quarta-feira, abril 09, 2014

APACHE



APACHE

- Despacha-te. Já estamos a ficar atrasados…
O tenente tentava apressar a sua jovem esposa que se alongava à frente do espelho.
O quarto tinha chão de cerâmica e mobiliário rudimentar, em grande parte desencantado nos armazéns do quartel. O que não se encontrara tinha sido inventado com caixotes de munições, primorosamente pintados, e garrafas grandes de Perrier atafulhadas de flores.
Uma esteira na parede exibia Che Guevara, fixado com dois punaises, de charuto entre os dedos e sorriso largo, ao lado da imagem icónica do vietcong, de mãos atadas, a ser alvejado na cabeça por um polícia. O tenente e a mulher tinham vindo directamente dos meios progressistas da universidade para a guerra na Guiné.
Enquanto ele comandava um pelotão de fuzileiros ela tentava garbosamente explicar os feitos de Afonso Henriques aos jovens mandingas e balantas que frequentavam o liceu.
As janelas da casa eram guarnecidas por mosquiteiros e davam para um esboço de alpendre.
Na sala acantonavam-se os livros que a bagagem militar tinha permitido e o gira discos de plástico com os seus long playings. Um recanto de cultura com que tentavam resistir aos dois anos de desterro.
- Despacha-te!
A sessão no cinema dedicada ao pessoal da Armada era sempre ao Domingo de manhã e estava prestes a começar.
Da casa do tenente numa transversal até à Avenida da República, onde se situava o cinema, não se demorava mais de dez minutos.
Saíram à pressa e seguiram, rua fora, contornando os montes de insectos que os varredores tinham arrumado contra os muros das casas, naquela zona quase toda habitada por brancos.
Quando chegaram à Avenida da República em vez de virarem para a esquerda, na direcção do palácio cor de rosa do Governador, giraram em sentido oposto e atravessaram para o lado de lá, onde se erguia o cinema.
Foi então que notaram algo inusitado. O tenente que, dado o seu atraso, esperava chegar já com a projecção a decorrer avistava magotes de fardas brancas agitando-se nas escadarias de acesso à sala.
Depois começou também a ouvir-se a algazarra.
Quando viram o primeiro tipo conhecido perguntaram-lhe o que se passava.
- Os marinheiros e grumetes querem levar também as mulheres para o balcão, como fazem os sargentos e os oficiais.
Não eram muito numerosos aqueles que estavam em comissão acompanhados pela mulher mas, até por causa disso, não se sentiam à vontade numa plateia cheia de homens sempre prontos para dixotes e calduços.
O balcão, onde assistiam circunspectos os oficiais, sobrevoava aquela balburdia como se ela não existisse.
Era então por causa disso que o átrio do cinema fervilhava; a arraia miúda recusava-se a ocupar os lugares na plateia enquanto os seus colegas casados não tivessem permissão para se sentar no balcão com as caras metade.
- A mulher de um oficial não é mais nem menos do que a mulher de um marinheiro
Gritava o enorme cabo João, barbudo como um apóstolo, para o capitão-de-fragata, segundo comandante da Guiné, que lhe segurara o braço e que, no minuto seguinte, sacudido pelo João, se estatelava nos degraus.
Foi nesse instante que o tenente percebeu que as coisas estavam fora de controle.
As tensões tinham vindo a acumular-se nos úlimos meses.
Não havia talheres suficientes no refeitório nem ventoinhas nas casernas.
No quartel, junto ao Geba, os protestos tinham vindo a suceder-se sem que o Comando Naval tomasse medidas para os obviar.
O cinema tinha sido o rastilho para soltar todos os ressentimentos.
Entretanto o capitão-de-fragata recompôs-se da queda e deu ordem ao cabo da guarda, em serviço de patrulha, que detivesse o cabo João.
O que se passou a seguir foi confrangedor, ou seja, não se passou nada. O cabo da guarda fez de conta que não tinha ouvido qualquer ordem e desandou no jipe sob as invectivas do superior.
De um momento para o outro, sem se perceber como, centenas de fuzileiros começaram a descer a avenida da República, a mais importante da cidade, como uma onda branca ululante que nenhuma força se atreveria a deter.
Alguns subordinados do tenente, com quem privava mais frequentemente, aconselharam-no a regressar a casa e a passar o Domingo calmamente em família.
Lá mais para a tarde o tenente soube pelos colegas que beberam lá em casa umas cervejas que no quartel, tomado nessa manhã pelos fuzileiros, a hierarquia deixara de vigorar e que o oficial de serviço, mais recalcitrante, tivera que deixar o seu posto correndo à frente das garrafas de Cuca que os marinheiros lhe atiravam.
O capitão-de-mar-e-guerra, a maior autoridade do comando naval, vira-se forçado a visitar o quartel e a contemporizar com a rapaziada. No essencial atendera todos os seus pedidos.
O tenente soube de todos estes desenvolvimentos com visível satisfação já que se tratava da coisa mais parecida com uma insurreição que lhe fora dado observar nos vinte e dois anos que levava de vida. E não sabia ele então para o que estava guardado.
Para comemorar tomaram a decisão de ir ao cinema, em grupo, depois do jantar.
O filme em exibição era o “Apache” do Robert Aldrich, coisa que o tenente nunca mais esqueceu.
Como de costume, no espaço que medeia entre a primeiras cadeiras da plateia e o écran, tinham sido colocados uns bancos corridos, de madeira, para a ganapagem que se dedicava a transportar as marmitas da messe e outros pequenos serviços ao domicílio.
Os garotos negros, em grande algazarra, aplaudiram todas as flechas e machadadas com que os índios brindaram a cavalaria durante aquela hora e meia.
O índio Burt Lancaster deve ter povoado os seus sonhos infantis quando, já noite alta, regressaram à tabanca.

Sem comentários: