Reformas por onde e quem começar ?
"A nossa vontade reformista está prisioneira de uma certa 'forma de vida'"
por Miguel Poiares Maduro in DN
Em Portugal estamos todos de acordo são necessárias reformas. Não sei até porque se fala tanto de pactos. Uma vez que todos parecem estar de acordo, não é necessário pactuar nada. Dos senadores aos políticos no activo, dos taxistas aos professores, este país está embalado de uma enorme vontade reformista.
Não esperem reformas no entanto. No que concerne às reformas, somos um pouco como aquele grupo de "acção" que no filme dos Monty Python A Vida de Brian planeava libertar Brian ( "representando" a figura de Cristo)
"- Temos de o libertar.
- Sim, não podemos esperar mais, tem de ser agora.
- É isso mesmo, temos de agir.
- Basta de conversa e vamos libertá-lo.
- Sim, temos de passar das palavras aos actos.
- É isso mesmo, vamos agir."
E assim continuavam infinitamente sem darem um passo e com Brian a apodrecer na cadeia.
Mas se estamos todos de acordo quanto à necessidade de mudar, o que impede a reforma em Portugal? Simples as reformas trazem custos e benefícios e mesmo que os benefícios sejam superiores aos custos, estes tendem a ser concentrados e facilmente perfectíveis pelos seus destinatários, enquanto os benefícios são difusos e dilatados no tempo. Enquanto os custos têm frequentemente uma "identidade" que mobiliza quem os sofre, os benefícios das reformas são anónimos (ou pela sua projecção no futuro ou porque não se sabe quem os virá a merecer). Logo, as reformas mobilizam muito mais facilmente contestação do que apoios.
Há alguns aspectos-chave para entender a dificuldade de um projecto reformista. O primeiro tem a ver com aquilo que um Nobel da Economia (Douglas North) designou de path dependence (dependência histórica). Num sentido amplo, este conceito ilustra como qualquer instituição social fica depen- dente da sua história. Num sentido mais simples, corresponde à nossa conhecida frase de que "as coisas são assim porque sempre assim foram". Esta frase não é apenas produto da preguiça. Pelo contrário, ela reflecte os custos envolvidos em qualquer mudança, mesmo uma mudança para muito melhor. Um exemplo há muito que se sabe que os teclados que usamos não são os melhores para permitir uma escrita mais rápida e saudável. Acontece que os teclados surgiram com as máquinas de escrever mecânicas e que a sua concepção técnica não permitia outro teclado. Hoje, tal seria possível. Só que a nossa dependência do teclado clássico (a que todos estamos historicamente habituados) dissuade qualquer mudança para um teclado mais eficiente.
Estes custos de transição associados a qualquer reforma não são insignificantes. Além disso, eles podem ter um impacto redistributivo capaz de mobilizar enorme oposição. Nalguns casos, essa redistribuição é perfeitamente justa mas não deixa de ser difícil de implementar. Imaginemos que a nossa sociedade deixa de ser organizada de acordo com aquilo que já designei, nestas páginas, de princípio da fidelidade (recompensa pela fidelidade ao grupo, ao chefe, aos amigos) para passar a ser organizada com base no mérito. É obvio que isto iria premiar os melhores e penalizar os piores uma redistribuição justa. Acontece que os piores facilmente compreenderiam os riscos que correm e opor-se-ão. Quanto aos melhores, decorre da própria política de mérito a incerteza quanto aos que por ela serão premiados. Logo, uma reforma deste tipo sofre de uma assimetria clara entre os custos e benefícios de um lado e aqueles que deles têm consciência do outro. Consequência: embora os benefícios sejam superiores aos custos, a contestação será superior aos apoios. Há aqui, igualmente, um primeiro paradoxo: quanto mais profundo seja este problema e a necessidade de reforma, maior será esta assimetria e logo mais difícil a reforma.
Noutros casos, os custos de transição inerentes a uma reforma podem ter um impacto redistributivo negativo que exigiria medidas de compensação que garantissem uma efectiva justiça distributiva. Um exemplo pode ser retirado da globalização e liberalização do comércio. O consenso entre os economistas sobre as vantagens de tal liberalização não é seguramente produto de uma qualquer conspiração entre eles para dominarem o mundo (seria interessante dissertar sobre a razão pela qual a análise económica ganhou uma caracterização marcadamente pejorativa). Independentemente das contrapartidas resultantes da abertura de outros mercados aos nossos produtos e por muito anti-intuitivo que tal pareça, a simples sujeição dos nossos produtos à concorrência externa aumenta potencialmente a nossa riqueza! Imaginemos que em Portugal se produz um certo bem mais caro que noutro Estado com que vamos agora ter de concorrer. A consequência para a nossa economia não se limita ao facto de as empresas portuguesas que produzem esse bem terem de fechar. Há contrapartidas que se traduzem num aumento da riqueza nacional.
Em primeiro lugar, os consumidores portugueses vão pagar menos pelo mesmo (ou melhor) produto, ficando dessa forma com mais dinheiro para consumir ou investir noutros bens. Em segundo lugar, o dinheiro que era utilizado na pro- dução ineficiente daquele produto pode agora ser investido na produção de outros bens ou serviços que, por exemplo, não se baseiem tanto em mão-de-obra barata. A lógica é simples ao comprarmos um bem mais barato ficamos com mais dinheiro para comprar outros bens e investir. O problema é que a passagem de um estado económico ao outro não é inócua. Ela tem custos de transição com potenciais impactos redistributivos significativos: aqueles que perdem o emprego com o fim de uma certa produção não são necessariamente os mesmos que vão ganhar com produtos mais baratos ou empregos em novos sectores de actividade. O paradoxo da liberalização do comércio é que, embora ela seja não apenas inevitável mas, igualmente, desejável (não só pelas vantagens que nos traz mas também para promover um desenvolvimento global mais solidário), ela exige, ao mesmo tempo, um reforço dos instrumentos de justiça distributiva. Embora o País enriqueça, há portugueses que podem empobrecer. Acontece que são precisamente aqueles com menos meios que tendem a ser mais afectados por estes custos de transição. Numa sociedade como a nossa, em que os critérios de justiça distributiva ainda são pouco credíveis, é natural que este tipo de reforma suscite oposição.
Este último exemplo permite perceber o último grande obstáculo às reformas em Portugal um problema de acção colectiva. Por onde (ou por quem) se começa? Muitos aceitam a necessidade de reformas mas todos temem que, começando por eles, tais reformas se transformem apenas numa forma de transferir o seu relativo bem-estar para os outros. Esta é a justificação clássica que qualquer português dá para procurar fugir aos impostos, ao mesmo tempo que contesta a evasão fiscal generalizada. É isto que leva, igualmente, a uma imediata contestação de qualquer primeiro passo, no sentido de reformar algum aspecto do sistema fiscal (porquê começar por mim?). A falta de legitimidade global do sistema fiscal leva a contestar qualquer reforma parcial, da mesma forma que a falta de credibilidade dos nossos instrumentos de justiça distributiva leva a contestar qualquer iniciativa de liberalização económica.
As reformas em Portugal dificilmente se farão de forma endógena. Os portugueses querem reformas mas não estão dispostos a passar por um processo de reforma. Estamos demasiados habituados a certos processos de vida para correr o risco de mudar. Há demasiados interesses constituídos que sabem bem os custos da mudança e poucos são aqueles que têm a percepção dos seus potenciais benefícios. A nossa vontade reformista está prisioneira de "certa forma de vida" e de um problema de acção colectiva.
Só através de estímulos externos é que nos reformámos e penso que assim vai continuar a ser. Integração europeia e globalização vão ser os factores exógenos em que vai assentar a energia reformista. Há dias, Rui Ramos defendia que seria possível promover reformas através do nosso sistema político num contexto de efectiva estabilidade política. Só que, como ele reconhecia, tal pressupõe uma atitude cívica que aceite como legítimas reformas que contestamos. Acontece que, em Portugal, o direito à indignação confunde-se com o direito à revolução a oposição a uma determinada política transforma-se facilmente numa oposição ao regime (com cortes de estradas, etc.).
É neste contexto que se compreendem os apelos ao pacto de regime. Consistiria em retirar certas questões do discurso político corrente instituindo uma forma de autodisciplina de todos os actores políticos e sociais. Pessoalmente, penso que este tipo de autodisciplina tem o seu mecanismo próprio numa sociedade democrática é a Constituição. É nela que podemos e devemos concentrar o nosso esforço na procura de combater as assimetrias democráticas identificadas que impedem projectos de reforma.
Miguel Poiares Maduro
miguel.maduro@curia.eu.int
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