Acabei de ler o livro do José Gil.
Confesso que era um dos livros da lista que eu tencionava não ler (junto com O Código Da Vinci e Equador) por se terem tornado best sellers de citação obrigatória, apoiados numa forte máquina de marketing e/ou na mediatização prévia dos seus autores.
Mas ofereceram-mo e li; e dei o tempo por bem usado porque pensei bastante, a propósito e despropósito do que ia lendo, acontecendo esta ultima situação quando, por falta de preparação ou de apetência para elucubrações filosóficas mais abstractas, deixava a vista ir percorrendo alguns parágrafos enquanto me questionava sobre onde é que tudo aquilo me levaria.
Interessou-me bastante a questão do “espaço publico” ou melhor, da sua ausência, e do preenchimento pelos media do vazio ruidoso que ele deixa. É um “fraseamento” excelente de algumas ideias que me surgiam empìricamente.
A propósito, encontrei no EXPRESSO do dia 19 este “boneco” que ilustra bem esta ideia (e do qual me aproprio, como deve acontecer em espaço público, dando-lhe um novo uso, com a devida vénia para o autor).
Tenho sentido “na pele” as manifestações da sombra branca ao tentar lançar para discussão pública algumas ideias novas ou pelo menos fora dos contextos estabelecidos. Mesmo quando se consegue ultrapassar algumas barreiras materiais para chegar às outras pessoas, depara-se no geral com o silêncio; não se é criticado, nem sequer achincalhado, é-se pura e simplesmente ignorado; como se nada tivesse acontecido. E tal coisa não tem nada a ver com a qualidade da mensagem; tem que ver com o incómodo por ela causado.
José Gil reconhece isso e honestamente engloba neste sistema o que se passou com ele: o êxito mediático das suas teses deve-se não à sua qualidade mas à notoriedade que lhe foi dada pela tal revista francesa....
Embora o salazarismo e a sua envolvente melíflua de medo possam aparecer como os “ladrões que nos roubaram o espaço público”, penso que a coisa tem raízes mais fundas; aliás 50 anos são muito pouco tempo para cimentar no inconsciente cultural de um povo moldes tão infra-estruturantes como a “não inscrição”.
O espaço público foi-nos roubado quando se instalou a Inquisição. Neste caso não me refiro às fogueiras, à privação da liberdade física, à tortura ou à morte; tudo isso era comum nas “justiças” da época. Refiro-me ao risco de pensar pela própria cabeça, ao receio do novo e do diferente, à desconfiança pelo que vem de fora, à dissimulação, ao fingir que não se vê o que não se pode suportar, ao anseio pela segurança que será garantida se se seguir em tudo a “cartilha oficial” e se respeitar as hierarquias e a ordem estabelecidas.
E não esqueçamos que por sua vez, a Inquisição (não como “instituição” mas como “sistema cultural”) se instaurou numa sociedade de características senhoriais muito resistentes. Os descobrimentos e o comércio ultramarinos eram monopólio da coroa que os usava e distribuía como “feudos”. Dos senhores, com o rei no seu vértice, vinha a justiça e a tirania, a riqueza e a espoliação, a orientação e a proibição, a recompensa e o castigo, a salvação e a morte. Tudo muito longe de sociedades onde os mercadores eram plebeus auto-organizados e os cristãos eram incentivados a interpretar a bíblia...
Se olharmos para a História de Portugal desde então até aos nossos dias perceberemos que as “vigas mestras” do edifício social continuaram praticamente as mesmas: mudou a decoração... O sebastianismo, a acção do Marquês de Pombal, o papel de Pina Manique, as lutas liberais, o período da monarquia constitucional, a 1ª republica, o salazarismo e finalmente a democracia em que vivemos, tudo ganha novos contornos quando examinado a esta luz. Era uma tarefa que merecia a pena empreender!
Tudo isto a propósito de José Gil considerar (penso eu!) que o período salazarista é a causa das realidades sócio-psicológicas que ele tão bem caracteriza .
Eu considero que o “sistema” salazarista mais do que causa foi uma encarnação dessas realidades subjacentes; o que aliás explica o grande sucesso que teve na implementação do seu projecto e a aceitação de que gozou junto de largas camadas da população, principalmente nos primeiros tempos. Por mais que isto nos desagrade, é uma realidade que não devemos escamotear.
Até ao fim fiquei na expectativa de José Gil ir dar uma pista de saída do “nevoeiro branco”.
Não a encontrei; ou então talvez não tenha percebido o que quer ele exactamente dizer com “a nossa capacidade de fluir entre dois estratos, entre duas forças que nos prendem” e com “o nosso sentido lúcido do real, do pensamento claro” (pag. 139).
É verdade que não fizemos o luto do salazarismo. Como não fizemos ainda o luto do feudalismo, nem o luto da inquisição.
Por vezes penso que vamos ter de fazê-los todos de uma vez juntamente com o luto do regime democrático....
E com esta afirmação de “bradar aos céus” penso que é altura de terminar por agora este texto politicamente incorrecto que já está a ficar muito longo!
2 comentários:
Excelente analise e complemento 'as ideias de Jose Gil.
Tambem acabei de receber este livro como presente e estou a gostar da forma como Jose Gil explica a nossa insatisfacao crescente da nossa identidade.
O espaco publico ou a falta dele e' talvez o acelerador principal dessa insatisfacao e essa necessidade de ir alem fronteiras procurar o substituto.
Tive a experiência de viver durante alguns anos fora de Portugal e contacto frequentemente com realidades externas. Habituei-me a ver Portugal de dentro para fora e de fora para dentro. A caracterização, complexa, de Portugal é um assunto que me apaixona e resolvi ler o Portugal Hoje - O Medo de Existir, de José Gil. Apesar de algumas ideias e considerações com interesse, não aderi ao livro.
A "personalidade" portuguesa é fruto de muitos factores naturais e históricos. Atribuir tão directamente a mentalidade actual à herança salazarista, como o autor faz, é redutor. Só a título de exemplo, a escrita de Eça, anterior a esse período, retrata com muita fineza e pertinência vários aspectos característicos do português e de Portugal que permanecem actuais. É necessário ir mais longe: a influência da riqueza fácil dos Descobrimentos; a transição do D. João II empreendedor para D. Manuel I gastador; a matriz religiosa; a romanização; a arabização e, inclusive, a geografia do país.
O livro tem demasiados "sempres" e "nuncas" para ser exacto. Um funcionário público lisboeta tem um temperamento muito diferente de um viticultor transmontano. Muitas, para não dizer todas, as peculiaridades referidas avulsas podem ser, individualmente, encontradas em gentes doutros povos. Existe seguramente um traço característico português, mas a sua definição correcta necessita de maior rigor científico, de estudos sérios comparativos e de uma base estatística adequada. Não basta referir que "uma vez um visitante disse...". Também não se pode comparar os portugueses com uma elite parisiense, por exemplo. Seria um pouco como, num dado país, presumir que todos os portugueses são trolhas ou padeiros, por ser esse o grupo dominante dos imigrantes aí estabelecidos.
A questão recorrente de que Portugal não tem filósofos não recolhe o meu acordo. Só para referir um nome, Fernando Pessoa foi um filósofo espantoso, com uma forma de expressão particular e muito interessante.
Portugal mudou muito nos últimos, digamos, 12 anos. Considerar que "o horizonte espiritual do povo inteiro [...] com excepção de certos artistas e homens de cultura continua a ser o de antigamente", é um pretensiosismo elitista desajustado da realidade. A expressão irónica "à antiga portuguesa" é hoje usada em variadas circunstâncias para qualificar situações com uma dinâmica e um sentido de compromisso que já não se aceitam. A "responsabilidade" para algumas mudanças está precisamente em sermos menos "ilhéus isolados", uma vertente da tal globalização maldita pelo autor.
Temos dificuldades em definir a nossa identidade. Não temos, no entanto, dúvidas de que ela existe. Temos a certeza de existir. Temos aspectos mesquinhos a corrigir e temos qualidades a identificar e a explorar. Temos curiosidade por sabermos quem somos, como somos, daí o sucesso do livro. E isso é já positivo e original para um povo que não tem filosofia.
Um dos nossos pontos negativos é a ligeireza na auto-avaliação. Talvez uma face da famosa "não inscrição".
Carlos J. F. Sampaio
Esposende
Enviar um comentário