sexta-feira, abril 10, 2009

As leis mais parvas do mundo

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Somos todos iguais perante a lei, mas nem todas as leis são iguais perante o senso comum. No Reino Unido, por exemplo, é ilegal morrer na Câmara dos Comuns, enquanto no Ohio é proibido embebedar peixes e na Florida as mulheres solteiras que saltem de pára-quedas ao domingo arriscam--se a ser presas. Mostrando que levam o patriotismo a sério, os britânicos consideram um acto de traição colar um selo com a efígie do monarca de cabeça para baixo, mas em França é proibido chamar Napoleão a um porco.

Estes e outros exemplos, que constam de uma lista das leis mais ridículas do mundo, publicada no diário Daily Telegraph, mostram que Cícero tinha razão quando dizia que quanto mais leis há, menos justiça se tem e que o filósofo americano Emerson não estava menos certo quando recomendava aos homens bons que obedecessem à lei, mas não em excesso.

Se há país que sofre certamente do excesso de leis é Portugal e por isso também não é necessariamente certo que sejamos bons obedecendo excessivamente à lei.
Supõe-se mesmo que haverá leis adequadas para os homens que não querem fazer coisas boas não serem obrigados a violar a lei - o que seria, de algum modo, excessivo.
Na lista das leis mais absurdas estão a que proíbe os homens na Suíça de se aliviarem em pé depois das dez da noite ou a que considera legal matar um escocês dentro das muralhas da cidade de York se este estiver armado com um arco e flechas. Mas o mais absurdo de tudo é não figurar lá nenhuma lei portuguesa - e não é com certeza um problema de escassez.

Veja-se, por exemplo, a lei que distingue a corrupção para acto lícito de corrupção para acto ilícito, que vem iluminando o debate público nacional. Faz até menos sentido do que a lei do Alabama que especifica inequivocamente que é proibido guiar com uma venda nos olhos. Se uma peca pelo excesso, a outra peca pelo defeito - e pela contradição de minorar um acto ilícito relacionando-o com um fim lícito. Para essa lei fazer sentido, seria necessário alargá-la a todo o tipo de crimes. Por exemplo, um assaltante de bancos é julgado e explica ao juiz que roubou para construir uma casa de férias. Como não considerar isso uma atenuante? Afinal, é um objectivo perfeitamente lícito. Por que não beneficiará o assaltante de banco da mesma consideração? No mínimo, esta lei é discriminatória. Até por que o assaltante de bancos não tem o poder de adaptar as leis à medida dos seus fins.

A corrupção para acto lícito não é menos absurda do que a proibição de morrer na Câmara dos Comuns. Mas não é certamente o único exemplo na extensa relação da produção legislativa doméstica. Na lei sobre o enriquecimento ilícito, por exemplo, diz-se que o ónus da prova não pode recair sobre o titular de cargos públicos que é investigado. E muito bem, que lá por alguém ser detentor de um cargo público não tem nada que ser menos do que os outros. Mas só podemos aceitar esta lei se partirmos do princípio que um titular de cargos públicos pode furtar-se ao princípio da transparência. Se esse princípio vigorasse nos EUA, assistiríamos àquelas longas e minuciosas investigações do Senado aos candidatos a cargos no governo? Não será essa prática uma "inversão" do ónus da prova?

Muitas são as pessoas que dizem e repetem que a corrupção é o pior veneno da sociedade portuguesa. Estão erradas. Muito pior do que a corrupção é a tolerância em relação à corrupção ou a capacidade de quase a despenalizar através da lei. Mesmo num país com um longo historial de corrupção como o nosso, é um refinamento. Prova como o excesso de leis é a melhor maneira de contornar a justiça. E como é possível não se ser bom, mesmo obedecendo excessivamente a lei.

Público 09.04.2009
Miguel Gaspar (miguel.gaspar@publico.pt)

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