OBRAS
António Barreto, Público de 6 de Maio 2007
Nada e quase ninguém parece imune. Não se trata de estranha epidemia, nem de misteriosa síndrome. É, tão-só, a construção. Seja na versão das obras públicas, seja na da habitação social. Quer na classificação dos solos, quer na elaboração e na derrogação dos planos directores municipais. Nos loteamentos e nas urbanizações. Ou no licenciamento, nos concursos, nas adjudicações directas e nas trocas de terrenos.
António Barreto, Público de 6 de Maio 2007
Nada e quase ninguém parece imune. Não se trata de estranha epidemia, nem de misteriosa síndrome. É, tão-só, a construção. Seja na versão das obras públicas, seja na da habitação social. Quer na classificação dos solos, quer na elaboração e na derrogação dos planos directores municipais. Nos loteamentos e nas urbanizações. Ou no licenciamento, nos concursos, nas adjudicações directas e nas trocas de terrenos.
A construção é, em Portugal, a grande excitação dos novos-ricos, a certeza das velhas fortunas, a tentação dos pequenos e médios empresários, a solidez dos grandes grupos económicos e o repouso do guerreiro das grandes empresas. A construção é o golpe de sorte dos velhos proprietários e o motor de arranque do jovem empresário à procura de oportunidades rápidas.
A obra e a construção são o sonho e o pesadelo do autarca, o segredo do intermediário, a garantia de êxito do ministro e a vocação do capitalista. Pode começar-se na agricultura, na indústria, nos serviços ou na finança, mas acaba-se sempre na construção, no imobiliário ou na obra pública. O que faz o autarca que quer ficar na história? Rotundas, parques industriais, centros comerciais, urbanizações, loteamentos, pavilhões gimnodesportivos, piscinas e sobretudo bairros, podendo estes ser sociais, da classe média ou para amigos. O que faz o ministro que quer deixar a sua marca? Grandes obras públicas e auto-estradas, enquanto sonha com cidades administrativas, cidades judiciais, centros de governo, aeroportos, comboios de alta velocidade, grandes loteamentos turísticos, túneis e lagos artificiais. Que fazem os industriais e financeiros quando chegam a um ponto elevado da sua vida económica e perdem gradualmente a visão fundadora e a vocação tradicional? Transferem-se para o imobiliário, a construção e a obra. Que fazem todos os que querem enriquecer depressa? Ocupam-se dos loteamentos, dos planos directores municipais, das reservas agrícolas, dos bairros sociais de que as câmaras tanto precisam, dos miríficos resorts turísticos e de algumas actividades aparentemente estranhas como a requalificação e a revisão dos planos directores. Que fazem os partidos que têm necessidade de recursos financeiros e ocupam lugares nos aparelhos autárquicos e na administração central? São simplesmente uma espécie de corretores: levam e trazem, ajudam, desembaraçam, dão um empurrão, escolhem, seleccionam, animam as empresas municipais, preenchem os lugares decisivos no licenciamento, caçam cabeças e proporcionam encontros férteis. Numa palavra: facilitam. Mas cobram. À vista. Ou em espécie.
Quase todos os processos judiciais por corrupção ou ilícito administrativo e quase todas as irregularidades cometidas pelas instituições públicas têm, como ponto de partida ou passagem obrigatória, uma obra ou uma construção.
Quase todas as grandes fortunas surgidas nas últimas décadas começaram ou acabaram no imobiliário, no licenciamento e no loteamento. A maior parte dos défices camarários e dos negócios ruinosos das autarquias tem, na origem, os bairros sociais, os planos de realojamento, a requalificação de edifícios recentes e as obras relativamente inúteis ou vistosas.
Uma enorme percentagem do desperdício financeiro do Estado central provém dos atrasos em obras públicas, dos "trabalhos a mais", dos orçamentos subavaliados para concursos duvidosos, da "despesa deslizante", das condições leoninas que os grandes empreiteiros impõem à administração pública e da falta de competência dos ministérios para analisar, acompanhar e fiscalizar as obras. Um sem-número de casos políticos, de polémicas azedas, de perturbações nas câmaras e nos partidos, de rivalidades dentro do mesmo partido e de desgoverno na administração tem sempre, algures no processo, uns dinheiros estranhos, uns licenciamentos expeditos, umas adjudicações directas, umas trocas de terrenos e umas mais-valias de várias centenas por cento obtidas com simples decisões administrativas ou políticas. Como já se percebeu, a crise de Lisboa, que é apenas mais uma a somar a outras em tantos sítios, cabe também nesta rede aparentemente intangível.
Eles estão por todo o sítio. No governo, na autarquia, na empresa privada, no escritório, no clube de futebol ou no café. Eles são tudo. Autarcas ou membros do governo. Engenheiros ou juristas. Sofisticados advogados internacionais ou solicitadores pataqueiros. Construtores ou intermediários. Dirigentes partidários ou gestores privados. Capitalistas ou burocratas. Diligentes funcionários públicos ou agentes privados. Eles fazem tudo. Compram partes de cidades e vendem bairros. Forçam à construção de auto-estradas úteis ou inúteis. Conseguem as autorizações para demolições duvidosas. Obtêm posições importantes na construção de estádios de futebol, de centros comerciais e de hospitais. Conhecem a lei melhor do que ninguém e, quando não conhecem ou esta não lhes é favorável, mudam-na. Derrogam os planos oficiais. Retiram terrenos da reserva agrícola. Eles sabem tudo. Têm planos de desenvolvimento e prometem levar Portugal para a frente. São optimistas. Acreditam no futuro. Apostam na inovação e no moderno. Eles estão no meio de nós. Portugal é um país de patos bravos.
Sociólogo
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