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Será que eles não sabem que nós sabemos?
Por José Vítor Malheiros, Público 01.11.2009
Cícero, que foi um dos mais respeitados estadistas e pensadores romanos, regressou muitas vezes nos seus escritos de filosofia política à questão da reputação dos homens públicos. Escreveu mesmo uma obra em dois volumes dedicados ao tema, Da Glória. A obra perdeu-se e dela apenas se conhecem referências, mas o que ficou nos escritos que sobreviveram é suficiente para se perceber a importância central que a questão lhe merecia. Tão político como filósofo, Cícero tece sobre a reputação do homem público as esperadas considerações éticas, mas não se fica por aí, recheando as suas observações de conselhos pragmáticos que incluem a necessidade de calcular os benefícios que se podem colher quando se faz um favor a alguém. Ou seja: apesar de ter sido um político astuto e calculista, Cícero sabia e defendia a importância da reputação - a conveniência de todo o homem político proteger e promover a sua reputação e a necessidade de a república escolher para os cargos de poder os homens (as mulheres não estavam em causa) de mais sólida reputação, para garantir a confiança da população.
Se a preocupação com a reputação é antiga, nos últimos anos ela tornou-se ainda mais viva, à medida que se desenvolveram as tecnologias de informação e comunicação que permitem hoje espalhar em minutos uma informação por todo o globo - e fabricar ou esmigalhar uma reputação. As empresas vivem para a reputação e pela reputação das suas marcas (chamam-lhe "imagem") e os políticos (pelo menos nas democracias) não possuem bem mais precioso.
Posto isto, o que é estranho é como, na nossa democracia (e noutras), a reputação das pessoas parece ser tão pouco levada em conta quando se trata de escolhas para lugares de relevância, sejam eles políticos ou empresariais. Falo naturalmente da reputação em termos éticos, de honestidade, já que a competência técnica e as capacidades intelectuais têm aqui uma importância de terceira ordem, como lembra, mais uma vez, Cícero ("Se um homem não for considerado honesto, quanto mais sagaz e inteligente ele for mais será detestado e objecto de desconfiança").
Lembrar-se-ão os políticos que, quando nomeiam uma pessoa para um determinado cargo, essa pessoa possui uma reputação pública e que essa reputação se vai reflectir sobre a sua própria? Saberão que, mesmo que não tenha havido "sentença transitada em julgado", há pessoas que todos consideramos escroques? E que há outras que consideramos honestas? Como? Devido às suas posições públicas, aos benefícios que recolhem delas, aos sacrifícios que correram para fazer coisas justas, ao que dizem delas os próximos e os adversários, aos amigos que cultivam e, sim, também às histórias que ouvimos. Rumores sem fundamento? Alguns sim, mas há perfis que vão ganhando peso, peças que se vão ajustando no puzzle, testemunhos que consideramos credíveis que vão solidificando a nossa opinião.
Imaginará um ministro ou uma assembleia de accionistas de um banco que a pessoa que escolhem não possui uma reputação? Imaginarão que nós não sabemos? Imaginarão que não perguntamos uns aos outros até ter uma ideia de quem é fulano? A má reputação (a verdadeiramente má, não a de Brassens) não é um crime nem precisa de ser alimentada pelo tipo de provas que permite escrever uma notícia de jornal ou fazer uma queixa à PGR. Pode apenas ser a convicção de que a pessoa em causa gosta mais de dinheiro do que devia, que não hesita em trair um amigo para se aproximar do poder, que tem uma noção vaga do que seja a decência, que se considera a si e ao seu partido acima das leis. Nós sabemos quem eles são. E é por isso que é raro, tão raro, que uma notícia de uma suspeita ou de uma condenação por corrupção ou por desvio de fundos seja recebida com surpresa na redacção de um jornal ou no café do bairro. Na esmagadora maioria dos casos, são escândalos à espera de acontecer. E quando os escândalos não acontecem isso apenas serve para prejudicar a reputação de quem os devia trazer à luz. (jvmalheiros@gmail.com)
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