O cão pisteiro português
Meu caro Ministro da Justiça
Como sabe, a PJ contratou um cão pisteiro para detectar mais facilmente o odor a cadáver. E, na primeira semana, a contratação foi totalmente bem sucedida. O Bóbi conseguiu não só encontrar 27 cheiros a cadáver em criminosos diversos, como 31 cheiros a cadáver político na beca doutoral do prof. Marcelo, 457 indícios na estátua do Marquês de Pombal e, pelo menos, um falecido de tédio, que terá passado à condição de cadáver adiado depois de ter contactado o ministro Nunes Correia e um cadáver exquisito, cuja complexidade cultural é demasiada para lhe explicar o que é.
Na segunda semana, o cão pisteiro afirmou que estava farto de viver na sede da PJ, na Gomes Freire, como se fosse um detido nos calabouços e exigiu um pequeno apartamento com ar condicionado, televisão de plasma e uma aparelhagem mp3. Apesar de tudo ainda farejou vagamente um ou dois cadáveres bancários na farpela do eng.º Jardim Gonçalves, 100 mortos de indignação num discurso do dr. Alberto João Jardim e resolveu seis crimes considerados insolúveis, além de passear com insistência olfactiva entre as redacções do «24 Horas», do «Correio da Manhã» e do «Diário de Notícias», onde o cheiro de cadáver tem sido intenso esta época.
Na terceira semana, o Bóbi confessou que não tinha condições e aderiu a uma jornada de protesto da CGTP. Não obteve mais do que um ou dois cheirinhos e num deles nem soube dizer se era cadáver ou bagaço do mau.
Na quarta semana, o cão pisteiro português ameaçou fazer greve, disse que o Governo era incompetente e responsabilizou o ministro da Administração Interna pelo fracasso da política de segurança (além de ter contado uma anedota cifrada sobre o senhor primeiro-ministro, a qual foi devidamente anotada e está neste momento a ser descodificada).
Na quinta semana, o Bóbi passou a entrar, não às nove, como era seu hábito, mas por volta das 10h30 e passava a manhã toda a ler a imprensa, nomeadamente a gratuita, que aproveitava depois para as suas necessidades fisiológicas. Na hora do almoço demorava uma eternidade e quando voltava queixava-se de não ter uma viatura com ar condicionado à disposição. Não farejou um único cadáver de jeito, ainda que tenha descoberto as ossadas de Luís de Camões num local de que já nem o professor José Hermano Saraiva se lembrava.
Na sexta semana, o cão meteu baixa de três dias e decidiu faltar outros dois por assistência à família, embora ninguém saiba (e ele faça disso mistério) se tem família. Farejou um cadáver, mas quando o seguiram, os agentes verificaram que estavam no Cemitério dos Prazeres.
Na sétima semana, o director da PJ decidiu colocá-lo no quadro de supranumerários, facto a que ele resistiu dizendo que com 60 por cento do salário não pode comer o salmão indispensável ao seu apurado faro.
Parece que agora é comentador de uma televisão.
Aqui fica o relatório que me pediu.
Receba um abraço do seu
Comendador Marques de Correia
Expresso, 15 Setembro 2007
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1 comentário:
Na verdade é uma prosa com um enorme sentido de humor.Parabéns a quem a escreveu!
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