domingo, março 06, 2005

O “Mercador de Veneza” e a questão do Estado





Num qualquer “cinema perto de si” Al Pacino representa um portentoso Shylock, mercador judeu que insiste em confrontar o Doge com as leis venezianas e acaba vítima do contrato que pretendia cobrar. A fabulosa trama engendrada por Shakespeare permite as mais variadas “leituras” mas eu prefiro a seguinte: todos os textos dizem tudo mas são sempre incompletos.

O paradoxo tem a ver com a ilusão do poder da escrita que soçobra às mãos da subjectividade humana sem a qual não há leitura. Dito de outra forma: não há textos sagrados, não há contratos inexpugnáveis e não há leis cegas.

À tentativa frustrada de encurralar o Estado, conduzida pelo judeu Shylock, responde o Estado com um “exercício interpretativo” das leis cujo fito é legitimar a arbitrariedade do seu poder.

A questão do Estado é de uma actualidade gritante.

Fala-se do Estado a torto e a direito mas não é nada claro o significado desta palavra. O Estado é o quê ?
É o conjunto dos diplomas que constituem o ordenamento jurídico em vigor ? É o conjunto das instituições e organizações que estruturam o regime ? É o conjunto dos funcionários e burocratas que asseguram a administração pública ? É o conjunto dos políticos e dos partidos que influenciam o funcionamento das instituições ? São todos os referidos anteriormente ?

Esta complexidade prolonga-se na necessidade de garantir que uma entidade tão multifacetada como o Estado persegue, com autenticidade, o chamado “interesse público”. O “interesse público”, por sua vez, padece também da pecha da indefinição e o mesmo se passa, para os que preferem esta terminologia, com os “interesses de classe”.

Nos sistemas democráticos como o nosso o “interesse público” é supostamente definido pelas consultas populares que seleccionam programas partidários e que estabelecem maiorias parlamentares. Os parlamentos e governos que emanam dessas maiorias são constituídos por políticos que têm “autorização” para, de acordo com regras estabelecidas, modificar as leis, governar as instituições, nomear e gerir os funcionários. Em suma, realizar o “interesse público”.

As coisas estão longe de ser simples já que são escolhidos partidos diferentes, quiçá contraditórios, para diferentes instituições (parlamento, presidência, autarquias) e também porque os programas eleitorais dos partidos concorrentes às eleições sofrem do defeito inicialmente atribuído a todos os textos: dizem tudo mas são sempre incompletos. Esse defeito também afecta, como já referimos, as próprias leis que serão produzidas pelo partido vencedor.

Como se tudo isto não bastasse ainda temos a celebrada “alternância democrática” que, em vez de ser prova da vitalidade do sistema, é antes de mais um reconhecimento das falhas do sistema. Dito de outra maneira: se a consulta popular opta pelo partido A e, passados dois anos, vota em B para se livrar de A, então é porque as decisões democráticas não garantem a bondade das soluções políticas e, como tem sucedido, cada nova escolha constitui um erro que o futuro tem que corrigir. É como se o “interesse público” fosse redefinido ao sabor das conjunturas. As interpretações pós-eleitorais produzem intermináveis discussões sobre o verdadeiro sentido da votação.

Para Lenine o Estado era, de forma algo linear, apenas a demonstração da injustiça inerente às sociedades divididas em classes. Lenine não conheceu o “Estado Social” da época da mediatização, nem a alternância, e estava fundamentalmente preocupado com o perigo do patriotismo no esbatimento da “consciência de classe”.

Curchill dizia que “a democracia é a pior forma de governo se exceptuarmos todas as outras que já foram experimentadas”, e isso continua a ser verdade no que toca à determinação do “interesse público”, mas há cada vez mais vozes que exigem a reinvenção da democracia, como tem feito José Saramago, com base nos crimes que têm cometidos em seu nome.

Também não é claro se aqueles que votam, quando o fazem, estão a pensar na realização do “interesse público” ou a defender os seus interesses pessoais. Na segunda hipótese as votações definiriam o “interesse público” como o somatório dos interesses individuais o que corresponde à concepção liberal.

Não se pense, apesar de tudo o que foi dito, que pretendemos pôr em causa o regime democrático; trata-se apenas de pedir atenção para a complexidade e variabilidade da noção de “interesse público” e para a dificuldade em assegurar que o Estado, enquanto tal, procede consequentemente com vista à sua realização.

Se não temos, para já, uma alternativa melhor do que a democracia vigente para assegurar o governo da sociedade e é portanto compreensível que nos sujeitemos às suas imperfeições isso não pode de maneira nenhuma autorizar a mitificação do Estado hoje tão em voga.

Tal mitificação consiste em assumir, sem qualquer fundamento, um Estado “antropomórfico” que tem uma vontade e desígnios tendentes à realização da justiça e mesmo à correcção das injustiças. Assim, o Estado como que “personificaria” o interesse geral independentemente dos resultados das eleições. Muitos consideram aberrantes as decisões do eleitorado quando as maiorias resultantes não correspondem à sua particular concepção do “interesse público” sem se darem conta de que, em última instância, isso é uma forma de impugnar a própria democracia.

A partir desse mito se deduzem as concepções inadequadas, hoje dominantes na esquerda, que levam à rejeição liminar de qualquer forma de privatização das funções actualmente asseguradas pelo Estado. Ao arrepio de Marx deixou de se opor o modo de produção A ao modo de produção B e passou a opor-se uma pretensa “autoridade moral” do Estado contra o poder económico civil, omitindo descradamente a questão do modo de produção. Uma coisa é certa, o Estado não é o embrião de um novo modo de produção e a sua importância advém, no essencial, de estarmos numa fase de transição em que o modo de produção capitalista já não “resolve” os problemas sociais e o novo modo de produção ainda não floresceu.

Esta deturpação teórica poderá eventualmente ser explicada pelo número enorme de cidadãos que hoje dependem economicamente do Estado.
Segundo Medina Carreira “temos 4,5 milhões de indivíduos que integram uma espécie de "Partido do Estado" (Cerca de 730.00 funcionários públicos; 2.591 000 pensionistas da Segurança Social; 477.000 reformados e pensionistas da Caixa Geral de Aposentações; 307.000 beneficiários do subsídio de desemprego; 351.000 beneficiários do RMI. Com os familiares próximos poderão ser uns 6 milhões de indivíduos, numa população de 10 milhões)”.

Ao contrário do que se poderia pensar este “Partido do Estado” não é constituído por cidadãos com uma visão uniforme mas sim por grupos cujos interesses podem até ser contraditórios (por exemplo os gastos com os salários dos funcionários reduzem os montantes disponíveis para financiar as reformas).

Nesta fase a opinião sobre o Estado e o papel que lhe cabe na sociedade são fundamentais para a caracterização dos estratos sociais; quando as condições sociais e económicas se degradarem para além de certos limites veremos emergir conflitos de classe de novo tipo e em nova escala e essa será, provavelmente, a profunda crise que acabará por abrir caminho ao novo modo de produção.

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