Um violino no Cacheu
Era uma daquelas intermináveis subidas do Cacheu. As lanchas ronronavam rio acima, quase paradas quando a corrente da maré era vazante.
Uma outra parte do combóio de batelões ainda não nos alcançara e foi decidido fazer uma paragem e pernoitar, fundeando, onde pudessem mais tarde encontrar-nos.
Escolhemos uma curva do rio onde o tarrafo era alto e denso; as margens despidas das clareiras eram locais de emboscadas e tiroteios. Só suicidas se atreveriam a fazer um ataque a partir da precariedade das raízes inclinadas do tarrafo. Ou quem nunca as tivesse experimentado.
Lançámos então o ferro e a corrente virou-nos a proa para a foz. Assim ficámos no silêncio que só as aves cortavam e sem acender gambiarras. Uma vez desligados os motores, sinal que dávamos a contra gosto, a nossa presença devia ser ocultada por todas as formas. Até tínhamos o cuidado de esconder as pontas dos cigarros.
O Cacheu é um rio avantajado e o mar sobe por ele quando a maré enche, como era o caso. Sentíamos um grande volume de águas passar por nós, rio acima, pondo à prova a firmeza do ferro no leito do rio.
A mais de cem metros estava a Canopus, que era comandada pelo meu amigo Henrique. Eramos ambos daquela geração de 60 que partiu muitos tabús e que fazia frente à ditadura. Quizera o acaso que a guerra nos fizesse reencontrar no Cacheu depois de nos termos conhecido nos convívios universitários de Lisboa.
Estava eu com os meus pensamentos quando percebi que a Canopus lançara um bote à água. Fiquei alertado, pelo inusitado, e vi o bote aproximar-se com o grumete a acenar e a dizer “o senhor comandante manda perguntar se o senhor tenente quer ir beber um café à Canopus”.
A Canopus era um navio de maior envergadura e, apesar de tudo, com mais habitabilidade e espaço do que a lancha em que eu viajava. Por isso, e especialmente pela conversa saborosa que me esperava, não demorei a aceitar o convite e a saltar para o bote de borracha.
O Henrique recebeu-me com bonomia, como era do seu natural, e instalámo-nos num compartimento da proa a beber um café e a conversar. O navio oscilava docemente e parecia que estávamos numa bolha, muito longe de um teatro de guerra.
A certa altura o Henrique propôs que víssemos um filme feito por ele. Lá montou um pequeno ecran e as imagens surgiram. O que elas mostravam eram apenas as águas de um rio, paradas como um espelho, e as margens deslizando, à esquerda e à direita, interminávelmente.
As imagens, belíssimas, eram quase hipnotizantes. Foi então que reparei que para tal contribuía também a maravilhosa música de violino que as acompanhava.
Foi assim que descobri o concerto do Tchaikovsky.
Ainda hoje, passados cinquenta anos, sempre que encontro o Henrique nunca deixo de lhe agradecer.
1 comentário:
Então Sr. Comandante para quando um post sobre o que viu por lá, na Guiné?
Cumprimentos.
Enviar um comentário