispensável mesmo, que exista liberdade de opinião. Mas que ela não sirva de suporte para fins inconfessáveis. Os jornalistas não podem faltar à verdade, transformar notícias em opiniões (para isso existem espaços próprios, com direito ao contraditório). Podem, e devem alguns que têm condições para tal, fazer investigação. Mas investigação não é espionagem, nem calhandrice (segundo o Priberam, e para evitar mal-entendidos, Calhandrice = Atitude de quem gosta de intrigas ou de boatos. = BISBILHOTICE, COSCUVILHICE, MEXERIQUICE).
Foi por isto que não aceitei bem a parte final do teu texto. Toda a exposição merecia outra objectividade, a meu ver claro.

Anónimo disse...

Simplista, é o mínimo que se poder dizer.

F. Penim Redondo disse...

Vitor, só logo ao fim da tarde vou ter tempo para te responder.
Não perdes pela demora.
Um abraço

F. Penim Redondo disse...

Caro Vitor,

como sabes o meu texto tem por objectivo:

1.Demonstrar a inevitabilidade dos JPP (ex: seja qual for a quantidade e a qualidade da informação de que dispomos não podemos deixar de ter opinião sobre um político quando vamos votar)

2.Levar as pessoas a tomar consciência da diferença entre os JPP e os JT, para não pedirem a um aquilo que só o outro pode dar (ex: não podemos depender dos tribunais para votar pois eles têm um "ciclo de vida" que pode estender-se por várias legislaturas)

Em relação aos dois pontos acima mencionados encontro no teu comentário o seguinte:

'a grande diferença, para mim, é que nos JT o acusado tem oportunidade para se defender e nos JPP não. Nestes, as “acusações sem dono” inviabilizam, na prática, qualquer defesa – a técnica do desgaste do presumível acusado levam-no, por exaustão, à derrota.'.

Lamento não poder concordar.

A capacidade de defesa num JPP depende do acesso da "vítima" aos meios de comunicação social e não tanto de haver autoria conhecida para a acusação.

Tomando a "vítima" Sócrates, como mero exemplo:
Não pode dizer-se que ele não tem acesso à comunicação social para se defender, se e quando o entender, mesmo em "prime time".
Mas a detecção de "fortes indícios de atentado contra o Estado de Direito" seria muito mais fácil de combater se, em vez de ter sido escrita por um juiz, tivesse um autor desconhecido.

O resto do teu texto é uma legítima intervenção no JPP em curso que tem como arguido o José Sócrates.
Entendes actuar como advogado de defesa e estás no teu direito. Só não deves nunca esquecer que a tua opinião é apenas uma das opiniões possíveis, e legítimas, sobre a matéria.
Por isso, porque em democracia todas as opiniões são legítimas, é que devemos contestá-las (de preferência sem ser pela destruição da personalidade dos autores) e não silenciá-las.

Um abraço

Saudoso disse...

E tudo começou naquelas "escutas a Belém", que o PR prometeu esclarecer depois das legislativas mas depois negou ter falado nisso no já célebre "discurso de admissão" ...

Depois continuou com o início do Face Oculto, quando soubémos que afinal quem andava mesmo a ser escutado era o PM ...

Afinal o PM não podia ser apanhado pelas escutas à sua própria pessoa, mas havia outras escutas em que terceiros o incriminam sem sombra de dúvidas, e o PM parece estar em óbvias dificuldades para se livrar desta ...

E ainda dizem que o PSD anda à deriva! Não há partido mais eficiente no manejo deste jogo de sombras (lembram-se do processo Casa Pia?).

E nada disto precisa de teorizações sobre JPP ou JT ... e o JMF, a MMG e o JEM ainda vão subir mais na vida, porque os favores pagam-se.

Vitor M. Trigo disse...

Bom, reconheço que o erro foi meu.
Nalguns círculos quando não se concorda é porque se está completamente enganado. Pensei que neste não fosse assim.
Tentei dizer o que penso aproveitando o texto original.
Com o meu comentário não quis defender nem atacar ninguém, muito menos Sócrates que não conheço, com quem não simpatizo, nunca votei nele, nem penso vir a votar. A escolha foi dos Portugueses, e eu aceito.
Apenas ilustrar, com exemplos e figuras, as dúvidas que tenho sobre algumas acusações e acusadores (todas pessoas altamente privilegiadas e com extensíssimo acesso aos media)
Agora, sinceramente, do que não esta à espera era de estilo coelhal – “não perdes pela demora” lembrou-me a célebre “quem se mete com o PS leva”.
Mas como o debate de pontos de vista parece não interessar, e não estou motivado para estéreis confrontos pessoais, fico-me por aqui.
Um forte abraço do teu amigo, VMT.

F. Penim Redondo disse...

Vitor,

acho que estás um bocado stressado e não consigo perceber porquê.
Levas tudo a mal e interpretas tudo no pior sentido.
Quando escrevi "não perdes pela demora" eu estava a sorrir e a minha intenção era brincar contigo para desdramatizar.

Fora de brincadeiras, estou a ficar preocupado contigo. Não vejo razão alguma para fazeres destas discordâncias questões pessoais.
Não arruines a tua saúde por tão pouco.
Talvez fosse melhor afastares-te durante algum tempo destes bate-boca pois não parecem estar a dar-te qualquer gozo, antes pelo contrário.
Pensava que me conhecias melhor mas é verdade que se passou muito tempo.
Um abraço.