quarta-feira, dezembro 19, 2007

"Lenine e a Revolução” de Jean Salem – Uma análise crítica – Parte II

.


Começaria esta segunda parte da crítica ao livro de Jean Salem, Lenine e a Revolução, por repor a verdade em relação às transcrições que na primeira atribuí a Francisco Melo, que apresentou o livro na sessão do seu lançamento, e que segundo o mesmo são de Rodney Arismendi, que foi Secretário Geral do Partido Comunista do Uruguai entre 1955-1987, e que morreu em Dezembro de 1989. Esta confusão deve-se a que o Avante!, na notícia relativa ao lançamento do livro, atribui aquelas afirmações a Francisco de Melo, enquanto que este as remete para o político referido, de acordo com o texto integral da sua apresentação publicado posteriormente pelo mesmo jornal .
Mas mais reveladoras do que citações referidas , são as afirmações do próprio Francisco Melo que, a propósito da intervenção de Álvaro Cunhal no XIII Congresso Extraordinário do PCP, realizado em Maio de 1990, sobre os cinco principais traços negativos presentes na construção do socialismo real, considera “que não evitámos ser levado nas nossas análises a pôr uma tónica excessiva nas deformações e na derrota do socialismo real e nas suas causas internas...; não evitámos a permanência de grandes lacunas na contextualização histórica, interna e externa, da construção do socialismo e na reposição da verdade histórica dessa construção; não evitámos as fraquezas da nossa intervenção ideológica na luta contra as falsificações e caricaturas em catadupa bolsadas pelos nossos inimigos de classe. Trata-se de debilidades e omissões que não devem ser minimizadas e muito menos deixadas em silêncio...”.
Pretende, pois, o autor desta citação, apesar do ar sério e respeitador com que trata Cunhal, pôr em causa as limitadíssimas criticas que em tempos aquele fez ao socialismo real, recuperando no seu conjunto todo o passado da URSS e porque não, por enquanto ainda de forma envergonhada, a acção de Estaline.

I – Seis teses sobre Lenine e a Revolução
Mas passemos ao livro. Na primeira parte desta crítica realcei de forma positiva as críticas que Jean Salem, o autor de Lenine e a Revolução, fazia a algumas das ideias feitas que a ideologia dominante expendia sobe a União Soviética e que vinham expressas no seu Prefácio ao livro. Deixei para análise posterior a parte referente ao tema que está na origem do próprio título da obra referida.
O autor resume em seis teses aquilo que Lenine pensa sobre a Revolução. O texto é simples e esquemático. Não resulta de qualquer investigação mais apurada sobre a época histórica em que o autor estudado viveu, nem da análise dos grandes confrontos político-ideológicos que aquele revolucionário travou com alguns dos seus contemporâneos. Estamos perante um livro de divulgação, que baseou o seu objecto de estudo nas Obras Completas de Lenine. Com citações que, mesmo na edição portuguesa, são acompanhadas, para que não restem dúvidas aos “ignorantes”, da sua versão original, em russo.

1 – Primeira tese
Logo a primeira tese dá um pouco o tom de todas elas. Assim, assume explicitamente: “A revolução é uma guerra; e a política é, de uma maneira geral, comparável à arte militar”. Por isso, afirma que Lenine para falar do partido operário recorre frequentemente a metáforas militares. Porque, citando o revolucionário russo, “os partidos socialistas não são clubes de discussão, mas organizações do proletariado em luta.” Quantas vezes no PCP esta frase não foi dirigida contra aqueles que, discordando, queriam continuar a discutir as orientações traçadas.
O autor realça, ainda em relação à primeira tese, que Lenine considerava que depois da revolução falhada de 1905, ainda durante o regime czarista, se tinha iniciado uma época de revoluções na Europa, e que se devia transformar a guerra imperialista que então se tinha iniciado (1914) em guerra civil, dos “oprimidos contra os opressores”. Mesmo a paz de Brest-Litovsk, que permitiu o jovem poder soviético retirar-se da Primeira Guerra Mundial, com grandes custo territoriais, e depois a NEP (Nova Política Económica), iniciada em 1921, são apresentadas em termos de trégua e recuo militar indispensáveis para reunir forças para novas batalhas.

2 - Segunda tese
A segunda tese consiste no seguinte: “uma revolução política é também e sobretudo uma revolução social, uma mudança na situação das classes em que a sociedade se divide.” Nesta tese define-se aquilo que Lenine considera a revolução: “é a destruição violenta da superestrutura política antiquada”, de uma superestrutura que não corresponde já às novas relações de produção. E conclui Jean Salem, parafraseando Lenine: “qualquer revolução política, qualquer revolução verdadeira – que não se limita à substituição de camarilhas –, é uma revolução social, uma “deslocação” de classes em que a sociedade se divide”. Mas os factores subjectivos têm também o seu papel no desencadeamento das revoluções. Aos olhos dos marxistas, segundo Lenine, a sua propaganda conta-se “entre os factores que determinarão se haverá revolução ou não”.

3 – Terceira tese
A terceira tese: “Uma revolução é feita de uma série de batalhas; cabe ao partido de vanguarda fornecer em cada etapa uma palavra de ordem adequada à situação objectiva; cabe-lhe a ele reconhecer o momento oportuno para a insurreição”. Esta tese refere-se à oportunidade de se lançar a revolução. Assim, Jean Salem começa por citar Lenine, num texto já muito conhecido, “só quando “os de baixo” não querem o que é velho e “os de cima” não podem continuar como dantes, só então a revolução pode vencer” e conclui com a citação “é preciso escolher o momento oportuno para as lançar”, mas “a hora da revolução não pode ser objecto de previsão”.

4 – Quarta tese
A quarta tese, a mais polémica e aquela que favorece o modo como a ideologia dominante gosta de ver Lenine, é a seguinte: “os grandes problemas da vida dos povos nunca são resolvidos senão pela força.” Nesta tese temos a explanação da teoria de Lenine sobre o Estado, em que aquele afirma que “o Estado é um órgão de dominação de classe, um órgão de opressão de uma classe por outra, é a criação da “ordem” que legaliza e consolida esta opressão moderando o conflito de classes” e, mais adiante, “é a organização especial da força; é a organização da violência para a repressão de uma classe qualquer” e, conclui, “a república burguesa mais democrática não é “mais do que uma máquina de repressão da... massa dos trabalhadores por um punhado de capitalistas”. Depois, ainda segundo Jean Salem, continuando a citar Lenine, “só é marxista aquele que alarga o reconhecimento da luta de classes até ao reconhecimento da ditadura do proletariado”. E deixando-se embalar neste tom chega afirmar, reportando-se ainda a Lenine, “porque o proletariado necessita do poder do Estado, de uma organização centralizada da força, de uma organização da violência, tanto para reprimir a resistência dos exploradores como para dirigir a imensa massa da população...”.
A seguir, ainda dentro da mesma tese, desenvolve a ideia, que Lenine retomou de Marx, que “a classe operária deve quebrar, demolir a “máquina do Estado que encontra montada”, e não limitar-se á sua conquista”. Por isso, Jean Salem pode afirmar que para Lenine “a substituição do Estado burguês pelo proletário é impossível sem revolução violenta”. No entanto, de acordo ainda com o autor, o revolucionário russo “recordará “a justeza da luta” tradicionalmente conduzida pelo seu partido “contra o terror como táctica”, isto a propósito de muitas vezes se considerar que as propostas de Lenine se assemelham ao “blanquismo”.

5 – Quinta tese
A quinta tese – “os revolucionários não devem renunciar à luta pelas reformas” – só está incluída no livro que temos vindo a referir, porque esta tese no texto, que foi apresentado no II Encontro Internacional de Serpa, já referido na primeira parte deste artigo, foi, estranhamente, suprimida. Ela resume-se na expressão de Lenine, quando ainda o seu partido não se designava comunista: “os sociais-democratas não são hostis à luta pelas reformas, mas ao contrário dos sociais-patriotas (designação utilizada por Lenine para os partidos sociais-democratas que na I Guerra Mundial tinham apoiado os seus governos – JNF), dos oportunistas e dos reformistas, subordinam-na à luta pela revolução”. No entanto, Jean Salem convoca igualmente para esta tese esta citação de Marx, referida por Lenine: “existem, numa revolução, momentos em que abandonar uma posição ao inimigo sem combate desmoraliza mais as massas do que uma derrota sofrida em combate” ou ainda, de acordo com o revolucionário russo: “não só a derrota instrui, mas também “as revoluções vencem... mesmo quando sofrem uma derrota”.

6 – Sexta tese
Na sexta tese fala-se de que “na era das massas, a política começa onde se encontram milhões de homens, ou mesmo dezenas de milhões. É necessário, além disso, promover a deslocação tendencial dos focos da revolução para os países dominados.”
Fazendo jus ao título da tese, Jean Salem cita novamente Lenine, quando este diz que “uma revolução só se torna revolução quando dezenas de milhões de pessoas se erguem num impulso unânime”. O que distingue a revolução da luta habitual é que “aqueles que participam no movimento são dez vezes, cem vezes mais numerosos”. E acrescenta, pode por vezes bastar um partido “muito pequeno” para “conduzir as massas”. Em determinados momentos não há necessidade de grandes organizações, “mas para ter a vitória é necessário ter a simpatia das massas”.
Por último, aquele que é quanto a mim um dos problemas centrais da Revolução de Outubro, e Jean Salem volta novamente a citar Lenine: “a revolução russa pode vencer pelas suas próprias forças, mas em nenhum caso ela é capaz de manter e consolidar com as suas próprias mãos as suas conquistas. Não poderá consegui-lo se não houver revolução socialista no Ocidente”. E termina esta tese com uma certa tonalidade amarga, que, como sabemos, corresponde ao que de facto sucedeu, com a afirmação de Lenine de que “veremos a revolução internacional mundial, mas por enquanto isto é muito belo, um conto muito bonito”.

II – Uma reflexão crítica
Sei que a maiorias dos leitores detesta aqueles críticos que lhe revelam a história do livro ou o final do filme. Sei que em relação a um livro de ensaio a descrição do seu conteúdo é menos grave, mas não deixo de reconhecer que vos macei com o realce daquilo que em cada tese eu penso ser o mais importante. Considerei, no entanto, para se perceber o que a seguir vou dizer, que este relato maçador era imprescindível.
Este livro insere-se numa ofensiva do velho marxismo-leninismo, contra as correntes renovadoras da ideologia comunista e tendo ainda como alvo o que poderá restar do eurocomunismo ou da perestroika. Se no prefácio se faz uma crítica justa ao modo como o pensamento dominante analisa a União Soviética ou o que foi o “socialismo real”, vai subliminarmente insinuando que o “revisionismo” contemporâneo é cúmplice desta ofensiva. A referência que fizemos às palavras ditas no seu lançamento visa enquadrar o tipo de preocupações de quem neste momento edita este livro.
Por outro lado, a crítica entusiástica que Miguel Urbano Rodrigues lhe dedica, e que já foi referida na I Parte, atesta bem como o livro de Jean Salem é importante para um certo revolucionarismo marxista-leninista.
Mas deixemo-nos da análise das intenções e passemos aos factos. Rememorar tudo o que Lenine disse na sua época histórica, sobrevalorizando o papel quase militar que Lenine atribuía ao Partido, à violência como parteira da história ou à transformação da guerra imperialista em guerra civil, é esquecermo-nos que já passaram quase cem anos sobre estas formulações, que elas tinham uma clara concordância com um tempo histórico que é manifestamente diferente do de hoje. Mas, o que é mais interessante de tudo isto é que paulatinamente estas posições foram sendo abandonadas pelo movimento comunista, não hoje, mas no tempo que estes autores consideram provavelmente como heróico. É certo, continuando sempre a afirmar a sua fidelidade aos princípios do marxismo-leninismo.
Quem estudou minimamente a evolução da Internacional Comunista compreende que se a estratégia revolucionária era no essencial, por vezes com grande sectarismo, aquela que Lenine formulara, e que Jean Salem tenta corporizar em seis teses, com a teorização das Frentes Populares por Dimitrov, no seu VII Congresso, em 1935, esta linguagem e estas opções começam-se a tornar irreconhecíveis. A aliança entre comunistas e sociais-democratas, a luta pela democracia, contra o fascismo, não se podem unicamente enquadrar na luta pelas reformas, como está explícito na quinta tese, mas traz contribuições muito importantes para o desenvolvimento do movimento comunista. Entre nós, Francisco Martins Rodrigues, um dissidente nos anos 60 do PCP, no seu livro Anti Dimitrov – 1935-1985: meio século de derrotas da revolução reporta àquela época o início de todo o “revisionismo” contemporâneo.
Mas é ainda durante a II Guerra Mundial, quando da grande coligação entre as burguesias patrióticas e anti-nazis e as diversas formações do movimento operário (socialistas e comunistas), de certo modo responsável por aquilo que inicialmente seria o conceito de democracia popular, que se verifica mais uma inflexão acentuada da teoria sobre a Revolução defendida por Lenine.
É interessante relembrar a pressão exercida por Estaline sobre Tito para que este estabeleça um Governo de aliança com outras forças políticas, e não queira implantar de imediato a República Socialista. Ou então, as pressões sobre Mao para que este se aliasse no final da II Grande Guerra com o Komitang.
Mas mais recentemente (1956) podemos relembrar a defesa que Khruchtchev faz, no XX Congresso do PCUS, da via pacífica para o socialismo, que esteve na origem da grande divergência com os chineses.
Mas recorrendo a exemplos da política nacional, temos a supressão do termo ”ditadura do proletariado” do programa do PCP, opção mais prática, para “inglês ver”, do que teórica, mas que no fundo corresponde à necessidade do Partido Comunista se adaptar aos tempos actuais. E por muito que custe a alguns, o próprio conceito de Revolução Democrática e Nacional, as tarefas necessárias para derrubar o fascismo, apesar de defender o levantamento nacional armado, fugia às formulações leninistas de ditadura do proletariado e de revolução socialista. Facto que sempre foi criticado pelos “esquerdistas” de todos os matizes, que baseavam as suas divergências com o PCP na crítica àquela opção.
Não é por acaso que teve recentemente tanto êxito entre alguns militantes do Partido Comunista uma declaração do PC da Grécia, a propósito do 90º aniversário da Grande Revolução Socialista de Outubro, em que se dizia: “No Ocidente capitalista, os partidos comunistas não puderam elaborar uma estratégia de transformação da guerra imperialista ou da luta de libertação numa luta pela conquista do poder operário. Eles remeteram o objectivo do socialismo para mais tarde e definiram tarefas que se limitavam a luta na frente contra o fascismo. O ponto de vista que prevalecia na altura, sustentava que era possível a existência de uma forma intermédia de poder, entre o poder burguês e o poder da classe operária revolucionária, com a possibilidade de vir a evoluir para um poder operário.” Ou então, esta outra: “A política seguida por um bom número de partidos comunistas que consistia em colaborar com a social-democracia, fez parte da estratégia da «governação anti monopolista», uma espécie de estado intermédio entre o capitalismo e o socialismo, que se expressava igualmente através de governos que tentaram administrar o sistema capitalista.”
É evidente que esta crítica do PC da Grécia, que parece dirigida às posições dos partidos comunistas do ocidente, deve ser dirigida ao Partido Guia, o PCUS, responsável, em última instância, pela defesa daquelas orientações.
Neste sentido, este livro reflecte um mal-estar que existe no que resta do movimento comunista ortodoxo que, órfão das orientações e da coesão do “socialismo real”, se refugia numa imaginada pureza do marxismo-leninismo, dando a este uma orientação sectária e por vezes esquerdizante e abandonando, mesmo que sub-repticiamente, as anteriores posições unitárias.
Por outro lado, e para terminar, a visão que é dada de Lenine, principalmente na quarta tese, corresponde, como que reflectida num espelho, à visão que actualmente a ideologia dominante pretende dar daquele revolucionário, ou seja um Lenine de faca nos dentes, antecipando toda a série de horrores que caracterizou o tempo de Estaline. Ao depurar tanto o seu conceito de Revolução, chegam quase ao ponto de o transformar em chefe de grupo terrorista, coisa que de facto ele nunca foi.

5 comentários:

F. Penim Redondo disse...

Caro Jorge, agora tens que produzir a Parte III para nós chegarmos a perceber o que tu, como renovador, pensas das tais seis teses.

Eu, como sabes, acho que estas teses têm um defeito de base; resumem tudo, ou quase tudo, ao acto insurreccional.

O amadurecimento da sociedade para a transição é um processo longo de onde deverão surgir as novas formas e actores sociais.
O estudo e o desenvolvimento de métodos de análise para fundamentar a decisão de tomar o poder, pela força ou não, e as linhas de uma nova formação social parecem completamente arredados destas teses.
Como se fossem evidentes (a história mostrou que não são).

o castendo disse...

Caro Jorge,
Penso que é lapso de teclado, mas o termo politicamente correcto é «Revolução Democrática e Nacional» (falta o e). Aliás o Álvaro dedicou parte de um livro a explicar a importãncia do e: «Radicalismo pequeno burguês de fachada socialista»...

Jorge Nascimento Fernandes disse...

Tem o Castendo toda a razão. Penso que não foi erro de tecla mas o resultado de uma escrita demasiado apressada.
Sei o que o Álvaro queria dizer, pois a revolução seria para derrubar o fascismo e implantar a democracia e nacional, no sentido de nos libertarmos do domínio imperialista.

Jorge Nascimento Fernandes disse...

Quanto à resposta ao Fernando fica para mais tarde, mas nãoperde pela demora.
Um abraço

o castendo disse...

Caro Jorge,
Como o Jean Salem lê bem português a sua opinião (os dois posts) seguiu para ele.