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Há uma esquerda que se julga marxista mas que já não o é. Uma esquerda que, lamentavelmente, ainda nem sabe que é o que é.
Uma leitura deficiente de Marx, ou uma não leitura que apenas ouviu dizer, transformou de forma irreconhecível as teses sobre a luta de classes.
No Manifesto do Partido Comunista, Marx diz que “a história de toda a sociedade até aqui é a história de lutas de classes”. Tal significa que a luta entre opressores e oprimidos esteve sempre presente mas não significa, como alguns parecem inferir, que a história da humanidade se resumiu a isso.
Marx insistia em considerar o carácter histórico de cada forma de exploração, integrando-a no modo de produção vigente, e no sistema de classes que lhe correspondia. A esquerda pós-marxista desenvolve uma “luta de classes” que dispensa a compreensão do sistema onde se insere e que omite constantemente a caracterização das classes em confronto.
Invoca a “luta de classes” a torto e a direito porque parte do princípio de que a existência de qualquer problema social pressupõe não só que alguém o está a causar mas também que o faz deliberada e maldosamente (!!).
Esta forma de interpretar o devir social, num permanente e artificial clubismo, impede a compreensão de fenómenos complexos e leva mesmo à tentativa de os ignorar. Como diz Blanko Milanovic, hoje, para determinar o destino individual, é mais importante o país onde se nasce do que a classe social a que se pertence. Isso implica que, por exemplo, o emprego dos trabahadores de uma empresa pode estar mais dependente de um concorrente, ou importador, longínquo do que do patrão local contra quem insistem em fazer greve.
Neste processo de abastardamento teórico as classes, e o seu contexto local e global, foram desaparecendo para dar lugar às críticas personalizadas do foro psicológico e patológico (os males da Europa passam assim a dever-se aos comportamentos desviantes da senhora Merkel e, a nível nacional, os problemas resultam das idiosincrasias de Cavaco ou Relvas).
A prática política oscila entre a crítica avulsa dos discursos dos responsáveis políticos e as investidas quixotescas contra entidades mitificadas e inatingíveis como “os mercados”. A concepção do Estado como instância salvífica e do trabalho assalariado (o tão ansiado emprego) como o "fim da história" nas relações de produção, completam coerentemente o quadro aterrador dos equívocos.
Os mecanismos e a lógica do sistema sócio-económico em que vivemos, local e globalmente, compreendidas e questionadas no intuito de desenhar a sua superação, são sistemáticamente omitidos do discurso da esquerda actual.
Todos os desafios teóricos e factos complexos são despachados com um mecânico, desresponsabilizante e inconsequente lugar comum: "a culpa é do capitalismo".
Enquanto assim for não haverá qualquer luz ao fundo do túnel.
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