terça-feira, abril 03, 2007

As Vidas dos Outros

Ao ver o filme As Vidas dos Outros (2006), do alemão Florian Henckel von Donnersmarck, senti necessidade de escrever sobre ele. O filme questionava-nos a muitos de nós que tínhamos chegado a visitar a RDA (República Democrática Alemã) e a pensar que aquele regímen era, na Europa Oriental, um dos que tinha melhor vencido as dificuldades do "socialismo real" e onde era possível a "construção de uma nova sociedade". Posteriormente, com a queda do muro, começou-se verdadeiramente a perceber o atraso e a penúria daquele regímen, tão bem retratados no filme, controlado por uma partido único (neste caso uma coligação à força de partidos diferentes) e por uma polícia política tão omnipresente como era a Stasi.




Tenho encontrado nas várias críticas publicadas na blogosfera algumas referências ao carácter simbólico da situação descrita no filme – a tomada de consciência de um oficial da Stasi sobre os malefícios do regímen socialista – e houve quem o comparasse, numa crítica bem elaborada, com o célebre filme de François Truffaut, Fahrenheit 451, em que um bombeiro, que queima livros em vez de apagar fogos, vai progressivamente tomando consciência do horror que era viver numa sociedade que tinha eliminado para todo o sempre a leitura, a fonte de toda a infelicidade. Quanto a mim, apesar do filme poder corresponder à descrição de qualquer regímen que utilize a violência policial para controlar os cidadãos, refere-se à situação concreta do sistema opressivo existente na ex-RDA, que, dada a conhecida eficácia alemã, tinha das polícias mais bem organizadas da Europa de Leste. No caso vertente, isso consistia na vigilância dos intelectuais, estivessem eles ou não em sintonia com o regímen, pois mesmo que fossem seus defensores, como é o exemplo da personagem do dramaturgo Georg Dreyman, interpretada por Sebastian Koch, poderiam ser sempre potenciais dissidentes. O intelectual, em todos os sistemas ditatoriais, é sempre um ser pensante, fonte de desconfiança e de infidelidades várias.
Neste filme há duas tomadas de consciência em relação à situação opressiva que se vivia naquela sociedade, a do dramaturgo, provocada pelo suicídio de um seu companheiro de escrita e amigo, que estava impedido de publicar, e a do oficial da Stasi encarregue de exercer vigilância sobre o apartamento onde aquele dramaturgo vivia com a sua companheira, a actriz Christa-Maria Sieland, interpretada por Martina Gedeck, que era simultaneamente desejada pelo Ministro da Cultura. Posteriormente, a progressiva consciencialização das personagens leva-as a formas concretas de resistência, a do dramaturgo ao publicar no ocidente, com a ajuda de outros intelectuais, um artigo sobre a supressão na RDA de notícias relativas a suicídios, a do oficial, ao não denunciar a actividade do seu vigiado e ao evitar, pela eliminação providencial de uma máquina de escrever onde fora batido o artigo, a sua prisão.
Pode-se considerar que na vida real será pouco verosímil que um oficial torturador, era essa uma das actividades do capitão da Stasi, se transforme em vítima por sua própria iniciativa, já no filme a personagem do capitão Gerd Wiesler, interpretada por Ulrich Mühe, que passa de oficial respeitável a simples funcionário destacado para a abertura do correio, parece-me mais convincente. Contudo, ao contrário do que vi bastantes vezes referido, acho que a causa da sua traição foi mais o resultado da sua atracção pela actriz e o conhecimento que teve de que ela, para conservar a sua carreira, era obrigada a ter relações sexuais com o Ministro, do que por ter concluído que o objecto da sua vigilância não era desmascarar um dissidente encapotado, mas sim a eliminação de um rival dos desejos sexuais do Ministro.
Esta dupla tomada de consciência, sob o pano de fundo de uma RDA pobre e triste, decorre simultaneamente com a explanação do que é um Estado policial e persecutório, em que a vida e as carreiras são feitas de delações e pequenas cedências que, em último caso, pode levar ao suicídio, como sucedeu com a actriz, quando percebeu que a sua colaboração com a Stasi permitiria a prisão do seu companheiro. O filme termina, caído o muro e unificada a Alemanha, com a descoberta pelo dramaturgo de quem tinha evitado a sua prisão e escrevendo uma peça em homenagem àquele oficial da Stasi, que se tinha comportado como um homem bom. Estavam pacificadas as consciências.
Este filme, que recebeu o Óscar para o melhor filme estrangeiro, insere-se na recente produção alemã de média qualidade e de grande êxito comercial, que recuperou alguns dos temas do seu passado recente, quer do nazismo quer da reunificação. Como exemplo, temos A Queda – Hitler E O Fim Do Terceiro Reich (2004), de Olivier Hirschbiegel, Sophie Scholl – Os últimos dias (2005), de Marc Rothemund ou Adeus, Lenin! (2003), de Wolfgang Becker.
Ao contrário de Adeus, Lenin!, que tinha também uma visão bastante amarga da RDA, mas mostrava as dificuldades de integração dos habitantes de leste na nova ordem capitalista, As Vidas dos Outros estabelece uma continuidade entre a tomada de consciência e a opção de resistir dos dois alemães do leste e a nova ordem que resulta da reunificação da Alemanha. O dramaturgo depois de ter publicado no ocidente o seu texto de denúncia da ausência de suicídios na RDA continuará, a seguir à reunificação, a ser representado e a publicar peças de teatro. Sem desvalorizar este retrato impiedoso do socialismo real dado pelos dois filmes referidos, considero que estamos longe do cinema inquietante dos anos 70 de Rainer Werner Fassbinder (ver O Direito do Mais Forte à Liberdade, 1974), de Volker Schlöndorff (A Honra Perdida de Katharina Blum, 1975), de Margarethe von Trotta (Os Anos de Chumbo, 1981) ou do filme colectivo Alemanha no Outono (1977). Estes três últimos exemplos referem-se expressamente à forma repressiva e histérica como a Alemanha Federal reagiu aos atentados do grupo Baader-Meinhof e à sua prisão, os chamados anos de chumbo, parafraseando o filme de Trotta. É evidente que os tempos são outros, aos anos 60 e 70, de contestação política, estudantil e intelectual, seguem-se os da derrota e de denúncia daquilo que foi o embuste do socialismo real.
Adeus, Lenin! e As Vidas dos Outros são feitos hoje, depois da queda do muro, por realizadores que não faziam cinema naquela altura e a quem são concedidos meios para produzirem a sua obra. Por isso, a estes gostaria de acrescentar alguns filmes que fui vendo ao longo dos anos e que foram realizados por cineastas do sistema, em condições provavelmente mais adversas e reflectindo o circunstancialismo da época. Lembraria do cineasta polaco Andrzej Wajda, O Homem de Mármore (1977), do húngaro Pal Gabor, A Educação de Vera (1978), ou, mais recentemente, do russo Nikita Mikhalkov, O Sol Enganador (1994) ou do jugoslavo Emir Kusturica, Underground (1995). São filmes diversos, realizados por cineastas que tiveram percursos e opções posteriores diferentes, algumas contraditórias com o seu passado, mas cuja obra deveria ser revisitada, tendo em conta que muito do que hoje é dito já se encontrava aí expresso, numa perspectiva crítica, mas provavelmente com propostas de saída diferentes do que aquelas que, por exemplo, nos são apresentadas em As Vidas dos Outros.

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