Conheci o Carlos Quintas em 1993 e convivi profissionalmente com ele durante sete anos. As nossas empresas estavam ligadas por participações no capital e funcionámos no mesmo edifíco, em andares adjacentes, durante alguns anos.
As nossas relações foram sempre cordiais e amistosas e eu pensava que o conhecia bem. O Carlos Quintas, que eu admirava como empresário, era dotado de uma objectividade impiedosa, uma auto-estima que roçava a arrogância e uma voracidade que levara a sua empresa a “conquistar terreno” desde a Austrália até ao Brasil, passando pelo Japão.
Se alguém me dissesse no princípio do ano 2000 que o Carlos Quintas iria mergulhar durante anos num retiro budista de meditação eu talvez largasse uma gargalhada.
No entanto foi exactamente isso que aconteceu.
Vejam o que ele disse sobre essa experiência nas páginas da Visão de ontem. Quando o encontrar vou ver se percebo melhor...
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Chegou de fato e gravata, num BMW azul escuro e com uma pasta na mão.
Carlos Quintas, 47 anos, regressou, recentemente, de um retiro budista no Sul de França, onde esteve em isolamento durante quatro anos. Mas, assim, à primeira vista, parece que nunca deixou de ser o presidente executivo da Altitude Software, uma empresa de novas tecnologias (criadora de software inovador para call centers) que se tornou num caso de sucesso internacional. A entrevista decorre no edifício Mozart, uma das torres junto do zoo de Lisboa, de entrada ampla e porteiro de serviço, onde vive, com a mulher e os dois filhos. No interior do apartamento, com vista sobre o eixo Norte-Sul, poucas manifestações existem da sua fé budista. As excepções são o colchão usado para meditar, enrolado no chão, e a estátua de uma divindade, numa das prateleiras da sala, a um canto.
Longe vai 8 de Novembro de 2,000, dia em que a Altitude Software estava prestes a ser cotada na bolsa de Amesterdão e Carlos Quintas a dois passos de se tornar multibi-lionário.
A Oferta Pública Inicial da promissora start-up realizava-se com perspectivas de valorização até 460 milhões de euros e, passado um ano, de 2 mil milhões. Só que, no dia da estreia no mercado de capitais, rebentou a bolha especulativa da era da Internet – a bolsa de Amesterdão caiu 5 por cento. Por essa altura, já os investidores institucionais tinham desistido da operação.
«Não me afectou grande coisa - sabia que a empresa ia ficar bem. Mas não era multibilionário, como previa», diz Carlos Quintas. A empresa, muito inovadora mas com contas desequilibradas, acabaria por ser vendida a Gastão Taveira, em 2003. «As pessoas julgam que o meu retiro se deveu às dificuldades da empresa. Na verdade, foram processos independentes mas paralelos. Já antes estava a tentar livrar-me da gestão diária da companhia, queria deixar de ser tão executivo. A venda acabou por me libertar.»
0 MOMENTO DA VIRAGEM
Á vida confortável que levava não conseguiu apaziguar as inquietações filosófico-religiosas que lhe inundavam o espírito. «Nunca fui do tipo de trabalhar 24horas por dia, não andava sempre estressado, fazia coisas de que gostava.» Esqui na neve e na água eram actividades a que dedicava bastante do seu tempo. Foi várias vezes campeão nacional de esqui aquático, na sua categoria, e atingiu um segundo lugar num campeonato do mundo. «Não é nada de especial, somos muito poucos, nesta modalidade», desvaloriza.
Qual o sentido da vida? O catolicismo com que cresceu não oferecia respostas satisfatórias. «Desenvolvi um espírito científico, era materialista.» Todavia, também a ciência acabou por se esgotar. «Há coisas que não se conseguem explicar por esse modelo, como a mecânica quântica», diz o antigo gestor, nascido em Olhão, no Algarve, mas criado em Setúbal.
«Tinha tudo o que queria. Mas, mesmo que não quisesse mais, podia sempre perder o que já conseguira. Tudo é temporário.
Perguntava-me: é inevitável ou há solução? Quanto mais temos, mais sofremos. Aprendi que a felicidade e o sofrimento são estados de espírito, percepções. Uma mente livre contribui para se atingir o estado de felicidade. Toda a gente pode chegar lá.»
O primeiro contacto com o budismo surgiu quando o director da filial dos EUA da companhia que geria lhe ofereceu o livro The Ari of Happiness, da autoria do Dalai Lama. Mas o grande momento de viragem aconteceu quando viu, pela primeira vez, em pessoa, o líder budista. Foi em Lisboa, em 2001 numa conferência realizada pela reitoria da Universidade de Lisboa.
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O ex-gestor, formado em Engenharia Electrotécnica pelo Instituto Superior Técnico, com 18 valores, ainda não sabe o que vai fazer profissionalmente. Mas desmistifica a ideia de estar afastado do mundo. «Não vou ser um alien, um eremita...», esclarece. As capacidades que, entretanto, desenvolveu, de concentração e, até, de melhor aproveitamento do tempo, tornam-no, diz, «mais eficiente». A prioridade, porém, é cultivar a generosidade e fazer bem aos outros. E não porque se considere especialmente bom em comparação com os restantes mortais - aliás, o budismo ensina que só pensando na felicidade dos outros se alcança a felicidade própria. É um «facto inegável», corroborado pela experiência: «Os egoístas inteligentes são os mais altruístas...»
Os princípios budistas têm sido aplicados àgestão de empresas. Um dos casos públicos de sucesso é o do americano Michael Roach, da Andin International Diamond Company, uma companhia de comércio de pedras preciosas, Michael escreveu The Diamond Cut-ter, no qual relata como a adopção dos princípios budistas conduz à prosperidade.
Carlos Quintas ocupa, agora, parte do seu tempo a organizar a visita do Dalai Lama a Portugal. Para os seguidores de Buda (que não é uma pessoa, mas um estado da mente) será sempre um desafio equilibrar actividade e meditação. Mas mesmo esta, ao que parece, consegue conjugar-se com outras ocupações. Carlos Quintas diz que, ao longo desta entrevista, esteve sempre a meditar. Não vale a pena queimar neurónios a pensar em como isso é possível. São coisas para budista entender.
Carla Alves Ribeiro, Visão, 6 de Setembro 2007
MEDITAÇÃO DE SEXTA: «A realidade é muito abusadora»
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« (...) Sem querer retirar gravidade ao momento que vivemos – falo, claro,
abstractamente, já que por aqui o tema da eleição de Trump não terá tirado
o s...
Há 2 horas
2 comentários:
Tinha lido a Visão, reconheci o nome e vagamente a cara do CQ, mas não o relacionei de todo contigo.
É de facto espantoso. Percebo quem deixa religiões («et pour cause»), mas tenho grande dificuldade em entender estas conversões esotéricas. Não consigo deixar de achar que não são mais do que alternativas ao divã do psicanalista. Problema meu, talvez...
A quem interessa dividir a China e atiçar conflitos entre suas nacionalidades?
O jornalista francês Hubert Beuve-Mery, fundador do Le Monde, costumava insistir que “a missão do jornalista é saber e dizer o máximo possível”. Ainda há jornais e jornalistas que seguem esse preceito. Mas cresce o número dos que substituem qualquer esforço investigador pela reprodução acomodada de versões unilaterais e distorcidas dos acontecimentos.
A controvérsia sobre o Tibete é um bom exemplo. Livros, reportagens e documentários repetem, monocordiamente, os relatos e as acusações difundidas pelos separatistas tibetanos. Não entrevistam as autoridades atuais da região, nem os monges patriotas que apoiam a unidade da China. Não recorrem às informações e aos documentos oferecidos pelo governo central do país. Não consultam especialistas independentes. Se o fizessem, seria obrigados a reconhecer que a história da China, do Tibete e de suas relações mútuas é muito diferente da propagada pelos separatistas.
A polêmica envolve três questões básicas. Primeira: o Tibete é um país independente, invadido e ocupado pelos comunistas, à frente do Exército Popular, ou faz parte da China há 700 anos, tendo os comunistas apenas cumprido o dever de libertar e reunificar o conjunto do país? Segunda: antes de 1950, o Tibete era uma terra pacífica e feliz, governada por monges sábios e desprendidos como a mítica Shangri-la do novelista britânico James Hilton, ou penava sob um regime teocrático-feudal, atrasado e cruel? Por último, o que é melhor para as nacionalidades chinesas e para os povos do mundo nas vésperas do século XXI: a divisão e o dilaceramento da China, ou a preservação de sua unidade estatal e o progresso conjunto de suas nacionalidades?
O teto do mundo
A República Popular da China é um país enorme, formado por 23 províncias, cinco regiões autônomas, uma região especial, Hong Kong, e três municipalidades subordinadas diretamente ao governo central. O Tibete é uma das regiões autônomas. Cobre uma superfície de 1 milhão e 200 mil quilômetros quadrados, aproximadamente a oitava parte do território chinês, e abrange a capital, Lhasa, seis prefeituras e 76 distritos.
Localizado no sudoeste da China, o Tibete limita-se ao norte com a Região Autônoma de Xinjiang, ao nordeste com a província de Qinghai, ao leste com a de Sichuan, ao sudeste com a de Yunnan, e ao sul e ao oeste com os seguintes países, no sentido horário: Myanma ( antiga Birmânia), Butão, Sikkim ( principado de origem tibetana, anexado pela Índia em 1974), Nepal e Índia.
O Tibete ocupa a maior parte do planalto que leva seu nome, o mais alto de Terra, com uma elevação média de 4 mil metros. É, por isso, apelidado de Teto do Mundo. É praticamente cercado por cordilheiras: ao norte, a de Kunlun; ao leste, a de Tangula; ao sul e ao oeste, a do Himalaia. Nesta última, na fronteira entre o Tibete, na China, e o Nepal, ergue-se a montanha mais alta do planeta, com 8.848 metros, a Qomolangma Feng, ou “mãe sagrada das águas”, conhecida no Ocidente como monte Everest. No único intervalo entre as cordilheiras, no limite com a província de Sichuan, o Tibete é separado pelo rio Jinsha.
Aliás, os rios mais importantes da Ásia nascem no planalto tibetano: para o leste, os rios Amarelo ( Huang-ho) e Azul ( Yangtze Kiang), os principais da China; para o sul, o Mekong, que desemboca na costa do Vietnã, e o Yarlung Zangbo, que passa a chamar-se Brahmaputra na Índia e deságua no golfo de Bengala; para o oeste, o Indo e o Ganges, os principais da Índia.
É uma região rica em recursos naturais. Conta com enorme variedade de aves e animais e com mais de 5.700 espécies vegetais, inclusive plantas medicinais de grande renome, base da medicina tibetana tradicional. Já foram localizadas jazidas de 70 tipos de minerais e os recursos geotérmicos são abundantes, chegando a temperatura da água em alguns poços a 92 graus C.
Por sua diversidade, o Tibete pode ser dividido em três zonas naturais. A parte norte, onde se concentra a criação extensiva de iaques e ovelhas, tem altitude média de 4.500 metros, clima frio e seco, extensas pradarias e numerosos lagos, como o famoso Nam Co, o segundo maior lago salgado da China. A área oriental é constituída por uma série de montanhas elevadas e vales profundos, com a altitude variando entre 2 mil e 6 mil metros. É a zona mais inóspita. A neve perpétua nos cumes de suas montanhas é responsável pelo outro apelido, atribuído ao Tibete, de Terra das Neves. Nos vales do sul, cortados pelos rios Yarlung Zangbo e afluentes, a altitude média é inferior a 4 mil metros, o clima é temperado, a precipitação pluvial é copiosa e a vegetação arbórea, exuberante. Nessa área é que se concentram a população e as atividades agrícolas. É, por isso, conhecida como o celeiro do planalto.
Apesar da altitude, do ar rarefeito e do clima severo, o planalto tibetano começou a ser povoado no período neolítico. Por essa época, uma população já considerável se espalhava nas planícies centrais da China, entre os rios Amarelo e Yangtze.
China, um país milenar e multinacional
Para deslindar a controvérsia sobre o Tibete, é preciso entender a formação histórica da China. Trata-se de um país milenar, o único com aproximadamente 4 mil anos de história contínua, e também multinacional, integrado por 56 nacionalidades. A China não é, portanto, uma construção exclusiva da nacionalidade han, a majoritária. É um produto histórico da luta e do trabalho conjunto de todas as nacionalidades que a integram. Com uma trajetória tão longa, a China não podia escapar aos conflitos entre suas dinastias, nacionalidades e classes. Por mais de uma vez, foi unificada, dividida e reunificada. Se a convergência prevaleceu e se as nacionalidades chinesas estreitaram seus vínculos ao longo dos séculos, é porque perceberam, diante das ameaças exteriores, que só garantiriam sua independência comum e o desenvolvimento de suas economias e de suas culturas se aprofundassem as relações de unidade e cooperação.
Os vínculos entre as nacionalidades han e tibetana, por exemplo, remontam a tempos muito antigos. Uma prova indelével se encontra no idioma das duas nacionalidades: pertencem à mesma família lingüística, significativamente classificada como sino-tibetana. O próprio budismo, que iria marcar tão profundamente a cultura tibetana, foi introduzido na região pelo norte da Índia e pelo Nepal, mas também pela Mongólia e pela China central. No século VII, quando as tribos do planalto tibetano formaram seu primeiro Estado unificado, o reino de Tubo, dois de seus soberanos casaram-se com princesas de origem han, firmaram uma aliança política com a dinastia Tang, das planícies centrais da China, e intensificaram o intercâmbio econômico e cultural entre as duas nacionalidades.
O reino de Tubo desapareceu em meados do século IX, quando o rei Langdama foi assassinado por fanáticos religiosos. Durante 400 anos, o planalto tibetano foi sacudido por separatismos e por guerras, com principados e mosteiros lutando entre si. Por coincidência, na mesma época, as planícies centrais e o sul da China eram conflagrados por disputas dinásticas intermináveis. Ainda assim, o intercâmbio entre as duas nacionalidades não se interrompeu, desenvolvendo-se inclusive uma nova modalidade de comércio, a troca de chá chinês por cavalos tibetanos. E quando, no século XIII, o mongol Kublai Khan reunificou a China e fundou a nova e poderosa dinastia Yuan, o Tibete foi incorporado ao Império do Meio como uma de suas províncias. O italiano Marco Polo, que visitou a corte de Kublai Khan e registrou as observações de sua viagem, descreve o Tibete como uma das 12 províncias do império.
O Tibete, parte da China
Desde então, há 700 anos, o Tibete faz parte da China. Assim permaneceu nas dinastias Ming e Qing, que se seguiram. Quando a República foi proclamada, seu primeiro presidente Sun Yat-sen, declarou no discurso de posse em primeiro de janeiro de 1912: “O fundamento desta República baseia-se no povo, que integra todas as zonas hans, manchus, mongóis, huis e tibetanas num único Estado”. A República Popular, proclamada em 1949, estendeu o reconhecimento às demais nacionalidades.
A subordinação do Tibete aos sucessivos governos da China, desde o século XIII, evidencia-se na presença de representantes do poder central em Lhasa; na nomeação e julgamento de funcionários locais; no envio de tropas para defender as fronteiras e manter a ordem interna; na condução centralizada das relações exteriores; na imposição de leis, decretos e regulamentos; na realização de censos demográficos; na cobrança de tributos; na redefinição de órgãos e divisões administrativas internas. É importante ressaltar também que, desde o século XIII, nenhum país reconhece o Tibete como um Estado separado da China.
Outra prova da incorporação do Tibete à China é a participação de delegados tibetanos em órgãos executivos e legislativos do poder central, desde a dinastia Yuan. O próprio entrelaçamento entre o poder político e o poder religioso no Tibete nasceu com sua integração na China, quando Kublai Khan, para facilitar a pacificação do planalto tibetano, aliou-se com a influente seita budista de Sagya, tendo o cuidado, no entanto, de repartir cargos e títulos equitativamente entre lamas e nobres leigos. Durante a dinastia Ming, cresceu a influência da seita Kargyu, ou Branca, sobrepujada durante a dinastia Qing pela seita Gelug, ou Amarela, quando os abades dos mosteiros de Drepung, em Lhasa, e de Trashilhunpo, em Xigaze, desta seita, tiveram seus títulos e atribuições de Dalai-Lama e de Panchen-Erdeni confirmados pela corte imperial. Finalmente, em meados do século XVIII, a corte Qing determinou que o sétimo Dalai-Lama assumisse a liderança do governo local do Tibete. Porque o Dalai-Lama e o Panchen-Erdeni acumulam funções religiosas e políticas, a escolha de seus sucessores passou a depender de confirmação final pelo governo central da China. A escolha e a entronização do atual Dalai-Lama foram confirmadas pelo governo nacionalista da República da China em 1940.
É sabido que a China passou por fases de divisão e enfraquecimento do poder central, quando os governos locais, não só o do Tibete, adquiriam grande autonomia, muitas vezes estimulados por potências estrangeiras, interessadas em arrebatar fatias do território chinês. Foi assim que a Rússia czarista ocupou uma parte da Mongólia e a dividiu em Mongólia Exterior e Mongólia Interior. Ou que o Japão invadiu a Mandchúria e tentou restabelecer, sob seu controle, a dinastia Manchu dos Qing, derrubada pelo movimento republicano. Da mesma forma, a Grã-Bretanha, já senhora da Índia, do Butão do Sikkim e do Nepal, combinou seus ataques ao litoral chinês com a invasão do Tibete em 1888 e 1903 e com as tentativas de impor à China o Tratado de Lhasa e a Convenção de Simla. A propaganda separatista, tão estridente contra a China, silencia sobre essas agressões britânicas e os saques perpetrados pelas tropas de Sua Majestade, assim como não menciona a tentativa indiana de invocar a Convenção de Simla para arrebatar da soberania chinesa uma parcela do planalto tibetano, o que levou em 1962 a um conflito fronteiriço entre os dois países.
A ocupação britânica do Tibete não vingou, mas a grande potência imperialista arrancou concessões e passou a estimular, entre lamas e nobres tibetanos, um movimento pela independência, isto é, pela separação do Tibete, para colocá-lo sob controle ocidental. Após a Segunda Guerra Mundial e com a avanço da revolução popular na China, os Estados Unidos aderiram aos intentos britânicos, reforçando o movimento separatista com agentes, armas, treinamento, propaganda e apoio diplomático. O Partido Comunista e o governo popular, instalado em Pequim em primeiro de Outubro de 1949, tinham o dever, portanto de concluir a libertação e a reunificação da China, defendendo, como no passado, as fronteiras históricas do país.
Ainda assim, não se pode acusá-los de agir precipitadamente. Entre Outubro de 1949 e Outubro de 1950, fizeram repetidas gestões para que o governo local negociasse as condições de libertação pacífica do Tibete. Mas o governo tibetano, dominado pela facção pró-ocidental, preferiu concentrar tropas na margem do rio Jingsha. Diante da intransigência, o governo central determinou que o exército popular transpusesse o rio e entrasse no Tibete, travando-se a batalha de Qamdo entre 6 e 24 de Outubro de 1950, a única na libertação do Tibete. Derrotadas as tropas locais, o Exército Popular interrompeu seu avanço, enquanto o governo de Pequim insistia nas negociações.
O confronto, no governo e na classe dominate do Tibete, entre a facção pró-ocidental e o sector favorável à negociação se aprofundou, o regente foi afastado, o décimo quarto Dalai-Lama, ainda menor de idade, assumiu a liderança e nomeou negociadores. Em contrapartida, retirou-se para Yadong, na fronteira com a Índia. Alguns meses depois, em 23 de Maio de 1951, em Pequim, os delegados do governo central e local assinaram o Acordo dos 17 Artigos, que reconhecia a unidade da China e a autoridade do governo popular sobre todo o território nacional, mantendo temporariamente os governantes e as instituições do Tibete até que fosse negociada a reforma democrática pacífica da região. Em 24 de Outubro de 1951, o décimo quarto Dalai-Lama telegrafou ao presidente Mao Zedong, aprovando pessoalmente o acordo, e retornou a Lhasa. O Exército Popular entrou na capital tibetana em 26 de Outubro de 1951, após o regresso do Dalai-Lama e com seu consentimento. O montanhista austríaco e militante nazista Heinrich Harrer, autor de Sete anos no Tibete, geralmente muito tendencioso em seus relatos, reconhece: “Deve-se dizer que durante essa guerra as tropas chinesas se mostraram disciplinadas e tolerantes e os tibetanso que foram capturados e depois libertados diziam que haviam sido bem tratados.”
Em 1954, o décimo quarto Dalai-Lama participou da primeira Assembléia Nacional Popular da China, que elaborou a Constituição da República Popular, tendo sido eleitos um dos vice-presidentes do Comitê Permanente dessa Assembléia. Na ocasião, pronunciou um discurso afirmando: “Os rumores de que o Partido Comunista da China e o governo popular central arruinariam a religião do Tibete, foram refutados. O povo tibetano tem gozado de liberdade em suas crenças religiosas.” Em 1956, assumiu a presidência do comitê provisório encarregado de organizar a região autônoma do Tibete. As relações entre os governos central e local estavam, portanto, normalizadas.
O levante contra a reforma democrática
O conflito ressurgiu quando se cogitou em promover a reforma democrática do Tibete, separando a religião do Estado, abolindo a servidão rural e a escravidão doméstica e redistribuindo a propriedade das terras e dos rebanhos, monopolizada pela aristocracia civil e pelos mosteiros. A facção pró-ocidental, aproveitando-se da insatisfação entre lamas e nobres, retomou a ofensiva. Agitando as bandeiras separatista e religiosa, e apoiada pela CIA cada vez mais desinibidamente, como hoje se reconhece, essa facção fundou uma organização política, a “Quatro Rios e Seis Montanhas”, e uma organização militar, o “Exército de Defesa da Religião”, e iniciou em 1956 ataques armados a funcionários e prédios públicos, a obras de infra-estrutura e até mesmo a tibetanos que apoiassem o movimento democratizador.
Reagindo com prudência, o goverrno central propôs adiar a reforma democrática, até que se chegasse a um acordo satisfatório sobre prazos e requisitos para sua implementação. Mas a facção contra-revolucionária intensificou os ataques e, aproveitando-se de um festival religioso em Lhasa, desfechou uma insurreição na capital em 10 de Março de 1959, retirou o Dalai-Lama para a Índia e generalizou os conflitos. O governo central considerou, então, rompido o acordo de 1951, destituiu o governo teocrático, transferiu suas atribuições para o Comitê Organizador da Região Autônoma e determinou ao Exército Popular que restabelecesse a ordem no planalto.
A guerra que se seguiu, entre 1959 e 1961, não se travou entre dois países, mas entre duas coalisões sociais. De um lado, as forças imperialistas, interessadas na divisão da China, e a facção de lamas e nobres empenhados na preservação do regime teocrático-feudal; de outro lado, o governo popular central e os monges, nobres, servos e escravos comprometidos com a unidade nacional da China e com a reforma democrática do Tibete. Não foi uma guerra nacional, nem religiosa, mas um conflito semelhante à guerra civil que opôs, nos Estados Unidos, o norte abolicionista ao Sul escravocrata. Ninguém recusa ao governo de Washington o direito de ter recorrido às armas para salvaguardar a unidade nacional e garantir o fim da escravidão.
Muitos têm dificuldade para entender a natureza social do conflito, porque não prestam atenção no regime político-econômico que vigorava no Tibete e nas áreas tibetanas das províncias vizinhas. Aliás, o décimo quarto Dalai-Lama e seus adeptos falam o menos possível do regime antigo. O feudalismo se generalizou após o colapso do reino de Tubo, em meados do século IX; a teoria budista se consolidou em meados do século XVIII. Mas, ainda em 1959, os lamas da camada superior, os nobres leigos e seus agentes representavam 5% da população; os servos e os escravos correspondiam a 95%. Os primeiros, especialmente os membros das 400 famílias mais importantes, viviam no fausto; a maioria dos lavradores, pastores e serviçais sobrevivia em extrema penúria. O contraste entre ricos e pobres penetrava nos próprios mosteiros, conforme descreve uma testemunha insuspeita, o décimo quarto Dalai-Lama, em sua autobiografia.
Das terras agriculturáveis, segundo levantamento de Junho de 1959, o governo local detinha e administrava directamente 38,9%; os mosteiros, 36,8%; os aristocratas leigos, 24%. A pequenos camponeses cabiam os 0,3% restantes. Os nobres e os mosteiros possuíam também a maior parte dos rebanhos. Para lavrar as terras e cuidar dos rebanhos, nobres, mosteiros e funcionários recorriam ao trabalho de servos.
Para ter acesso à terra arável e às pastagens, os servos, 90% da população, eram forçados a pagar aos nobres e mosteiros uma renda, principalmente sob a forma de corvéia ou renda em trabalho, secundariamente sob a forma de renda em produtos, e às vezes em dinheiro. Arcavam também com pesados tributos e taxas, pagos em serviços e em dinheiro. Sem recursos suficientes, endividavam-se com os nobres e, principalmente, com os mosteiros, pagando elevados juros. Se morriam sem saldar a dívida, ela passava aos descendentes ou aos vizinhos.
Para os escravos, 5% da população, provavelmente uma sobrevivência do passado pré-feudal, ficavam os serviços domésticos e públicos mais pesados, como a limpeza, o despejo de fezes, o transporte de carga e o transporte de nobres e funcionários, em liteiras ou nas próprias costas. Os filhos de servos e escravos não eram registrados em cartórios públicos, mas nos livros de seus senhores, a quem competia também autorizar os casamentos. Servos e escravos podiam ser trocados, doados, emprestados ou mesmo vendidos. Para os pobres, não havia hospitais, nem escolas. As guerras e epidemias dizimaram a população.
As leis confirmavam essa estrutura desigual, dividindo a população em três estratos e nove graus, com direitos e deveres distintos. Não havia, portanto, igualdade jurídica, nem mesmo para as mulheres do estrato dominante. Se um nobre matava um servo ou um escravo, pagava uma indemnização. Mas, para servos e escravos que agredissem um nobre ou furtassem um bem, os códigos previam penas cruéis, como espancamentos brutais, mutilação de mãos ou pés, extracção dos olhos. Até entre os monges, a disciplina era mantida à custa de chicotes e surras, como relata o Dalai-Lama em sua autobiografia. Além de uma prisão pública e precária em Lhasa, havia guardas, tribunais e cárceres privados nos mosteiros e nas grandes propriedades.
Os monges da camada superior e os nobres mais influentes monopolizavam os direitos políticos. O Dalai-Lama encabeçava o governo desde meados do século XVIII. Os demais cargos eram repartidos entre lamas e nobres leigos. A Seita Amarela, do Dalai-Lama, era privilegiada em relação às demais seitas e o budismo tibetano, em relação às demais religiões.
O Tibete antigo não tinha nada de idílico, portanto. É espantoso que se invoquem os “direitos humanos” para defender esse regime opressivo e cruel, em que a maioria da população, formada por servos e escravos, não gozava de liberdade pessoal, nem dispunha de qualquer direito político.
A unidade, garantia do avanço
Rompido o acordo de 1951 pelo décimo quarto Dalai-Lama e seus adeptos separatistas, o governo central aboliu o regime teocrático, revogou as leis e códigos desiguais, fechou os tribunais e cárceres privados, emancipou os servos e os escravos, cancelou as dívidas que os sufocavam e procedeu à redistribuição gradativa e cuidadosa das terras e dos rebanhos, indenizando os proprietários que apoiassem a reforma democrática. Restabelecida a ordem e concluída a reforma agrária, foi iniciada a implantação do sistema de assembléias e comitês populares, com a eleição das assembléias distritais em 1964. Estas elegeram as assembléias municipais, que por sua vez escolheram a Assembléia Regional Popular em 1965, instituindo-se a Região Autônoma do Tibete. Dos 301 delegados à primeira assembléia, 226 eram tibetanos, a maioria servos e escravos emancipados, mas havia também monges, ex-nobres patriotas e, pela primeira vez em cargos públicos, mulheres. Desde então, a Região Autônoma do Tibete já teve quatro presidentes leigos, todos tibetanos.
Os erros cometidos pela chamada Revolução Cultural entre 1966 e 1976, no Tibete como em toda a China, suscitaram novos atritos, de que se aproveitaram os separatistas para promover distúrbios violentos em Lhasa, entre 1987 e 1989, numa iniciativa orquestrada com as manifestações antigovernamentais em Pequim e com a crise dos países socialistas na Europa Oriental. Mas o Partido Comunista e o governo popular da China venceram essas duras provas, preservando as conquistas revolucionárias, corrigindo os erros e restabelecendo as políticas de liberdade religiosa, de frente única com todos os setores patrióticos e de respeito mútuo entre as nacionalidades. É claro que a China ainda é um país pobre e que o Tibete é uma de suas regiões menos desenvolvidas. É indiscutível também que ainda existe muito que aprender no aprimoramento das democracias socialistas e no desafio de conjugar a preservação das culturas tradicionais com o desenvolvimento de culturas novas e progressistas. Contudo, quem investiga com isenção, não pode deixar de reconhecer os avanços políticos, econômicos e culturais obtidos com a libertação e a reforma do Tibete nas últimas décadas.
Essa experiência positiva, contraposta ao colapso da União Soviética e ao dilaceramento da Iugoslávia, confirma que a união, não a divisão, é que pode assegurar o desenvolvimento conjunto das nacionalidades integrantes de países como a China. Rompida a unidade, abandonado o caminho socialista, na União Soviética e na Iugoslávia, perderam-se também as conquistas democráticas, reacenderam-se as chamas de conflitos étnicos e religiosos, reabriu-se o perigo de propagação de guerras devastadoras.
Certo estava o nono Panchen Erdeni, o segundo lama na hierarquia do budismo tibetano, quando escreveu em 1929: “Por suas relações históricas e geográficas, nem o Tibete pode ser independente da China, nem a China do Tibete. Assim, ambos serão beneficiados se permanecerem unidos, enquanto a separação prejudicará a ambos.”
http://www.vermelho.org.br/museu/principios/anteriores.asp?edicao=53&cod_not=429
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