domingo, maio 04, 2014

Sobre a esquerda e as esquerdas



Sobre a esquerda e as esquerdas

por João Bernardo

"Desde a sua origem, antes ainda da génese do marxismo, que na esquerda existe um acentuado pendor para o estatismo. Não se trata para essa esquerda de alterar as relações sociais de trabalho, mas de concentrar no Estado os principais mecanismos de decisão económica. Esta é a esquerda que corresponde exclusivamente aos interesses da classe dos gestores, cujo acesso ao capital passa pelo exercício de funções administrativas e não pela detenção de propriedades.
Os gestores podem ascender tanto no aparelho tecnoburocrático das grandes empresas como no aparelho tecnoburocrático do Estado. Todavia, as grandes empresas são muito exigentes nos seus critérios de selecção, que passam pela avaliação dos currículos e por entrevistas, intermediadas nas esferas superiores por firmas especializadas em recrutamento. É certo que há uma circulação entre os quadros administrativos das grandes empresas e a administração estatal, mas apenas enquanto assessores ou ministros técnicos, porque o acesso aos postos elegíveis obtém-se graças a clientelas partidárias ou simples compadrios. Ora, como não se trata aqui de convicções mas de oportunidades, pode ser conveniente usar com fins eleitorais um rótulo de esquerda, devido ao seu apelo populista. Esta diferença nos processos de escolha explica que os gestores candidatos eleitorais em listas de esquerda sejam muito menos competentes do que os seleccionados por recrutamento, o que leva a militância partidária na esquerda estatista a atrair sobretudo a tecnoburocracia de segunda e terceira ordens.
A armadura jurídica do capitalismo pode assim ser discutida pela esquerda no aparelho de Estado e eventualmente remodelada, enquanto nas empresas as relações capitalistas de trabalho se mantêm ou são mesmo reforçadas. Já na União Soviética o apreço pelo taylorismo fora levado a um grau extremo, a tal ponto que foi aí, durante os planos quinquenais, e não nos Estados Unidos, que se realizaram as maiores experiências fordistas. A situação não mudou e para esta porção da esquerda socialismo continua a significar ampliação do poder de decisão económica do Estado, ficando completamente posto de lado o problema das relações sociais de trabalho. É um socialismo de gestores, não de trabalhadores.
Existe uma subespécie de eternos candidatos a gestores que têm como programa a ocupação do poder de Estado, mas com ilusões tais que nunca podem ser satisfeitas. Distinguem-se dos outros não pelos objectivos últimos, que em ambos os casos é a estatização da economia, mas pela ausência de noções práticas quanto ao caminho a percorrer. E como a sua vocação para o fracasso os leva a imaginarem-se revolucionários, consideram que é o sucesso eleitoral que classifica os outros como reformistas. Na verdade, trata-se de uma esquerda governamental in partibus, que só parece exterior às instituições estatais porque não consegue inserir-se nelas.
Nem conseguirá porque julga que o capitalismo perdeu as potencialidades de crescimento e o dinamismo interno. Esta esquerda é incapaz de se dar conta do aprofundamento do sistema de exploração e das novas formas de concentração económica que garantem ao capitalismo o aumento da produtividade e dos lucros e uma grande capacidade de absorção dos conflitos sociais. Embora invoque sempre referências marxistas, a sua compreensão nunca foi além da mais-valia absoluta. Os mecanismos da mais-valia relativa e da renovação das classes dominantes mantêm-se para ela envoltos em mistério.
O facto de arrastar uma história composta toda de fracassos não desanima esta esquerda, que se ocupa exclusivamente em dar lições aos governantes e aos patrões sobre a maneira de gerir o Estado e a economia e em profetizar o fim iminente do capitalismo. É estranho que não se dê conta de que traça assim uma distância crescente entre a sobranceria apocalíptica com que se refere ao capitalismo e a desconsolada mediocridade a que se confina. Qualquer teoria da revolução ficaria sem sentido se a crise do capitalismo não correspondesse à ascensão dos revolucionários e se a crise em que os revolucionários se encontram não indicasse a hegemonia do capitalismo."
Ler aqui http://passapalavra.info/2014/04/93811 o texto completo do João Bernardo

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