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"Rock 'n' Roll", peça estreada em Junho de 2006 no Royal Court Theatre em Londres e agora em cena no Teatro Aberto. Os anos de 1968 a 1990, do movimento estudantil à queda do Muro de Berlim, são apresentados de uma dupla perspectiva: a partir de Praga, onde uma banda de rock 'n' roll se torna um símbolo de resistência ao "regime socialista", e a partir de Cambridge, onde o amor e a morte marcam a vida de três gerações da família de um filósofo marxista.
Antes de mais é importante frisar que esta interessantíssima peça de Tom Stoppard se integra num movimento cada vez mais notório de regresso aos anos finais da década de 60 como era mítica que podia ter aberto a porta a tudo aquilo que "a esquerda" gostava de ter alcançado (ver o blog da minha amiga Joana). Como alguém que tivesse escolhido a alternativa errada numa bifurcação e, muitos quilómetros depois, resolvesse voltar para trás para poder optar correctamente.
Este retorno ao passado, mais do que a preservação de uma memória respeitável que pensa ser, é um sinal da falta de perspectivas à esquerda. O texto da peça ilustra aliás muito bem a crise em que a esquerda actual se encontra.
Ao longo das cenas que decorrem no meio académico, intelectual e politizado, é patente a confusão permanente entre os vários níveis de problemas que afligem os personagens: as questões teóricas da transição do capitalismo para o socialismo, as pulsões libertárias e de luta contra a opressão, os dramas pessoais e as modas comportamentais e de "life style". Neste novelo é realmente difícil encontrar um nexo. Cada um dos níveis tem significados muito diferentes e a sua abordagem "ao molho" não ajuda nada a sua compreensão. Vejamos porquê:
Em termos marxistas a transição para um modo de produção socialista, se e quando se verificar, é um processo longo de transformação das tecnologias da produção, das relações sociais e dos comportamentos individuais. Os modos de produção não se subordinam a tipos específicos de regime ou de sistema político; como se sabe o capitalismo vigente funciona tanto em democracias como em estados opressivos ou confessionais, em regiões dominadas por monarquias ou por senhores da guerra e mesmo em estados que se dizem de inspiração socialista.
Julgo ser hoje claro para muita gente que os "países do leste" não desenvolveram um modo de produção alternativo constituindo, isso sim, regimes e fórmulas políticas que pretendiam impor coercivamente uma visão de futuro a realizar, cuja bondade não cabe agora discutir, mas que depois se transformaram em burocracias cada vez mais fechadas sobre si mesmas. Hoje é possível ver como no período retratado em "Rock 'n' Roll", erroneamente e de forma inconsciente, se fazia uma correspondência biunívoca entre os regimes políticos do leste e o socialismo (é nesse contexto que o Professor Max expressa a sua incapacidade para compreender as razões do desmoronamento do "sistema socialista ").
Mas o mais grave é que ainda hoje, no século XXI, a maior parte dos militantes de esquerda estão convencidos de que para "implantar o socialismo" basta mudar o regime ou mesmo o governo de um país.
A luta pela liberdade e pela libertação nacional pode acontecer, e tem acontecido, contra os mais variadas tipos de potências opressoras. Não é necessáriamente anti-comunista (foi até sob a bandeira comunista que muitos países se formaram ou libertaram), assim como não está necessáriamente associada a modas e estilos de vida como o consumo de drogas ou a música rock. Em "Rock 'n' Roll", da maneira como os níveis estão misturados durante a peça, pode-se ser levado a pensar que sim.
A transformação das convicções e preferências em resultado das modas sociais (ao nível da indumentária, da música, dos consumos) pode pôr em causa sistemas ou regimes políticos mas, pelas razões já enunciadas, tal não se verifica em relação aos modos de produção. Toda a fúria libertária dos anos 60 foi, por exemplo, perfeitamente digerida pelo sistema capitalista embora tenha cavado muito fundo nas práticas sociais.
Por isso recomendaria prudência a todos aqueles que querem ressuscitar a "década de ouro" pois não será numa nova transformação das "mentalidades" que encontrarão a chave que procuram.
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A peça é servida por um conjunto de actores principais com uma excelente prestação com destaque para uma impressionante Beatriz Batarda.
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Autor: Tom Stoppard
Versão: João Lourenço, Vera San Payo de Lemos
Dramaturgia: Vera San Payo de Lemos
Cenário: João Lourenço; Henrique Cayatte
Figurinos: Maria Gonzaga
Luz: João Lourenço, Melim Teixeira
Encenação: João Lourenço
Interpretação: Afonso Pimentel; André Patrício; Beatriz Batarda; Carlos Gomes, Francisco Pestana, Jorge Gonçalves; Kjersti Kaasa; Márcia Leal; Paulo Oom; Paulo Pires; Rui Mendes; Sara Cipriano; Sílvia Rizzo;
4 comentários:
É isso mesmo! Só por curiosidade: o meu post sobre a organização de valores na cultura do povo português Mais perto do que é importante..., toca num dos multiplos aspectos desta questão.
Rosa Penim Redondo
Se julgas que vou ver a peça só para perceber por que é que puseste um «link» para o meu «post» sobre os Maios, estás muito enganado..
Até logo.
Vai ver a peça, que vale a pena, pelo menos para fingir que não me percebeste. Ah! ah! ah!...
Camaradas e amigos,
O blog do Carapau inicia-se!
E assim mais um blog junta-se à galáxia dos Blogs. Esperemos que mais este grão de poeira venha a causar mais do que alguns espirros…
http://carapau.wordpress.com/
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