quarta-feira, abril 30, 2008

As armadilhas do gratuito

O futuro digital radioso
Público, 29.04.2008, Desidério Murcho


Chris Anderson, editor-chefe da revista Wired, publicou recentemente nesta revista um excerto do seu novo livro, Free, a publicar em 2009 pela Hyperion. Nesse artigo, cujo título pode ser traduzido por Gratuito! Porque 0,00? é o futuro dos negócios, Anderson fala dos diferentes tipos de negócios digitais rentáveis.
Dado ser tão fácil copiar e distribuir músicas, livros, etc., na Internet, e dada a mentalidade que se instalou de que tudo na Internet é gratuito, um negócio digital só é rentável quando temos uma carteira gigantesca de clientes, dos quais cerca de um por cento pagam o serviço. É o que acontece com serviços como o Flickr e outros: é quase tudo gratuito, mas se quisermos mais umas funcionalidades pagamos uma ninharia anual. E isso é suficiente para sustentar o negócio - desde que esse serviço atinja milhões de pessoas.
É por isso que o futuro digital não é radioso. Um músico, escritor ou engenheiro de software só consegue tornar o seu produto rentável caso seja usado por milhões de pessoas - para que cerca de um por cento delas pague o suficiente para esse criador viver. Só é possível pensar que isto é um futuro radioso quando se pensa que o trabalho criativo é gratuito. Mas o trabalho criativo não é gratuito, e quanto mais sofisticado for, quantas mais horas e talento requer, mais caro é. A ideia de que o freeware é gratuito, por exemplo, é ilusória: quem o paga, paradoxalmente, é quem o faz - e quem ganha com isso é quem o usa. É o mundo às avessas.
Outro modelo do nosso futuro digital é na realidade bem velho: é apenas o triste conceito da televisão aberta. Na televisão aberta, o consumidor não paga directamente os filmes, notícias e documentários que consome. Paga indirectamente, comprando produtos que são mais caros para poderem ser publicitados na televisão, e são esses anunciantes que pagam directamente o que o consumidor tem a falsa impressão de consumir gratuitamente. O gratuito, claro, sai caro. Como os anunciantes estão interessados em atingir o maior número possível de consumidores, impera na televisão aberta o populismo. A Internet está a ficar cada vez mais igual à televisão aberta, precisamente porque vive da publicidade e a publicidade vive da quantidade bruta de pessoas que a consomem.
O nosso presente digital é feito de grandes companhias a ganhar muito dinheiro à custa da frivolidade populista e da exploração de criadores talentosos que tornam a Internet interessante mas que vêem o dinheiro passar ao lado. Como pode alguém pensar que este mundo é maravilhoso? Bem, para o director da Wikipédia, por exemplo, é realmente maravilhoso. Esta enciclopédia é feita com o trabalho gratuito de muitas pessoas. Quem quiser, pode fazer donativos. E há sempre quem faça - os tais cerca de um por cento. Mas precisamente porque a Wikipédia é gratuita, todo esse dinheiro vai para o director, advogados e secretárias - mas não para quem realmente escreve a Wikipédia. É este o verdadeiro rosto da nova economia digital: escravatura de cara alegre.

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Este interessante texto passou um bocado ao lado da nossa blogosfera, mais preocupada que está em seguir o rançoso dia-a-dia da vida política. Trata de questões importantes como o significado e o valor do trabalho criativo e também das negociatas que se fazem à sobra dos aparentemente bem intencionados fornecimentos gratuitos.

Eu até acho que o nosso sentido crítico devia ser estendido a muitos outros domínios onde as lógicas do zero, ou do preço subsidiado, funcionam tais como: as várias "tolerâncias zero", os "zero acidente", os "zero calorias", o "software livre" e os serviços "gratuitos" prestados por empresas ou pelo Estado Social.

O método consiste em perguntar sempre: (1) quem usa realmente essas gratuitidades ? (2) quem é que acaba por pagá-las ? (3) quem é que enriquece pelo facto de elas existirem ?

6 comentários:

Fernando Vasconcelos disse...

São boas perguntas efectivamente. Nas palavras do César das Neves: Não há almoços grátis ...
Mas será mesmo que não existe agora mais controlo para o trabalho criativo do que antes? Afinal de contas o meio electrónico apenas desintermediou ...

F. Penim Redondo disse...

Eu tenho sempre preferido "trabalho não repetitivo" pois trabalho criativo está muito ligado à actividade artística. O trabalho "não repetitivo" parte da informação para gerar um resultado que não pode ser garantido à partida.
Na sociedade actual este tipo de trabalho é cada vez mais necessário até porque o outro, o repetitivo, é cada vez mais assegurado por vários tipos de automatos.
O problema é que, como eu disse, ele tem resultados imprevisíveis e é portanto necessário inventar mecanismos que garantam a rentabildade apesar dessa imprevisibilidade dos resultados.
A grande questão é a quem favorecem esses mecanismis: aos que produzem ou aos que gerem a distribuição dos conteúdos ?
Talvez eu tenha sido demasiado confuso...

Desidério Murcho disse...

Caro Fernando

Muito obrigado pelo seu destaque e pelas suas palavras.

LdS disse...

A introdução de conceitos como "objectivo" e "previsibilidade de êxito" tem sido ensaiadas em diversos casos, pese embora a componente subjectiva que sempre acompanha a sua avaliação. Do lado dos que produzem a repetição periódica dessas avaliações é útil; do lado dos que gerem é desejável, mas pode conduzir a efeitos perversos. As tentativas de contorno forçado destas situações deram já lugar, inclusive no campo científico,que seria de esperar "aséptico", a quadros bem desagradáveis. Porque, num mundo técnico cada vez mais onerosamente equipado e objectivamente exigente, tanto os que produzem como os que gerem a distribuição dos conteúdos estão cada vez mais na mão (ou no controle) dos que detém e proporcionam os meios - e dessa alocação de meios esperam resultados unicamente expressos nas mesmas unidades.

F. Penim Redondo disse...

Caro LdS,

eu não falo de "previsibilidade de exito", que é mais complicado, mas de "garantia de resultado".
Um operário que acciona uma prensa obtém num dado intervalo de tempo o mesmo resultado, dentro de uma margem de tolerância conhecida.
Um engenheiro envolvido no processo de concepção de um novo modelo de câmara fotográfica, por exemplo, não tem à partida qualquer garantia quanto ao resultado do seu trabalho no fim de um dado período de tempo.

Concordo consigo que estamos todos dependentes de certos detentores de infraestruturas cuja realização exige volumes de capital elevados.

Em muitas situações a dependência relativamente a esses empórios baseia-se em exclusivos e monopólios que lhes são concedidos pelas autoridades políticas, o que podia não acontecer.

LAH1954 disse...

Certo, mas com um pequeno distinguo: a garantia de resultado é uma avaliação à partida; a previsibilidade de êxito é uma avaliação gradual, em curso. e portanto, podendo ser muito reduzida à partida, as avaliações sucessivas vão-na aproximando da sua estimativa actual. No primeiro caso temos um diagrama rectangular; no segundo um traçado evolutivo (assimptótico ou não. A avaliação sucessiva dessa grandeza no trabalho não repetitivo - e quem melhor que o condutor desse trabalho a poderá fazer? - é que pode induzir os defeitos perversos da sobreavaliação (por vezes forçada)ou da recusa (por vezes errada).