O Século do meu Pai
O meu pai, se não tivesse
morrido em 2010, faria hoje 100 anos.
Deste século familiar eu
assisti às últimas sete décadas e os meus filhos a quatro.
Somos sem dúvida o produto, e
testemunhas, de uma impressionante transição social que se processou durante o
século XX e da qual a nossa família, como tantas outras, é ilustração.
A minhas opiniões sobre a
pobreza, sobre o trabalho, sobre o Estado e em geral sobre política , que por
vezes surpreendem os meus amigos, talvez se percebam melhor à luz das minhas
experiências de vida.
O meu pai nasceu numa aldeia
da Beira Baixa e a minha mãe igualmente numa aldeia da zona de Tomar. Ambos analfabetos,
filhos de pequeníssimos agricultores vieram para Lisboa na adolescência; ela
como criadita “de servir” e ele, que fugiu de casa, conduzindo por Lisboa um
burro com que praticava o “leva as cascas leva as folhas” (recolhia os restos
pelos mercados e restaurantes e vendia nas vacarias então existentes dentro da
cidade).
Quando a minha irmã nasceu em
1937 o meu pai, que aprendera a ler no regimento, tornara-se operário da
construção e a minha mãe comprava e vendia roupa em segunda mão ao domicílio.
Viviam numa parte de casa, ou seja, partilhavam uma casa com várias famílias.
Quando eu nasci ainda vivíamos
nessa mesma casa e as minhas memórias de infância retiveram o “pantomineiro”,
que vivia lá também, alimentando os seus répteis para fazer uns vagos
espectáculos de venda de banha da cobra, bem como a mulher sempre de robe
brilhante e grande cabeleira frisada. A dona da casa, uma velha camponesa
transplantada para o Alto do Pina, dava-me a provar do tinto desde a tenra
infância, às escondidas dos meus pais.
Nessa casa, onde vivi até ir
para a marinha (numa altura em que a minha família já morava sózinha), havia um
mastodôntico fogão a lenha para uso de colectivo e um jarrão em barro repousando
no proverbial “pial do pote”. O
fogareiro a petróleo constituiu uma revolução nas operações da cozinha,
permitindo veleidades independentistas.
Ouvi muitas vezes os meus pais
discutirem sobre a necessidade de recorrer ao penhorista no dia seguinte para,
em troca dos brincos ou das alianças (o património da família), obter algum
dinheiro e sobreviver em períodos de crise ou falta de trabalho. Qualquer
doença era um grande contratempo económico e a gravidez inoportuna era
prontamente interrompida por umas senhoras que apareciam lá em casa, nem sempre
de forma discreta.
A roupa era feita em casa, ou
comprada usada, e ninguém sabia o que era “roupa de marca”.
A certa altura o meu pai
começou a negociar em velharias ao domicílio e acabou por conseguir uma loja
onde vendia mobílias “importadas” de Paços de Ferreira, Rebordosa e Baltar.
Tornou-se patrão de dois ou três polidores (as mobílias compradas “em branco”
eram polidas em Lisboa) e passou a disfrutar de um certo desafogo económico que
lhe permitiu mandar-me para a universidade (a minha irmã, oito anos mais velha,
não teve essa sorte).
Aos domingos partíamos no
carrito Hillman verde para a “volta dos tristes” que incluía sempre um almoço
em restaurante económico de Cascais.
Aos sessenta anos a mãe,
motivada pelas cartas da minha irmã, entretanto emigrada na América, apredeu
algumas luzes de leitura.
Depois de muitos anos de
trabalho o meu pai amealhou o suficiente para construir um pequeno prédio na
Póvoa de S. Adrião, que nessa altura era
um sítio remoto e despovoado. Tratava-se de arranjar um rendimento que
permitisse viver confortávelmente quando os anos pesassem e ele tivesse que
deixar de trabalhar. O posterior congelamento das rendas e as inflacções
enormes dos anos 80 deitaram por terra, impiedosamente, o seu simulacro de
pensão de reforma.
Viveria o resto da sua vida
com bastantes dificuldades económicas se não fosse alguma ajuda dos filhos.
O meu pai ainda conheceu a
primeira república, a penuria durante a segunda guerra mundial, e detestou toda
a vida, em surdina, o regime fascista. Cultivava,
em privado, um anti-clericalismo radical.
Já a minha geração foi
protagonista de uma gigantesca viragem cultural e política nos anos 60.
Conspirámos contra o regime,
fomos à guerra colonial em África e tentámos uma Revolução em contra-ciclo.
Ao longo de pelo menos cinco
gerações nunca ninguém da família viveu do erário público, nem como
empregado, nem como subsidiado nem como fornecedor. Para uma família como esta,
que na minha infância rondava o neo-realismo, o Estado foi quase sempre o
polícia, a proibição e a multa, o guichet mal encarado, a repressão política, a
arrogância do médico e do professor perante a modéstia do doente e do aluno.
Eu, como não tinha queda para
as mobílias, adoptei uma profissão nas tecnologias emergentes e vivi dela até à
minha reforma. Trabalhei para uma grande multinacional, fui sindicalista e
empresário. Corri meio mundo. Tive acesso às mais elevadas formas de cultura.
Pude, assim, proporcionar aos
meus dois filhos as oportunidades que eles entendessem aproveitar.
Espero que em 2045 eles possam
também fazer um balanço positivo dos meus 100 anos.
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